Alcântara é Quilombola! Em sentença histórica, Corte Interamericana condena Brasil por violar direitos quilombolas e determina titulação do território

Enviado por / FontePor Mariana Belmont

Na última quinta-feira (13), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou que o Estado brasileiro é responsável por violar os direitos das comunidades de Alcântara, no Maranhão, na instalação e operação de uma base militar de lançamento de foguetes no território. O Brasil foi condenado por violar diversos direitos, incluindo o da titulação coletiva do território. 

As violações guardam estreita relação com a implantação do Centro de Lançamento de Foguetes de Alcântara, ao final da década de 70 e início da década de 80. O processo de implantação, que se arrastou por diversos anos, removeu forçadamente um total de 312 famílias de 32 comunidades diferentes, gerando impactos de longo prazo nos modos de vida, com restrições à circulação, ao uso dos recursos naturais, e a atividades extrativistas e de pesca, dentre outras.

Crédito: Jorrimar Carvalho de Souza/Acervo Justiça Global

“É uma imensa vitória ter acompanhado a sentença de uma ação levada à Corte Interamericana pelas organizações e movimentos do território, que nunca desistiram e sempre resistiram. Hoje ver o nosso Estado brasileiro sendo obrigada a reparar todas essas violações a esse território. Reparação essa onde o mesmo tem a obrigação a titular o território etnico de Alcântara, reparar todas as perdas que nossos antepassados tiveram ao longo dos anos. Para nós, enquanto movimento, enquanto mulheres, é muito importante a gente ver que buscando e resistindo, a gente consegue. Não foi fácil, não é fácil. A Corte agora vai acompanhar o cumprimento dos itens da sentença. Viva o território quilombola! Viva a luta de Alcântara”

Maria do Nascimento, quilombola e liderança do Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (Momtra)

O reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro é amplo e  reflete a complexidade da cadeia de violações empreendidas pelo Estado nesses mais de quarenta anos.  Dentre os diversos pontos elencados na sentença, a Corte Interamericana determinou que: 

  1. O Estado é responsável pela violação dos direitos à propriedade coletiva e de circulação e residência, por descumprir sua obrigação de delimitar, demarcar, titular e promover a desintrusão do território das Comunidades Quilombolas de Alcântara; 
  2. Também é responsável pela violação ao direito ao território por conceder títulos individuais de propriedade ao invés de reconhecer a propriedade coletiva em favor da comunidade; 
  3. Além disso, violou o direito das comunidades ao território ao não garantir que elas possam fazer uso pleno de suas terras, e nem oferecer medidas de compensação pelo impacto causado pelas restrições nos períodos de lançamento de foguetes;
  4. A Corte também afirmou que o Estado é responsável por ter descumprido sua obrigação de realizar uma consulta prévia, livre e informada às Comunidades Quilombolas de Alcântara sobre as medidas que poderiam afetá-las;
  5. Decidiu, ainda, que o Estado é responsável pela violação do projeto de vida coletivo das referidas comunidades;
  6. Como consequência de todos esses impactos, a Corte também reconheceu a responsabilidade pela violação dos direitos à proteção da família, à alimentação adequada, à moradia adequada, à participação na vida cultural e à educação;
  7. Foi ratificado, ainda,  que o Estado Brasileiro violou o direito à igualdade perante a lei e à proibição da discriminação baseada na raça e na condição socioeconômica.

A partir do  reconhecimento deste rol de violações, a Corte Interamericana determinou algumas obrigações ao Estado Brasileiro, dentre as quais se destacam:

  • A titulação coletiva que reconheça os 78.105 hectares de seu território, conforme o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, datado de 2008, além de delimitar, demarcar e promover a desintrusão adequada do território;
  • O Estado, enquanto não concluir a titulação, demarcação e desintrusão do território das Comunidades Quilombolas de Alcântara, deverá abster-se de realizar atos que possam afetar sua existência, valor, uso ou gozo;
  • Deverá instalará uma mesa de diálogo permanente de comum acordo com as Comunidades Quilombolas de Alcântara;
  • A Corte determinou, ainda,  a realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação aos fatos e violações reconhecidos pela Corte Interamericana.
  • Por fim, determinou que o Estado deve indenizar as comunidades pelo dano material e imaterial sofrido ao longo dos anos.

Ao longo de mais duas décadas de tramitação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o governo brasileiro teve diversas oportunidades de reparar as violações, mas não o fez. Os quilombos de Alcântara ainda não contam com o título de propriedade coletiva de seu território tradicional.

Crédito: Acervo MABE

As violações denunciadas são decorrentes da instalação de uma base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira, com a remoção de centenas de famílias, bem como pela omissão do Estado brasileiro em conferir os títulos de propriedade definitiva para os quilombolas. Além das desapropriações e remoções compulsórias, a perda do território impactou o direito à cultura, alimentação adequada, livre circulação, educação, saúde, moradia, saneamento básico e transporte de uma centena de comunidades quilombolas.

Com mais de 18 mil pessoas, o município de Alcântara, na região metropolitana de São Luís, concentra a maior população quilombola do país: quase 85% das mais de 18 mil pessoas, segundo o Censo do IBGE de 2002, distribuídas em quase 200 comunidades.

“É uma vitória histórica! O Estado brasileiro foi condenado por crimes e violações cometidos contra nossos quilombos e é obrigado a titular nosso território,e reparar e indenizar as vitimas de suas atrocidades. Temos aí um importante precedente de proteção de comunidades quilombolas do Brasil no Sistema Interamericano”, Danilo Serejo, quilombola jurista especialista na Consulta Prévia e assessor do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe)

Uma das primeiras regiões do Brasil a receber negros escravizados da África, às vésperas da independência em 1822, o Maranhão tinha o maior percentual de pessoas escravizadas do Império, em torno de 55%. É a partir do início do século XIX que o registro dos quilombos na região de Alcântara, cujas primeiras ocorrências datam do início do século XVIII, aumentou significativamente.


Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).

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