Esse texto não foi escrito tão logo encerrou-se a cerimônia do Oscar. Um dos motivos para isso é que entendemos que precisamos refletir mais sobre as coisas que ocorrem ao nosso redor. Principalmente quando essas não demandam urgência. E para nós, jovens negros brasileiros, não há urgência para tecer linhas sobre um prêmio que pouco tem a ver conosco. Contudo, não nos abstemos de tecer nossas considerações sobre o que ocorreu no 88º Oscar. Não nos abstemos porque também temos coisas a dizer sobre a falta de diversidade nos espaços midiáticos . É obvio que pouco importa para Academia a nossa opinião, aliás sequer a opinião dos atores e diretores negros importa para Academia, que dirá a nossa.
Enviado por Caio César e Winnie Bueno via Guest Post para o Portal Geledés
As reflexões da negritude sobre o Oscar são tão pouco relevantes que em mais de 80 anos de premiação, menos de 20 pessoas negras consagraram-se vencedoras nas principais indicações (ator e atriz principal, ator e atriz coadjuvante). A primeira pessoa negra a conquistar a estatueta foi Hattie McDaniel, como atriz coadjuvante em 1939, com o filme “E o vento levou”. O prêmio seguinte veio apenas em 1964, com Sidney Poitier, como melhor ator. Em 82, Louis Gossett Jr levou como ator coadjuvante e em 2002, Halle Berry foi a primeira mulher negra a ganhar o prêmio de melhor atriz. Conseguiram acompanhar a passagem do tempo? 2002, menos de 20 anos atrás.
É fato que asiáticos não ganham Oscars, latinos não ganham Oscars, outras etnias não ganham Oscars. Mas, é fato que os Estados Unidos são um país com uma contundente população negra e o estranhamento a ausência de indicações e ao baixo número de premiações em quase nove décadas de cerimônias não é sem razão. A ausência de indicados se repete, ano após anos, com raras exceções. 2016 não foi diferente. Assim como em 2015 nenhuma pessoa negra foi indicada às principais categorias. A classe artística negra, protagonizada por Jada Smith e Spike Lee, organizou um boicote à premiação. Com direito a Snopp Dog mandando um sonoro palavrão para a Academia e suas estatuetas.
O Oscar é uma premiação hegemonicamente branca. Feita por brancos para outras pessoas brancas. O cinema ainda é. Tanto é assim que não há grandes questionamentos sobre atores brancos interpretando personagens históricos de outras etnias(ou alguém acredita realmente que a Cleópatra, uma rainha africana, pudesse carregar os traços de Elizabeth Taylor?). De outro lado, basta mencionar-se a possibilidade de um ator negro interpretar um personagem que a sociedade imagina como branco para surgirem milhares de revoltosos. Lembram do Idris Elba e o 007? E a polêmica racista instaurada com o Finn de Star Wars? É um privilégio da branquitude poder transitar livremente no cinema, no papel que for. E os privilégios das pessoas brancas fazem com que a preocupação com representatividade nas indicações ao Oscar passe longe de suas rotinas. A razão é simples : eles sempre estiveram lá representados. Colocam meia dúzia de negros, com trajetórias brilhantes, para apresentar outra meia dúzia de prêmios (de preferência de menor relevância) e está ótimo. Dessa vez, escolheram Chris Rock para ser o apresentador do evento. Escolheram antes do boicote. Escolheram sabe-se lá porque. Fato é que o boicote protagonizado pelos atores e atrizes negras deu o tom do discurso de apresentação de Chris.
Cidinha Silva escreveu sobre o monólogo de Chris Rock, uma análise bastante feliz na nossa opinião. Quem acompanha a carreira do humorista sabe que seu trabalho é ácido, pontuado por tiradas sarcásticas e muitas vezes politicamente incorretas. Chris Rock peca ao, por exemplo, utilizar comparações sexualizadas da cantora Rihanna. Não havia a menor necessidade da comparação. Por outro lado, acerta quando diz o que todos sabem : seguimos morrendo, sendo esfolados, estupradas, eliminados pela polícia. E a branquitude privilegiada não se importa com isso. Tanto não se importa que ri e aplaude tudo que Chris Rock diz em forma de piada, mas que em verdade são a dura realidade da população negra. Conseguem confortavelmente gargalhar enquanto se fala da morte de pessoas negras, brutalmente assassinadas pela polícia que lhes garante o privilégio de estar confortavelmente sentados em poltronas apeluciadas esperando seus prêmios.
Chris Rock provoca a própria Academia, questionando qual é a razão de existir uma divisão de gênero nas categorias de atuação. Há até uma pequena nota sobre a tokenização, bastante perceptível quando o anfitrião desta cerimonia do Oscar sugere a criação de uma categoria “melhor amigo negro”. Vai além, de forma sarcástica aponta para o fato de serem sempre os mesmos negros tendo a rara oportunidade de atuar em grandes produções. O próprio questiona o que há de diferente nessa premiação em relação as outras. Pergunta, mas não responde, embora para alguns desavisados possa parecer que ele responde e desprestigia o boicote. Nós ousamos responder que a diferença é que nos últimos anos, a negritude tem estado cada vez menos silenciosa. A diferença é que nossos bastas e nossas reivindicações tem alcançado outros lugares. Nossas lutas também. E isso não significa que estamos dando mais importância para estatuetas douradas do que para o ceifamento constante das vidas de negros e negras.
Estamos apenas cada vez mais cientes que é preciso dizer basta para todas as consequências do racismo.
A Academia, por outro lado, no discurso proferido pela presidente da mesma, se utiliza de um dos maiores mártires da negritude estadunidense para justificar, de mandeira muito mesquinha, a ausência de negros nas indicações do Oscar. Utiliza as palavras de Martin Luther King para fazer um “mea culpa” que não convence ninguém. Não há nada de novo no front, e o que foi, pra muita gente, o Oscar mais político dos últimos tempos não passa de uma faláicia, onde a Academia tenta passar uma mensagem de “não somos racistas” trazendo um grande número de atores e atrizes negras para entregar prêmios, mas sem nenhum negro para ter a oportunidade de receber um prêmio. Passada essa edição do Oscar a indústria de cinema americano continuará a privilegiar diretores brancos, que contam histórias a partir da perspectiva branca, com atores brancos e mantendo a lógica de relegar a atores negros papéis secundários, de preferência esteriotipados e sem a possibilidade de render grandes atuações. Se para o Leonardo Di Caprio, do alto de seu alvez e claros olhos, foi necessário uma dezena de atuações brilhantes para ser reconhecido com uma estatueta, imaginem o que sobra para Will Smith?
O caminho, para a classe artística negra, talvez seja o sugerido por Jada e Snopp: dane-se a gente branca toda. O Oscar é sempre deles mesmo. Vamos nós, negros e negras, valorizar nossos produtores, artistas, diretores e criar as nossas próprias premiações. Aliás, vamos valorizar o cinema negro-africano. Importemo-nos mais com Festival Pan Africano de Cinema de Burkina Faso; Festival de Cinema Internacional de Cabo Verde; Encontro de Cinema Negro do Rio de Janeiro; e o Festival de Cinema de Angola. Premiações que valorizam muito mais o cinema negro mundial, mas que muitos de nós não conhecemos porque estamos focados eternamente em nos encaixar em premiações brancas, que definitivamente não nos querem, não nos aceitam. Vamos assistir filmes produzidos por negros e negras para pessoas negras, se ver é importante, buscar se ver em outros lugares, lugares que são nossos, é mais importante ainda. Talvez assim, não iremos bancar a Glória Pires e teremos muito mais o que dizer e o que comentar sobre premiações cinematográficas e a sétima arte. Quantos filmes e produtores negros você viu no Netflix essa semana? Mais do que problematizar o discurso do Chris Rock no Oscar das Pessoas Brancas, cabe a nós refletir sobre o quanto valorizamos aquilo que é produzido pelos nossos.