Amor à Vida, afeto entre homens e os limites da masculinidade – por Jarid Arraes

Entre o beijo do casal gay e a reconciliação emocionante de Félix com seu pai, o último capitulo da novela da Globo “Amor à Vida”, que foi ao ar na última sexta-feira, provocou reações diversas na audiência. Com aplausos efusivos por parte de quem torcia pela vitória do amor, são muitos os depoimentos de espectadores que ficaram felizes com as cenas – muitos deles homens heterossexuais, sem grande intimidade com movimentos sociais ou conhecimento sobre as bandeiras da causa LGBT: eles tão somente se permitiram torcer pelo afeto entre homens.

A verdade é que o final de Amor à Vida suscitou uma ótima oportunidade para se repensar os arranjos da masculinidade. Os estereótipos de gênero certamente geram mais consequências violentas contra as mulheres, mas há uma parcela muito importante da misoginia que precisa ser discutida, especialmente entre os próprios homens. É por causa de ideias limitadas quanto ao que é “ser homem” que garotos aprendem a sentir mais agressividade do que empatia, transformando até mesmo suas demonstrações de afeto em atos com toques de brutalidade.

Em nossa cultura, os homens aprendem que há limites para expressões de carinho entre si. Beijos e abraços aumentam significativamente as chances de um homem ser considerado gay e, na maioria das vezes, ser gay é algo considerado indesejável e repulsivo. Essa limitação emocional não tem flexibilidade nem mesmo entre membros da família: muitos homens relatam que nem sequer seus pais eram capazes de demonstrar amor; eram pais que evitavam contato físico, não elogiavam seus filhos ou que dificilmente chegavam sequer a esboçar um sorriso. A relação entre pai e filho é usurpada em nome de uma masculinidade que nenhum homem jamais será capaz de alcançar, pois sentimentos e emoções são naturais em qualquer ser humano, assim como a necessidade de dar e receber carinho, afeto e amor.

Essa bola de neve prejudica não apenas a saúde emocional dos homens, como também gera uma repulsa profunda ao feminino. Devido ao medo irracional de ser visto como gay, torna-se necessário salientar a suposta “inferioridade feminina” para reforçar a própria masculinidade. Essa misoginia é uma raiz potencial da homofobia e muitos homofóbicos consideram que ser um homem homossexual é se “rebaixar” a um status de “quase-mulher”, que os papéis são invertidos. A violência começa da base, sendo primordial compreender a dimensão negativa desses paradigmas.

É por isso que um beijo entre homens abertamente gays em horário nobre do canal televisivo com maior audiência no Brasil é algo tão importante. A delicadeza e o romance da cena, assim como o “eu te amo” falado pelo pai homofóbico que passa a ser cuidado pelo filho, representa um marco para a TV brasileira. Mais do que isso, ver homens heterossexuais se emocionando com a novela, falando espontaneamente contra a intolerância e desconstruindo um pouco suas próprias limitações e preconceitos é algo muito precioso. Esses são os mesmos homens que futuramente criarão filhos menos preconceituosos e, quem sabe, podem até vir a chamar a atenção de um amigo que faz um comentário machista ou trata a sua parceira com violência.

Mas é claro, essa pequena vitória não significa que a guerra está vencida: mais do que adotar uma postura política contra o machismo e a homofobia, os homens “conscientes” precisam compreender que também são responsáveis pela propagação desses preconceitos na sociedade. É preciso entender que mais do que torcer pelos personagens da novela, é necessário intervir na vida real, impedindo agressões físicas e verbais e interferindo em situações de violência machista. Nem mesmo a própria televisão está isenta de culpa, sendo responsável por muitos dos mesmos preconceitos que supostamente tenta combater. Ainda há muito o que evoluir para a TV Globo – quanto tempo teremos que esperar para vermos o primeiro beijo lésbico?

Para que a sociedade possa melhorar, é preciso que a masculinidade continue a ser contestada, revisada e reconstruída. Sem caixinhas apertadas nas quais as pessoas devem caber, não fará sentido a preocupação de que algo “pareça gay” ou “de mulher”. Agressividade e desprezo ao feminino não são requisitos para ser homem. Pelo contrário, um homem seguro dos seus princípios éticos e equilibrado emocionalmente não tem por que sentir medo de ser afetuoso. O melhor, para todos e todas, é que essas paranóias acabem e que cada um tenha liberdade para viver em paz com sua própria subjetividade.

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