Apresentadora do GNT e influenciadora digital, ela já chorou na internet ao falar do racismo sofrido pela filha de 4 anos e viralizou ao escancarar a falta de maquiagem para peles negras. Mas avisa: ‘Faço vídeos de potência, falo sobre o meu cabelo, mas de um lugar positivo’
Por Kamille Viola, do O Globo
Influenciadora e empresária de moda, Ana Paula Xongani vem construindo sua narrativa na internet em torno da identidade negra. Em seu canal, fala sobre penteados afro e maquiagem para seu tom de pele, entre outros temas. Com quase 100 mil seguidores no Instagram e 75 mil inscritos no YouTube, faz uma campanha atrás da outra para diversas marcas e é convidada para debates e palestras. Este ano, estreou na TV, como uma das apresentadoras da série “Se essa roupa fosse minha”, no GNT. Ainda assim, quando recebe um press kit de maquiagem de alguma marca, costuma dizer a quem está à volta antes de abrir:
— Está rezando?
Ana Paula é negra de pele escura. Receber produtos que não tenham seu tom é frequente. Com a caixa que recebeu do Boticário, com seu nome grifado, não foi diferente. Ao abrir, a constatação: de todas as bases que estavam ali, nenhuma servia para ela. Cansada de ver essa história se repetir, resolveu fazer um vídeo em que passava as maquiagens no rosto. Sem falar nada, apenas com a música “Preta d+”, de Tássia Reis, ao fundo. Postou no último dia 27.
Com a repercussão negativa, foi procurada pela marca, que a convidou para visitar a fábrica e pediu para fazer um posicionamento na própria postagem de Xongani. Perguntada sobre o que achava mais importante no pronunciamento, ela disse que queria um pedido de desculpas. A marca escreveu que a mensagem os tocava e que lamentavam “o desconforto causado pelo equivocado envio de produto”. Mas não se desculparam e não mencionaram o fato de a linha não ter bases para peles mais escuras.
— Eles falaram que tinham outras linhas que me contemplavam. Eu respondi que sabia, que conhecia as outras linhas. Mas quem decide o que eu vou usar não pode ser o racismo, tenho que ser eu — manda. — Grifaram Ana Paula Xongani naquela caixa, mandaram uma carta para mim, dizendo os benefícios do produto e como ele era revolucionário. Para quem? A Sojourner Truth fez um discurso (em 1851, na Women’s Rights Convention, nos Estados Unidos), foi o primeiro registro de feminismo negro, em resposta a um homem que dizia que mulheres eram frágeis e não trabalhavam. Ela, que tinha sido escravizada, falou: “Eu trabalho todos os dias. E não sou uma mulher?”. Quando eu abri a caixa, pensei: “É revolucionário para as mulheres, mas eu não sou uma mulher? Existe um mundo revolucionário e um mundo para mim?”. Isso é muito violento — analisa.
A questão da falta de produtos de maquiagem para a sua pele é frequente. Sempre que ela fecha um trabalho, sua assessora manda fotos e nomes dos produtos para a tonalidade de pele de Ana Paula aos clientes. Ainda assim, muitas vezes, ela chega ao set e o profissional não tem.
— Isso me maltrata muito. Já me aconteceu de falarem: “Ah, a gente tem maquiagem para pele negra, é que você é escura demais.” E aí eu tenho que me recompor e gravar. Outra vez, no set, um homem zoou o cara do áudio, porque ele tinha dread. Eu disse: “Mano, quando você está falando do cabelo dele, está falando do meu. Eu preciso trabalhar, mas para trabalhar não posso sofrer racismo.” Eu tenho esse bordão para as empresas que querem me contratar: “Só me garante que eu não vou sofrer racismo, o resto eu entrego.” E, modéstia à parte, eu sou boa — desabafa.
Ela acrescenta que as marcas no Brasil ainda estão bem longe de um ideal de diversidade. Mas que algumas estão dispostas a mudar para melhor. Uma pasta de dente incluiu pessoas negras em uma campanha depois que influenciadores e público reclamaram da falta de representatividade. Uma empresa de cosméticos tirou um produto de circulação depois de uma palestra interna em que Xongani observou que a linha voltada para peles negras só tinha tons claros. Um protetor solar com cor, desenvolvido em parceria com Katleen Conceição, dermatologista referência em pele negra, traz um produto que possibilita escurecer seu tom.
— Algumas têm a escuta aberta, e eu estou achando isso incrível. Quero fazer esse trabalho, estou disposta. Claro, de forma remunerada, justa e consciente. Se as marcas querem essa expertise da diversidade, elas precisam pagar por isso, como pagam por todas as outras etapas do trabalho — diz.
Xongani vem buscando construir uma nova narrativa em torno das pessoas com seu tom de pele. Mas a decisão de produzir esse tipo de conteúdo não foi fácil. Afinal, todas as vezes que ela viralizou, estava falando de racismo. A primeira foi em abril de 2016, com um vídeo (hoje com quase 70 mil visualizações) denunciando racismo no livro infantil “Peppa”, de Silvana Rando. Na história, a personagem principal é uma menina que tem um cabelo “resistente como fios de aço”, com o qual consegue arrastar uma geladeira. Sua mãe usa alicate para cortar os fios. A princípio, a autora negou que o conteúdo fosse preconceituoso. Em 2017, no entanto, após muitas críticas, resolveu tirá-lo de circulação. Muito procurada pela imprensa, a influenciadora ficou traumatizada com o tratamento que recebeu.
— Fui chamada de muitas coisas. Era de Hitler para baixo. Como é que eu, uma mulher negra, estava tirando de circulação o livro de uma mulher branca, que já tinha ganho o Prêmio Jabuti (por outro livro, “Rando”, em 2011)? Foi muito pesado, sofri muito. Pensava: “Não quero voltar para as redes para passar por isso. Já existe o racismo diário, eu ainda vou ampliar isso?” — lembra ela.
‘Mãe, é sempre assim. Mas não tem problema, eu não me importo. Eu gosto de brincar sozinha’
Ano passado, foi a vez de viralizar novamente, dessa vez falando sobre o racismo sofrido por sua filha, Ayo, na época com apenas 4 anos: no parquinho do prédio onde mora, ao tentar se aproximar de meninas para pedir para brincar junto, elas saíam de perto. Quando Ana Paula perguntou à filha se as amiguinhas não queriam brincar com ela, ouviu: “Mãe, é sempre assim. Mas não tem problema, eu não me importo. Eu gosto de brincar sozinha.” Gravou um vídeo em lágrimas. Hoje, a publicação tem quase 75 mil visualizações.
— Foi um extremo. Só fiz esse vídeo porque já estava gravando, parei para buscar a minha filha na escola e, na volta, aconteceu o que aconteceu. Subi para casa e estava tudo pronto. Era para eu continuar o penteado que estava mostrando, mas falei: “Não, eu vou contar” — recorda a influenciadora. — Naquela época, eu já estava mais consciente, por causa das coisas que ocorreram na época da Peppa. Decidi: “Não vou dar entrevista, o vídeo está aí, façam o que quiserem com ele.”
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Foi depois disso que ela decidiu reformular seu canal e fazer o que chama de ativismo afetivo. Seu objetivo é trazer para perto não só pessoas negras, mas pessoas que querem se transformar. Casada há dez anos, com uma filha de 6, ela tem pais ativistas e sua infância foi permeada cultura negra: fez coral afro, estudou iorubá, teve bonecas pretas, foi ao Museu Afro Brasil quando estreou (2004). Nunca alisou o cabelo e há dez anos usa dreads. É formada em Design de Moda. Apesar de ser atravessada pelo racismo todos os dias, se sentia uma mulher feliz. Xongani via as influenciadoras brancas ganharem popularidade com vídeos sobre amigos, viagens e coisas do gênero e se perguntava: “Por que eu não posso falar de felicidade?”.
— Eu disse: “Danem-se os números, mas eu vou fazer isso, vou ser eu, vou ser feliz na internet também.” Passei a fazer esses vídeos de potência, falando do meu cabelo, da minha filha, mas num lugar positivo, ou de uma viagem para Londres, qualquer coisa que eu queria falar que não seja racismo. Claro que, no final, eu sempre falo de racismo, porque todo dia isso está presente, mas não é o centro — explica. — E aí eu comecei a achar bom e sustentável emocionalmente, porque eu termino um vídeo desses e estou bem, não estou doente. Eu falo isso para todos os criadores pretos: as marcas não querem se associar a dor, elas querem se associar à potência. Olha que sinuca de bico: a gente sofre racismo todo dia, vai contar na internet e aí as empresas não querem você nas campanhas, porque não querem se associar a esse discurso. Aí você fica sem grana, fica em depressão por isso, porque sofreu do racismo e falou do racismo, e vira uma bola de neve — lamenta.
Ela sabe que, apesar da opção por outra narrativa, de vez em quando vão acontecer os vídeos com denúncias de racismo.
— Eu não sou de ferro. Existem as coisas que eu de fato quero fazer e as que me atravessam e são insuportáveis. Meu dia a dia é trabalhar para a revolução de ser uma mulher preta feliz, bem-sucedida, saudável. Mas algumas vezes vai ser impossível não falar de dor — reflete. — Eu não sou filha do racismo, e sim da luta. E a nossa luta é para isso, é para sorrir.
A trajetória de influenciadora de Ana Paula Xongani na internet começou quando ela passou a fazer vídeos explicativos para a marca de roupas de inspiração africana que tem com a mãe desde 2011, a Xongani. O nome, que significa algo como “se arrume” ou “fique bonita” em changane, língua do sul de Moçambique, foi adotado por ela como sobrenome, como afirmação de suas raízes africanas. No início, falava sobre as peças da loja, como turbantes e faixas. Depois, sobre o processo criativo. Mas foi percebendo que as clientes queriam saber mais sobre ela. Logo estava falando sobre diversos temas, como moda e beleza para mulheres negras.
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Foi por causa da marca que a cantora e compositora Maíra Freitas conheceu Ana Paula. Em 2014, ao ler numa reportagem sobre o Ateliê Xongani, entrou em contato em busca de um vestido de noiva com inspiração afro. Acabou se casando com um modelo criado pela loja para ela, que misturava capulana (estampa colorida típica de Moçambique) e o tradicional branco, além de outro para usar depois da cerimônia.
— Não fazia sentido eu me casar com o vestido branco. Encontrá-las foi incrível. É muito importante para a autoestima da mulher negra brasileira conseguir achar o caminho mais verdadeiro nessa roupa que é tão significativa — analisa ela. — Fiquei muito feliz vendo como a Ana Paula cresceu, como está fazendo sucesso. É uma mulher muito guerreira, batalhadora, verdadeira. A última postagem que vi foi sobre a linha do Boticário, que não tinha maquiagem para a pele dela. Foi muito corajosa. Acho essencial falar sobre nós, que não estamos no padrão europeu.
Referência para as mulheres negras
Com o sucesso na internet, Ana Paula Xongani foi convidada para apresentar o “Se essa roupa fosse minha”, um programa de consumo de moda consciente, ao lado de Giovanna Nader, Marina Franco e André Carvalhal. A série estreou em agosto e teve 13 episódios.
— Nunca achei que fosse possível esse lugar, onde eu estou falando da minha potência enquanto criadora de moda, produtora de moda, artesã. Sempre sonhei muito, mas trabalhar na TV foi acima do que eu sonhei — comemora. — Eu estava encantada por tudo e todas as profissões. Colei em cada uma das 40 pessoas que estavam trabalhando no set para aprender com elas.
A mãe fechou a loja durante os dias de gravação e a acompanhou, o que para Ana Paula foi muito importante, inclusive porque as duas eram as únicas pessoas negras ali.
— Fazer a série me deu ânimo. Eu falei: “Eu também sou desse lugar.” Eu me senti bem, confortável, boa, segura — diz. — Minha mãe chorava muito. Ela falava: “Por que eu não levei você para a TV antes? Você é muito boa.” Eu dizia: “Mãe, foi no tempo certo.” No fundo, eu sempre quis isso. Mas meu teto de sonho dizia: “Calma, TV também já é demais.” Porque, por mais que eu ache que o trabalho da internet e o da televisão mereçam o mesmo respeito, na TV as pessoas ainda são selecionadas. Ela ainda é um lugar muito elitizado — analisa.
Hoje, aos 32 anos, Ana Paula Xongani é uma referência, sobretudo para mulheres negras. Para a atriz Taís Araújo, ter alguém fazendo o trabalho que a influenciadora realiza hoje é importante.
— A presença na Ana Paula falando sobre moda e comportamento é fundamental. Aprendo muito com ela, além de me identificar com muitos assuntos — comenta.
A também influenciadora Maíra Azevedo, a Tia Má, observa que Ana Paula tem uma formação pautada na coletividade e fala por um grupo que ainda carece muito de representatividade.
— Mulheres pretas retintas sempre foram, e ainda são, apagadas dos espaços de poder, e nunca foram associadas à beleza. Xongani faz parte de um grupo que vem trabalhando isso muito bem nas redes sociais e na televisão. Ela é necessária — analisa.