Alyne morreu e o Estado continua omisso

Em 16 novembro de 2002, morreu Alyne da Silva Pimentel Teixeira: 28 anos, afro-descendente, pobre, grávida de 6 meses, deixando uma filha de 5 anos. Em 11 de novembro, Alyne foi a um Centro de Saúde em Belford Roxo, em virtude de fortes sintomas indicando uma gravidez de alto risco. Por orientação médica, retornou à sua casa, regressando ao Centro dois dias depois, com dores ainda mais agudas, sem que no exame médico fossem detectados os batimentos cardíacos do feto. Com a demora na realização do parto induzido, 6 horas depois, Alyne deu à luz a um feto natimorto. A cirurgia para a retirada da placenta ocorreu somente 14 horas depois do parto. Em virtude da gravidade do caso, Alyne foi transferida para um hospital. Contudo, a ausência de ambulância e a indisponibilidade de leito culminaram com a sua morte 5 dias após a ida ao Centro de Saúde. O drama de Alyne simboliza a violência da morte materna evitável, fruto da dolorosa peregrinação por hospitais, do sofrimento agravado pela precariedade do sistema de saúde e da omissão de políticas públicas a violar o direito à maternidade segura.

por Flávia Piovesan e Carmen H. de Campos

Desde 2003, tramita na Justiça uma ação de indenização proposta pela família de Alyne. Diante da demora na prestação jurisdicional, em 2007, o caso foi submetido ao Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Em agosto de 2011, ineditamente, o Comitê da ONU condenou o Estado brasileiro pela morte de Alyne, recomendando: a) indenizar a família de Alyne; b) garantir o direito das mulheres a uma maternidade segura e o acesso adequado aos procedimentos obstétricos; c) proporcionar a formação profissional adequada aos trabalhadores de saúde; d) assegurar a observância de parâmetros nacionais e internacionais de saúde reprodutiva nos serviços públicos de saúde; e e) punir os profissionais de saúde que violem os direitos reprodutivos das mulheres e seu direito de acesso à saúde.

O caso é emblemático por constituir a 1ª condenação internacional referente à morte materna, sendo um relevante precedente para a proteção dos direitos humanos das mulheres.

A gravidez ainda apresenta sérios riscos à vida das mulheres: uma mulher morre a cada minuto no mundo por causa relacionada à gravidez ou ao parto (UNFPA, 2008) – o que corresponde a mais de meio milhão de mortes anualmente (UNFPA, 2007; 2008). Mulheres que vivem em zonas rurais e com baixo nível socioeconômico são as que mais correm risco de morrer ou de sofrer as consequências de uma gravidez sem o atendimento necessário (CRR, 2008). Reduzir em 75% as mortes maternas evitáveis, até 2015, é o 5º Objetivo do Desenvolvimento do Milênio (ODM) assumido pelo Estado brasileiro. Apesar da redução do óbito materno no Brasil nas últimas décadas, a mortalidade materna persiste como sério problema de saúde pública no país.

No entanto, passados mais de 10 anos da morte de Alyne e dois anos da decisão do Comitê CEDAW, o Estado brasileiro ainda não cumpriu qualquer das recomendações. O risco de descumprimento da decisão internacional não apenas viola o direito da vítima e de seus familiares à reparação, como também afronta os direitos das mulheres brasileiras à maternidade segura, demandando o dever do Estado de adotar políticas públicas no campo da saúde reprodutiva (como medida preventiva a afastar mortes maternas evitáveis). Traduz, ainda, uma incoerente e inaceitável postura do Estado brasileiro – que, na qualidade de crescente ator global a endossar o multilateralismo, não merece afrontar a credibilidade, a legitimidade e a eficácia de instituições internacionais.

O caso Alyne foi apreciado por uma instância internacional – o Comitê CEDAW – tendo como fundamento o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, que habilita o Comitê a apreciar denúncias de violações da Convenção. Foi o mesmo Estado brasileiro que, no livre e pleno exercício de sua soberania, ratificou o Protocolo aceitando o mecanismo de denúncia – que, agora, porque condenado, recusa-se a cumprir.

Implementar integralmente a decisão internacional é uma exigência jurídica decorrente dos tratados firmados e da responsabilidade do Estado por morte evitável de mulheres. Uma gravidez segura, com um atendimento qualificado e humanizado, é um direito de todas as mulheres.

 

Fonte: Agência Patrícia Galvão

+ sobre o tema

Google premia projetos sociais do Brasil com R$ 1 mi

Júri formado por MV Bill e Luciano Huck escolheu...

Três mulheres se unem para derrotar presidente de Belarus, no poder há 26 anos

As três mulheres representam candidatos que foram colocados na...

Joice Berth

Um belo dia (ok não tão belo assim!) em...

Feminismo entra de vez na pauta por meio de artistas na internet

Conjunto amplo de movimentos e teorias, o feminismo tem...

para lembrar

“É um desafio ser uma negra e índia que se atreve a escrever”, diz Cláudia Canto

Escritora multifacetada que viveu "exílio domiciliar", em Portugal, lança...

12 youtubers negras que estão empoderando mulheres na internet

Você sabe o que é colorismo? Já ouviu falar...

Não somos nós

Pesquisa inédita do Instituto Patrícia Galvão e Data Popular...

Miss é eliminada por ser mãe. Em que ano estamos?

Elas precisam ser lindas, altas e magras. Além disso,...
spot_imgspot_img

Luta das mulheres voltou a pautar as ruas em 2024 e acendeu alerta para o retrocesso

A luta pelos direitos das mulheres no ano de 2024, que começou de maneira relativamente positiva para a luta das mulheres, foi marcada por...

Apenas cinco mulheres se tornaram presidentes nas eleições deste ano no mundo BR

A presença feminina nos mais altos níveis de liderança política permaneceu extremamente baixa em 2024. Apenas cinco mulheres foram eleitas como chefes de Estado...

Cidadania para a população afro-brasileira

"Eu gostaria que resgatassem um projeto desse sujeito extraordinário que foi Kwame Nkrumah, panafricanista, de oferecer nacionalidade de países africanos para toda a diáspora",...
-+=