Alguém ainda se lembra da deliciosa água de quartinha?

por: Fátima Oliveira –

Em meio à azáfama cotidiana, uma amiga indagou se poderíamos almoçar dali a dois dias. Pinçando minha lânguida preguicite pós-almoço, negociei jantar. Sou firme contra almoçar fora. Nem convido para almoços em minha casa, pois não abro mão de fazer a sesta.

Então, depois de virar matuta… Ao que ela pontuou: “depois de virar matuta, não! Sempre fui. Assim nasci. A matutice é um estado de espírito”. Por anos, foi uma caipira que estava cosmopolita – morou em Londres, Nova York, Paris e em Sampa. Dona do seu tempo, estava em Beagá e, no dia seguinte, almoçaria numa cantina do Bexiga. “É para matar a saudade, pois Sampa em minha idade só em raras doses homeopáticas”.

Mostrou-me um brilhante no dedo e, toda zen, murmurou: “tá vendo o brilhantão? É o fa-le-ci-do! Quem diria que aquela rabugice toda daria um belo anel? Baita homenagem, né?” Are baba! Ela o cremou e, das cinzas… Sim, é uma homenagem significativa, mas parei de comer a sobremesa, pois falar na hora do jantar… Não é mais uma pessoa, é um brilhante, mas é humano! Enfim, mulher difícil é dose! Sei. Sou uma.

Casada por mais de trinta anos, enjoou de morar junto (“homem velho dá trabalho”). Abandonou o casamento – o marido, não; de vez em quando, conviviam em curtas temporadas – e se mandou para uma vida saudável na roça… Ela o amava. Não tirava o anel das bodas de pérola (30 anos).

Agora, aquele brilhantão humano! Eu a dissecava… Sacando meu espanto, tangenciou beleza: “quando vai beber água de quartinha e comer doce de laranja-da-terra na Brejinho? Foi lá que Melissa Costa escreveu ‘Água de quartinha'” – um belo e profundo miniconto filosófico que narra uma viagem de ecoturismo no agreste nordestino – entre a zona da mata e o sertão (limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=2588).

Conheci minha amiga, via e-mail, quase sessentona. Ela queria saber sobre os transgênicos. Leu meu artigo: “Afinal, qual é mesmo o suave veneno dos transgênicos?” (junho de 1999). O TEMPO publicou um resumo: “O Suave Veneno dos Transgênicos” (16.07.1999). E o medo de morar na roça naquela idade? Disse-me que o máximo que poderá ocorrer é o que ela mais quer: morrer e ser enterrada lá. E o mínimo, é que a vida alternativa poderia enriquecê-la. Falava de grana mesmo, embora tivesse optado por um estilo franciscano pós-aposentadoria. “A simplicidade voluntária, diferente da pobreza, que é imposta, é um estilo de vida escolhido”.

Trocou Sampa pelo agreste, onde cria de tudo um pouco: um gadinho pé-duro (e gadão de corte também!), galinhas, porcos, cabritos, ovelhas, jegues, cavalos sertanejos (nordestinos) e pôneis piquira, com os quais “compra indulgências para entrar no céu” – equitação terapêutica para crianças com síndrome de Down e autismo, tudo 0800 porque o SUS não banca! Faz agricultura orgânica de subsistência. Livre de venenos. Criou uma orquestra de lavradores. Se cansada de descansar na Brejinho, antigo pouso de tropeiros, toca pra cidade, que fica a 40 km.

Estar sessentona é fichinha: “Roberto Marinho começou o império da monstruosa Rede Globo aos sessenta anos. E ficou podre de rico, não foi”? Eu a deixei no hotel e fui para casa ruminando o palavreado dela… Sossegar, baixar o facho, matutar, ficar mornando até o corpo estar cansado de descansar, pois os dias na roça são longos e espicham a vida… Só fazer o que dá prazer… E espiar o mundo daquele mato de uma aldeia global… De vez em quando, um pulo na dita civilização.

Matéria original: Alguém ainda se lembra da deliciosa água de quartinha?

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