Alunos bolsistas de escolas de elite de SP relatam discriminação e segregação

Jovens descrevem tratamento diferente de colegas e até das diretorias; Colégios negam discriminação

FONTEFolha de São Paulo, por Bruno Lucca e Isabela Palhares
Bolsista no ensino médio, Gabriel Domingues, 21, preside uma entidade que luta contra a desigualdade educacional e discriminação em escolas particulares - Rafaela Araujo/Folhapress

Quando Gabriel Domingues chegou ao Colégio Marista Arquidiocesano, em São Paulo, causou espanto. Bolsista, negro e periférico, destoava dos demais alunos da escola, com mensalidades a partir de R$ 3.000. Era o 1° ano do ensino médio, e os seguintes seriam marcados por percalços.

A primeira barreira enfrentada por ele foi a social. Era difícil se enturmar com pessoas de vivências tão diferentes. “Eles não me chamavam para sair e justificavam dizendo que era muito caro”, relata.

Depois, a racial. Na turma, havia homônimos e, como forma de diferenciá-los, foram criados apelidos. Gabriel Domingues, o único não branco, foi intitulado “Gabnegão”. “À época, tolerei para ser aceito. Agora, entendo o contorno racista daquilo.”

Hoje com 21 anos e estudante de administração pública na FGV (Fundação Getulio Vargas), Gabriel faz parte da Ponteduca, uma organização sem fins lucrativos que luta pela redução das desigualdades socioeconômicas a partir da democratização da educação particular.

Lá, ele recolhe relatos de bolsistas em colégios da elite paulista e busca garantir o melhor tratamento. A Folha também ouviu relatos de estudantes e ex-estudantes de escolas como Porto Seguro, São Luís e Santo Américo. Todos pediram para não ter identidade revelada.

Na maioria dos casos, os alunos consideram que a discriminação ocorria de forma velada, na ausência de convites para festas ou nos comentários sobre as roupas e tênis que usavam. Mas, em outros, a segregação ocorria de forma institucionalizada, segundo eles.

No colégio São Luís, na Vila Mariana, alunos pagantes estudam durante o dia. Já os bolsistas, no noturno e sem autorização para entrar na escola antes do horário das aulas, mesmo que para estudar.

Uma ex-aluna contou que, além da segregação por turnos, também havia a diferenciação em atividades esportivas. Durante os campeonatos internos, bolsistas competiam somente entre bolsistas, afirma. Outro ponto é o uniforme. Pagantes usam uma camiseta branca. Quem é isento da mensalidade, uma camiseta azul-marinho, na qual está escrito “noturno”.

O Porto Seguro é outro colégio que separa os alunos bolsistas dos demais. A instituição mantém desde 1966 a Escola da Comunidade para atender estudantes pobres.

Até 2020, pagantes e não pagantes estudavam na mesma unidade, no Morumbi. Isso mudou quando os bolsistas foram transferidos para outro prédio na Vila Andrade. As duas unidades estão separadas por cerca de quatro quilômetros.

Uma ex-aluna conta que, mesmo quando estudavam no mesmo prédio, os bolsistas não podiam circular pelas áreas da escola sem autorização prévia. Nada de piscina ou quadra.

Ela, filha de empregada doméstica, diz que se culpava por sentir que estava sendo discriminada. Por um lado, recebia uniforme, material didático, lanche e uma educação de qualidade. Por outro, a sensação de não pertencimento.

A jovem conta que, quando foram transferidos para o prédio da Vila Andrade, passou a se questionar por que era tão ruim para os alunos pagantes conviverem com os bolsistas no mesmo espaço.

Não só os alunos da Escola da Comunidade relatam casos de discriminação. Filhos de professores, que têm direito a bolsa integral, também contam sofrer ofensas e exclusão por não pagarem mensalidade.

Uma ex-professora do Porto Seguro conta que tinha bolsa integral para suas duas filhas no colégio. A caçula começou a ser alvo de piadas e exclusão quando ainda estava no 2º ano do ensino fundamental. A mãe lembra que as colegas de turma foram uma única vez em sua casa para fazer um trabalho de escola. Depois espalharam para a sala que a menina morava em uma casa que parecia de favela.

Ao longo dos anos, a menina continuou sendo alvo das ofensas e ficou cada vez mais excluída. A mãe conta que, alertada, a coordenação e os pais dos alunos nada fizeram. Os filhos de docentes, ela diz, são tratados como uma extensão dos funcionários.

Depois de anos nessa situação, a menina teve um quadro de depressão no 6º ano. Chorava, tinha dor de barriga e pedia para não ir para a escola. Nessa mesma época, a mãe conseguiu emprego em outro colégio e mudou a filha de unidade.

Na nova escola, onde colegas não sabem que ela é bolsista, a menina não foi excluída, diz a mãe.

Para evitar que os filhos sofram preconceito, alguns professores preferem abrir mão do direito à bolsa de estudos. À Folha, uma docente contou que decidiu tirar o filho do colégio em que leciona, com mensalidades em torno de R$ 6.000.

O menino de 7 anos voltava da escola chorando quase todos os dias, porque os colegas tiravam sarro por seu tênis não ser de marca. Ele também era excluído das brincadeiras por nunca ter viajado para a Disney.

A mãe chegou a compartilhar os episódios com os pais dos outros alunos, mas ouviu que eles não tinham culpa de ter uma condição financeira melhor.

Cerca de uma dezena de colégios com mensalidades altas também atendem alunos de famílias pobres por meio de parceria com ONGs. Essas instituições fazem a seleção de estudantes de escola pública com bom rendimento e arcam com as bolsas de estudo.

É o caso, por exemplo, do colégio Santo Américo, no Jardim Colombo. Uma aluna do 3º ano do ensino médio conta que, apesar dos benefícios de ter o ensino custeado em uma escola reconhecida, é difícil lidar com as provocações dos colegas.

Ela diz que foram criados grupos no WhatsApp apenas para xingar bolsistas.

Nas últimas semanas, ganhou força o debate sobre a responsabilidade das escolas particulares em oferecer cuidado e proteção aos estudantes bolsistas. O assunto repercutiu após um aluno do colégio Bandeirantes, na Vila Mariana, se suicidar. O menino era bolsista e já havia se queixado de ser vítima de discriminação.

A socióloga e educadora Ednéia Gonçalves, coordenadora da Ação Educativa, diz que as escolas têm obrigação de proteger os estudantes.

“As escolas precisam alinhar com as famílias como elas enxergam a concessão de bolsas. Se o colégio e os pais olham para os bolsistas como [uma ação de] caridade, não vai funcionar. É preciso que todos entendam que a presença desses alunos melhora a qualidade da educação de todos, por promover a equidade.”

Para ela, a “escola não pode ter medo de ofender os pais por relatar que o seu filho teve atitude preconceituosa”. “Se a escola quer promover equidade, ela pode pensar em custear uma ida ao cinema, transporte público para esse jovem ir ao museu”, exemplifica.

Em nota, o colégio São Luís disse que as bolsas para o ensino médio noturno existem desde 1943 e foram criadas para ” defender e promover uma educação de qualidade para aquelas pessoas que correm o risco de ter esse direito negado pela sociedade”.

A direção diz que esses estudantes são tratados da mesma forma que os demais, sem discriminação.

Já o colégio Porto Seguro que “o combate ao bullying é uma prioridade” da escola, que conta com uma equipe com mais de 50 psicólogos e psicopedagogos para atender os alunos.

O colégio Marista também afirmou que possui “projetos para promover a acolhida e integração de estudantes de forma indistinta para todos que ingressam na instituição”. A direção diz ter um programa de prevenção ao bullying. Procurado, o Bandeirantes disse que não iria se manifestar sobre o tema.


Tipos de bolsa em escolas particulares

  • Para filhos de professores ou funcionários

Ao menos desde a década de 1980, os professores têm garantido, em convenção coletiva, o direito de bolsas de estudos integrais para os filhos. Antes desse período, já era comum que os colégios oferecessem gratuidade a seus funcionários. A última convenção assinada no Estado de São Paulo estabelece que as escolas são obrigadas a conceder até duas bolsas por docente —no caso de unidades com menos de 100 alunos, elas podem limitar a uma bolsa.

  • Processos seletivos internos

Algumas escolas optam por fazer processos seletivos com critérios próprios para definir a concessão de bolsas. Além do critério de renda, alguns colégios têm estabelecido que o benefício será dado a alunos negros ou que vivem em comunidades próximas. Em busca de aumentar o número de alunos negros, algumas escolas de São Paulo passaram a oferecer uma quantidade de bolsas para crianças ainda na educação infantil. A ideia é que, acostumados a conviver juntos desde pequenos, esses estudantes vão de fato receber uma educação antirracista.

  • Por meio de parcerias

Há ainda algumas ONGs que intermedeiam o processo seletivo de bolsas para as escolas particulares. Um dos mais conhecidos é o Ismart. A organização faz a seleção dos alunos de escola pública com bom desempenho e paga as mensalidades em colégios parceiros. Em São Paulo, por exemplo, a ONG tem parceria com cerca de dez escolas.

-+=
Sair da versão mobile