Falta de representatividade e a vontade de colocar em pauta personagens invisibilizados move artistas
Por Talita Duvanel, do O Globo
Nas folhas de um caderno cabem uma carta de amor, uma receita de bolo, um poema concreto ou a planta da casa dos sonhos. Nada mais justo que a capa desse item — ainda indispensável mesmo em tempos de smartphone — tenha uma imagem inspiradora. Mas tente encontrar, numa livraria ou papelaria, algo que saia do lugar comum e provoque algum tipo de reflexão. Foi essa a dificuldade da pedagoga paulista Ana Claudia Silva, da Afra, uma das marcas mais importantes no cenário da “papelaria de resistência”, um crescente negócio que imprime questões de raça e gênero nos outrora “triviais” cadernos e agendas.
“Todo começo de ano, quando ia comprar material escolar, não via nada que representasse o cabelo black ou as tranças das minhas crianças”, conta Ana, que mora em Guarulhos com um filho e duas filhas. Desse desejo, nasceram cadernos e agendas com temática racial. O boca a boca na internet foi grande, e só nos primeiros meses ela fez cerca de 600 itens — todos vendidos on-line. Com o sucesso dos desenhos, a iniciativa cresceu e ganhou a contribuição de designers negras de São Paulo, que criam, divulgam e vendem os produtos num trabalho colaborativo azeitado de afroempreendedorismo.
A falta de representatividade e a vontade de colocar em pauta personagens invisibilizados também moveram a publicitária carioca Taynara Cabral, de 23 anos, a criar calendários e planners. A primeira edição foi feita na virada de 2018 para 2019 e trazia ilustrações e informações sobre mulheres negras importantes na literatura e no feminismo, como a escritora Carolina Maria de Jesus e a filósofa Sueli Carneiro. A ideia inicial era de que as pessoas fizessem download da folhinha e imprimissem no tamanho desejado. A iniciativa foi um enorme sucesso, principalmente em escolas cujo plano pedagógico dá mais espaço para personagens negros.
Decidida em levar para um número ainda maior de estudantes, ela abriu um crowfunding para fazer a versão 2020 impressa. Quem doasse, além de contribuir com a entrega dos calendários para escolas públicas, levava folhinha, planner, adesivos ou ecobags para casa. A procura foi tão grande que ela agora já traça os planos para expandir seus desenhos em outros itens. “Pretendo lançar uma linha de cadernos com heróis negros. Nunca usei nada parecido, só de princesas brancas e da Barbie. Quero contar as histórias de Luiz Gama, Dandara e Abdias do Nascimento”, diz a jovem, que cria a partir de uma paleta de marrons. “Nas produções artísticas em geral, quase não vemos essa cor em destaque. Ela é considerada pouco elegante. Mas é o tom da nossa pele e remete a nossa ancestralidade.”
Outra que enxergou o potencial desses tipos de produtos foi a designer mineira Maria Rosa, que se inspirou na própria resistência para criar sua papelaria autoral na Arte de Maria, em 2016. A jovem saiu de uma área rural da cidade de Divinópolis, no interior de Minas, para estudar design gráfico numa faculdade de classe média alta em Belo Horizonte. Mulher negra e bolsista do Fies, ela teve que transpor um bocado de obstáculos ao falar de cultura negra nos ambientes de design, sempre muito brancos e masculinos. “Passei por várias situações chatas porque fui a primeira a abordar racismo no meu curso. Ninguém conseguia compreender o que eu estava falando”, conta ela, que fez, como trabalho de conclusão de curso, em 2014, um fotolivro com imagens que refletiam seu processo de afirmação como mulher negra.
Dois anos depois de formada, ela largou o emprego de diagramadora e resolveu se dedicar totalmente a colagens e desenhos para estampar cadernos, agendas, planners e pôsteres. Em suas criações, há sempre mulheres, na sua maioria negra: da quilombola Dandara à atriz Viola Davis, passando também pelas escritoras Chimamanda e Conceição Evaristo. “Além da questão racial, ainda há a discussão de gênero: mulheres negras são mais invisibilizadas”, reflete Maria Rosa, que batizou seu negócio em homenagem a todo o sexo feminino. “O Maria da marca simboliza toda mulher guerreira.”
Apesar da originalidade dos traços de cada uma delas e do sucesso de produtos nos nichos mais antenados e engajados, tocar um empreendimento, por vezes, é um trabalho hercúleo. Maria Rosa até consegue viver de sua papelaria, mas precisa “dar conta de tudo e ainda criar”. Taynara e Ana Claudia dividem a atenção com outros empregos ao mesmo tempo em que administram as dificuldades de serem empreendedora negra e mulher, no caso de Ana Claudia, e artista gráfica, a exemplo de Taynara. Segundo o levantamento “Empreendedorismo Negro no Brasil,” publicado pela PretaHub e JP Morgan no fim do ano passado, 32% dos empresários negros já teve crédito negado sem explicação. “O afroempreendorismo é tido como iniciativa muito artesanal. As pessoas não veem a possibilidade de nos tornamos uma indústria, e para os bancos isso não é interessante”, reflete Ana Claudia Silva, que ainda trabalha em escolas concomitantemente à administração da Afra.