Apenas metade dos processos de racismo iniciados em 2017 tiveram desfecho na Justiça do Rio

Em mensagem enviada em um grupo de alunos, um colega de turma de Fatou Ndiaye, na época com 14 anos, sugeriu que venderia a jovem na internet. Em outra, o interlocutor dizia que “quanto mais preto, mais preju”. Aquela não foi a primeira vez que a adolescente ouviu pessoas tentarem diminui-la pela cor da sua pele. Filha de senegaleses, ela se recorda de receber xingamentos por ser negra desde criança. No último episódio, em maio de 2020, Fatou e sua família denunciaram o caso à polícia e o processo na Justiça segue em aberto. Dados obtidos pelo EXTRA via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que o caso está longe de ser isolado: em média, entre 2017 e 2021, o Tribunal de Justiça do Rio recebeu uma ação relacionada a crimes raciais a cada 35 horas.

A partir do levantamento, foram analisados todos os 266 processos que tiveram início em 2017. Metade deles teve um desfecho: 79 foram finalizados após um acordo feito pelo réu, em 41 deles os acusados foram absolvidos e em 14, condenados.

O levantamento feito pelo EXTRA mostra ainda que das ações de 2017, ao menos 59, o que corresponde a 22% do total, estão em andamento, sem que ninguém tenha sido responsabilizado. Já 34 processos (13%) foram suspensos sem que o réu tenha tomado conhecimento das acusações contra ele. O número de processos na Justiça não dá a real dimensão do problema. Para chegar à esfera criminal, um caso precisa ser investigado pela Polícia Civil, denunciado pelo Ministério Público e, por último, a denúncia aceita pela Justiça. O crime de injúria racial — no qual é enquadrada a maioria dos casos — ainda encontra outra barreira: é necessário que a vítima procure as autoridades e manifeste que deseja que o acusado responda criminalmente.

Os adolescentes que ofenderam Fatou respondem a um processo na Vara da Infância e Juventude que está em segredo de Justiça. Ela e sua família dizem que já não esperam nenhuma resposta da Justiça brasileira, mas, há seis meses, eles pensavam diferente. Segundo Mamour Sop Ndiaye, pai de Fatou, a visão mudou depois de comparecerem a uma das audiências do processo e perceberem que eram os únicos negros na sala.

— O sistema quer que você fique frustrado, magoado e mais vítima, mas, como dizia o Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”. Mas o mundo está evoluindo de um jeito que o racismo não será mais tolerado — complementa seu pai.

— Foi assim que ensinaram a tratar os negros, como se fôssemos inferiores, não humanos. Ainda seguimos essa tendência, que existe desde a fundação do país. Sempre tive meus mecanismos de defesa muito claros. No momento que eu soube das mensagens, já sabia o que fazer e como lidar com isso — explica Fatou.

Acusados fazem acordos

Quase a totalidade dos processos em curso é por injúria racial, que consiste em ofender a honra ou a dignidade de uma pessoa com a utilização de elementos que podem ser, por exemplo, de raça, cor ou religião. A pena é de um a três anos de prisão, além do pagamento de multa.

Nos casos em que a pena é de até um ano, o Ministério Público, com base na Lei 9.099 de 1995, dos Juizados Especiais Criminais, pode oferecer acordos aos réus. Foi o que aconteceu em 30% das ações iniciadas em 2017, nas quais foi proposta a suspensão condicional do processo. Nessa hipótese, o acusado aceita cumprir algumas obrigações que são impostas pelo juiz, e a ação então é arquivada.

Conclusões das ações criminais de 2017

A garçonete Rosilene Carvalho, conhecida como Rosi, lembra com detalhes da noite de 28 de março de 2021. Na correria da entrega dos pedidos no bar, ela ouviu Ana Paula Castro Batalha exigir que a água comprada fosse entregue fechada, para evitar que Rosi, uma mulher negra, cuspisse dentro da garrafa. No fim do expediente, a garçonete, outra funcionária e uma cliente afirmam ter sido ofendidas pela mesma mulher, que foi presa em flagrante, acusada de injúria racial.

A garçonete Rosilene Carvalho, conhecida como Rosi, lembra com detalhes da noite do dia 28 de março de 2021 Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

O caso chegou à Justiça, e o Ministério Público ofereceu um acordo para a acusada: escrever uma carta admitindo ser autora das ofensas e o pagamento de R$ 2,1 mil, que seria dividido entre as três vítimas. A ré aceitou e escreveu a carta assumindo o erro, contudo, reforçou não se lembrar do crime, já que havia ingerido bebida alcoólica e, misturando-a com remédios controlados, saiu de sua “normalidade”.

Após as vítimas recusarem o acordo, o caso voltou para análise do MP, que manteve a proposta apenas com a carta por considerar o crime de “difícil dimensão do dano”.

— Cada vez que vejo uma notícia dessas, a cicatriz volta a sangrar. Parece que é comigo e eu volto a passar por tudo aquilo novamente. Aquelas palavras grudam e você não pode absorver. Não podemos ter medo, seja quem for, precisamos colocar a cara a tapa — lamenta a garçonete Rosilene.

Pai de santo Juliano Larra foi vítima de ‘racismo religioso’ Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo

‘Ficar calado machuca’, diz vítima

A procuradora de Justiça Patrícia Leite Carvão, coordenadora-geral de Promoção da Dignidade da Pessoa Humana do MP-RJ, ressalta que ataques a terreiros de candomblé também podem ser tratados como “racismo religioso”. Em alguns casos, os réus podem responder por injúria racial ou pelo crime de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito por religião, previsto na Lei de Racismo.

— Os ataques a terreiros são chamados, talvez um pouco por ignorância, de “intolerância religiosa”. Hoje eu não tenho a menor dúvida: é racismo religioso. Isso significa atacar uma cultura, memória e ancestralidade de determinada etnia. Toda a estrutura precisa ser repensada para a qualificação dessas condutas — diz Patrícia.

Em 2018, após iniciar uma das sobrinhas no Candomblé, o pai de santo Juliano Larrate teve seu barracão e casa invadidos por sua irmã e um grupo, segundo ele, contratado por ela. Emocionado, ele lembra que todas as imagens, símbolos, vestimentas e instrumentos musicais foram destruídos, além de ter ouvido ameaças. O caso virou processo em 2020 e segue em aberto.

— Na hora, não retribuí os xingamentos, fiquei calado, mas esse “ficar calado” machuca. Gostaria muito de ter uma resposta da Justiça para, quando alguém me perguntar sobre o caso, eu dizer que houve, sim, uma pena — diz.

Procurada, a defesa de Ana Castro Batalha afirmou que só se manifestará em juízo. Os demais acusados não responderam. O MP disse, em nota, que as duas hipóteses de suspensão do processo, por acordo ou falta de citação do réu, “são previstas no ordenamento jurídico, aplicáveis a todos os processos que se encontrem naquelas hipóteses. Já o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não respondeu.

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