Agora é lei: condomínios são obrigados a denunciar violência contra mulher, idosos e crianças

No 12º andar de um prédio no Campo Grande, em Salvador, Júlia Santana** ouvia gritos de sua vizinha de porta com o namorado, em mais uma briga frequente do casal. “Era um prédio com quatro apartamentos por andar e o meu era do lado do dela. Eu ouvia umas brigas, gritaria de vez em quando. Um dia, quando entrei em casa, ouvia muitos gritos, ela reclamando que ele era casado e que ela não sabia, que ela sustentava ele. Ele gritava muito, jogava umas coisas. Ela chorava e gritava para ele parar”, relata.

Júlia revela que ligou para a portaria, ameaçou chamar a polícia, mas ficou receosa. “Fiquei com medo de chamar o elevador, ele abrir a porta e fazer alguma coisa comigo também. Desci, liguei pra polícia e falei que estava saindo de casa porque estava com medo do homem. Foi assustador. Fiquei apavorada”, relatou Júlia sobre um episódio que ocorreu há três anos.

No edifício de Janaína Veiga, no Itaigara, as ameaças que ecoavam pela paredes também geraram pânico. “Meus vizinhos de porta sempre têm brigas homéricas, mas teve uma vez que a gente (ela, o irmão e mãe, que moram juntos) ficou muito assustado. A gente não sabia se era o pai brigando com a filha ou o irmão brigando com a irmã. Era falando que ia bater, que ia fazer acontecer, que ia matar o outro. Eu estava muito nervosa e não sabia o que fazer. Liguei para a portaria falando o que tava acontecendo e que não sabia se ligava para a polícia ou se eles tinham algum código de conduta. Eles falaram que iam tentar ligar primeiro para dizer que estavam ouvindo e prestando atenção. Mas não deu em nada”, narra a estudante de psicologia.

Episódios como esses, a partir de agora, devem ser obrigatoriamente relatados à polícia e aos órgãos competentes, seja em casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos. A exigência veio após a sanção da Lei 14.278, no dia 12 de agosto, aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa da Bahia (Alba). Os síndicos ou representantes dos condomínios têm o dever de reportar o ocorrido até 24 horas após a ciência do fato, sob pena de multa que varia de R$ 500 a R$ 10 mil, a depender da gravidade do incidente.

“Essa lei veio como mais um instrumento para proteger essas pessoas vulneráveis. Ela trouxe um dever para que os síndicos ou qualquer representante do condomínio reporte a violência às autoridades, está chamando a sociedade para trabalhar junto com o Estado. Se a pessoa não comunicar, pode responder pelo crime de omissão de socorro, previsto no Código Penal”, analisa a desembargadora Nágila Brito, presidente da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA).

De acordo com a desembargadora, em 80% dos casos de estupro julgadores por ela, em 2º grau, os crimes foram cometidos por familiares. Este é um exemplo em que nova lei pode auxiliar as possíveis vítimas. “Os crimes intrafamiliares que acontecem no interior do lar são invisíveis e a gente precisa que a própria sociedade se insira para fazer a denúncia. Quem sabe não diminui esse tipo de violência?”, argumenta a desembargadora.

O registro da ocorrência pode ser feito de duas formas. Se algum morador perceber a violência no ato, o mais indicado é ligar diretamente para a polícia, através do telefone 190, que vai deslocar uma viatura até o local. Se não for em flagrante, as denúncias podem ser feitas ou pelo Ligue 180, que recebe especificamente casos de violência contra mulher, ou pelo Disque 100, que recebe qualquer caso de violência doméstica.

Exposição dos síndicos

O receio de Kelson Fernandes, presidente do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis e dos Edifícios em Condomínios Residenciais, Comerciais e Mistos do Estado da Bahia (Secovi-BA), é que a nova lei exponha os síndicos e administradores dos prédios. “A lei foi bem intencionada e o Secovi não é contra meios para coibir a violência. Mas termina colocando o síndico numa situação muito delicada, porque ele passa a ter a obrigação de denunciar. Ele também é um morador, não tem poder de polícia e pode ficar numa situação vulnerável, terminar virando vítima”, opina.

Pelo texto, são os representantes do edifício que devem comunicar os casos às autoridades. Porém, qualquer morador também pode fazê-la, e, se quiser, de forma anônima. O que precisa ser informado na hora da denúncia é o endereço do condomínio, quem seria vítima e possível agressor.

A deputada estadual Ivana Bastos (PSD), autora da lei, esclarece que a ideia para a criação do projeto veio a partir de uma demanda da própria Associação Brasileira de Síndicos, em uma reunião da União Nacional dos Legisladores e Legislativos Estaduais (Unale), da qual ela é a atual presidente. O dispositivo já está em vigor em 14 estados do Brasil, segundo Ivana.

Para ela, o principal objetivo é atuar na prevenção dos casos de violência. “A partir da hora que o agressor sabe que pode ser denunciado, que está vulnerável a qualquer um denunciar, ela vai pensar duas vezes antes de cometer a agressão. Isso já vai ajudar a diminuir os casos”, comenta a deputada. A Alba também estuda criar um conselho para administrar o que for arrecadado com as multas em ações que combatam a violência contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos. Ele já existe na Paraíba mas ainda não há previsão de quando será criado na Bahia.

Denúncia por aplicativo

Leonardo Augusto, síndico do Serra do Mar Residence Club, no bairro da Armação, onde há cerca de um mês uma médica foi supostamente jogada da janela pelo namorado e ainda se encontra hospitalizada, conta que o condomínio, mesmo antes do caso, já havia implantado um aplicativo em que os moradores podem relatar qualquer tipo de ocorrência. “Independentemente da lei, a gente sempre aplicou essa prática de denúncias. Se alguém perceber qualquer tipo violência é um procedimento interno acionar as autoridades competentes. O porteiro é acionado, sobe para averiguar a situação e, se comprovando isso, ele passa para o administrador ou síndico, que registra a ocorrência ou liga para o 190”, explica o síndico.

Violência doméstica cresce na pandemia

Segundo dados mais recentes da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), órgão ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, houve um aumento de 14,1% no número de denúncias feitas ao Ligue 180 nos primeiros quatro meses de 2020 em relação ao ano passado. O total de registros foi de 32,9 mil entre janeiro e abril de 2019 contra 37,5 mil no mesmo período deste ano. O destaque maior foi em abril, que apresentou um aumento de 37,6% no comparativo entre os dois anos.

Denúncias em espaços seguros

Após reuniões com legisladores de outros países da América do Sul, a deputada estadual Ivana Bastos comentou ainda que deu entrada em um projeto de lei para facilitar a denúncia de violência doméstica contra as mulheres, crianças, adolescentes e idosos. A ideia do PL, que já é aplicado na Bolívia e no Uruguai, é deixar uma urna em “espaços seguros” (públicos e comuns), como em farmácias e supermercados, para que as vítimas ou qualquer pessoa que se sinta à vontade deixe a ocorrência anonimamente em um pedaço de papel. A polícia recolheria as denúncias nas urnas diariamente e tomaria as próximas providências.

*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro

**Nome fictício

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