Filha do Fogo é o primeiro volume em prosa assinado por Elizandra Souza – escritora, jornalista, editora e ativista cultural, a quem já dedicamos um dos episódios do programa de rádio LetrasPretas; de sua produção, já resenhamos aqui o livro de poemas Águas da Cabaça e a antologia Pretextos de Mulheres Negras, organizada pela autora em parceria com Carmen Faustino. Como as outras obras editadas por Elizandra, Filha do Fogo se materializa em um belíssimo volume, com capa assinada por Vanessa Ferreira e projeto gráfico de Silvana Martins que expressam com precisão o temário abordado no livro.

Perante o volume de textos reunidos em Águas da Cabaça, Filha do Fogo pode parecer uma obra tímida: se lá havia mais de uma centena de poemas, em Filha do Fogo reúne apenas uma dúzia de narrativas. Para além das implicações simbólicas – a alusão aos ministros de Xangô –, penso que essa diferença não está relacionada apenas às particularidades próprias dos gêneros textuais, ou mesmo a qualquer tipo de predisposição autoral, uma vez que o teor das narrativas apresenta um registro distinto daquele que encontramos nos poemas: se as composições em verso de Elizandra Souza alcançam potência por suas agudeza e brevidade, os contos apresentam um andamento distinto; se há neles uma sensível força lírica, essa se desenvolve em passagens descritivas mais dilatadas, densas reflexões, trechos que se aproximam da crônica e evocações memorialísticas. Desse modo, Filha do Fogo está longe de ser uma “aventura literária” de uma autora que, após dedicar-se à poesia, decidiu lançar-se à prosa por quaisquer razões arbitrárias; trata-se da obra de uma escritora madura que, conhecedora dos meandros do fazer literário, pode dedicar-se a diferentes gêneros com igual competência. Vale notar, por outro lado, que os doze contos de Filha do Fogo percorrem um universo temático semelhante àquele presente em Águas da Cabaça, o que evidencia a consistência da produção literária de Elizandra.
A evocação de “amor” e “cura” no subtítulo da obra é já um indício de como, nas narrativas, a afetividade ocupa um lugar central. Protagonizados, sobretudo, por mulheres negras cujos nomes tipicamente manifestam uma origem africana, os contos registram diferentes momentos de trajetórias femininas que, embora singulares, entrelaçam-se para apresentar um caleidoscópio de vivências e experiências compartilhadas por muitas mulheres negras. A ligação de Inã, a “Filha do fogo”, com sua avó, ou a de Dara, protagonista de “A primeira vez que fui ao céu”, com seu avô, abordam relações com figuras ancestrais em narrativas pungentes; o cumprimento da profecia que designa a N’anga, “a curandeira” sua missão de vida metaforiza a decisiva descoberta de um caminho existencial.
Os contos de Elizandra Souza não deixam de manifestar cortantes críticas ao sexismo, sobretudo como patentes no comportamento de homens negros. “Com tradição” aborda, em uma narrativa contundente, a ambígua postura do admirado militante negro que “esqueceu de dizer que as palavras, quando separadas dos atos, descascavam como paredes velhas”, o que o levou a construir a imagem de alguém que viveu para o seu povo quando, às escondidas, dedicava-se a relacionamentos permeados por dissimulações e infidelidades. “Muita trovoada é sinal de pouca chuva” alcança efeitos cômicos ao expor a conduta de um homem negro que, “descolado” e atuante no movimento negro, reproduz posturas já anunciadas por provérbios repetidos pela avó da protagonista. Em contraste, Jawari, personagem de “Afagos”, desenvolve com a protagonista Dara uma relação importante em seu processo de cura, o que demonstra a existência de outros modelos possíveis de masculinidade.
No inspirado prefácio a Filha do Fogo, Mirian Cristina dos Santos menciona as mulheres negras como “fênix negras a alçar novos voos”; imagem pertinente para as múltiplas protagonistas da obra, que concretizam a potência da escrita de Elizandra Souza – escritora que, em verso e prosa, consolida com o mais recente livro sua posição de destaque no cenário contemporâneo.