Ambiente acadêmico brasileiro: branquidade e exclusão de direitos dos estudantes negros

Resumo: O presente artigo visa a compreender por que os membros do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da Universidade Federal de Viçosa (UFV) impuseram uma forma de operacionalização à Comissão de Verificação de Autodeclaração Étnico-Racial (CVAER) da instituição que, simultânea e contraditoriamente, impediu o ingresso fraudulento de alguns estudantes brancos nas vagas das subcotas étnico-raciais des-tinadas aos estudantes pretos, pardos e indígenas, que era o objetivo da referida comissão, mas também permitiu o ingresso de dezenas de estudantes brancos nessas vagas. Por meio de fatos, dados e argumen-tos consistentes e plausíveis, sustenta-se a hipótese de que a tomada de decisão dos membros do CEPE foi em virtude da branquidade, isto é, do privilégio racial (branco) dos conselheiros desse órgão da universidade.

Palavras-Chave: Universidade. Branquidade. Ação Afirmativa. Heteroidentificação Étnico-Racial. Comissões de Verificação.

Introdução

Em dois artigos publicados no ano de 2019, os cientistas sociais Santos e Freitas (2019a e 2019b)2 analisaram o processo de implementação do sistema de cotas da UFV, para estudantes oriundos de escolas públicas, conforme implementação determi nada pela Lei Federal nº 12.711/2012, a chamada Lei das Cotas. No primeiro artigo, Santos e Freitas (2019a) analisaram a presença, bem como o impacto e a repercussão do ingresso de estudantes pretos e pardos na Universidade Federal de Viçosa (UFV), por meio das subcotas étnico-raciais, em seis cursos que são considerados de alto prestígio na universidade: Agronomia, Direito, Engenharia Mecânica, Engenharia Química, Medicina e Medicina Veterinária. Entre outros resultados, os autores constataram que houve baixo ingresso de estudantes (mulheres) pretas nesses cursos, em razão de fraudes praticadas por estudantes brancos nessas subcotas.

Segundo Santos e Freitas (2019a), as fraudes foram denuncia-das pelos movimentos negros da cidade de Viçosa-MG e por estu-dantes negros (pretos e pardos) da própria UFV, o que pressionou a instituição a tentar resolver o problema, isto é, tentar impedi-lo. Dessa forma, a universidade criou, em março de 2017, a Comissão de Verificação de Autodeclaração Étnico-Racial (CVAER)3, para con-vocar e heteroidentificar alunos brancos que foram denunciados à instituição por fraudar as subcotas étnico-raciais destinadas aos estudantes pretos, pardos e indígenas.

Contudo, apesar da implantação e do funcionamento da CVAER, as fraudes continuaram sendo praticadas. Em razão disso, os pesquisadores, dando continuidade à primeira pesquisa, reali-zaram a segunda investigação (SANTOS e FREITAS, 2019b), visan-do a verificar o modus operandi da CVAER e, consequentemente, aferir a sua eficiência na averiguação e impedimento das fraudes praticadas por estudantes brancos nas subcotas étnico-raciais. Entre outros resultados, Santos e Freitas (2019b) concluíram que a CVAER conseguiu coibir fraudes, que era seu objetivo primeiro. Porém, contraditória e simultaneamente, a CVAER foi um locuspara a legitimação desse crime, em face de uma imposição do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da universidade à sua atuação, deliberada na reunião do dia 08 de março de 2017 desse conselho, qual seja, de que “o estudante [denunciado como fraudador das subcotas étnico-raciais] será considerado nãoen-quadrado na condição de pessoa preta, parda ou indígena quando houver unanimidade entre os integrantes da Comissão” (BRASIL, 2017a).

Assim, recorrendo a um argumento muito utilizado no meio jurídico, in dubio pro reo, os membros do CEPE estabeleceram que os estudantes acusados de fraudadores não seriam identificados e/ou constatados por meio da maioria dos votos dos membros da CVAER da UFV, mas somente pelos votos de todos os seus membros, ou seja, por unanimidade dos votos dos membros da CVAER. Por exemplo, se quatro dos cinco membros da comissão heteroidentificassem como branco um aluno acusado de fraudar as subcotas étnico-raciais, mas apenas um de seus membros o he-teroidentificasse como pardo ou preto ou indígena, esse estudan-te não seria considerado fraudador das subcotas étnico-raciais. Ao contrário, ele seria heteroidentificado como pardo, ou preto ou indígena, logo, seria considerado sujeito de direito das subcotas e ingressaria em uma de suas vagas.

Santos e Freitas (2019b) demonstraram por meio de dados e argumentos consistentes que a utilização do argumento in dubio pro reo para fundamentar a imposição supracitada era insusten-tável de uma perspectiva racional, assim como evidenciaram que essa fundamentação foi um dos principais fatores para excluir da UFV dezenas de estudantes negros e indígenas, que eram os reais sujeitos de direito das subcotas étnico-raciais, e, simultaneamente incluir dezenas de estudantes brancos na universidade, que não eram e não poderiam ser beneficiários das subcotas conforme a Lei nº 12.711/2012.

Todavia, apesar de os sociólogos Santos e Freitas (2019a e 2019b) realizarem pesquisas meticulosas e convincentes acadêmi-co-cientificamente, mostrando falhas gritantes e injustificáveis no processo de correção da implementação das subcotas étnico-ra-ciais da UFV, eles não focaram responder por que os conselheiros do CEPE deliberaram a imposição supracitada à CVAER da UFV. Eis aí o que vamos analisar neste artigo. A resposta à questão su-pracitada pode nos ajudar a compreender a branquidade, isto é, o privilégio racial (branco), e a operacionalização do racismo no meio acadêmico brasileiro.

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