Apesar da escola

Instituições de ensino são pouco acolhedoras; discriminação contínua é prima da evasão

Por FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo

Foto: Marta Azevedo

Minha educação formal carrega as dores e as delícias do ensino público, já tratei disso nestas páginas. O antigo primário completei na Escola Municipal Francisco Sertório Portinho; o ginásio, na Mato Grosso. Ficam ambas em Irajá, subúrbio carioca onde fui criada. São as duas da prefeitura. O segundo grau técnico fiz na Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), mantida pelo IBGE, órgão oficial de estatísticas do país. Na juventude, cruzava a Baía de Guanabara até Niterói, para estudar jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Sou produto da escola pública. Apesar da escola pública.

O advérbio está posto para escancarar o ambiente pouco acolhedor das instituições de ensino. A intolerância não é exclusiva da escola pública, mas mora nela. Eu experimentei. Não é fácil driblar o preconceito para manter-se vinculada a um sistema educacional sem compromisso com a inclusão. Espreita os estudantes um padrão incompatível com a diversidade de cor, credo, características físicas, arranjos familiares, endereço, orientação sexual, identidade de gênero. Colegas e professores falam, educadores consentem.

Já adulta, constatei que na escola se dá o primeiro contato das crianças com o preconceito. Ainda hoje, século XXI adentro, imprime-se nos miúdos a marca da baixa autoestima. Tom de pele, tipo de cabelo, nariz, lábios, peso, altura, deficiência física, jeito de vestir, símbolos religiosos são pretextos para evocar a supremacia de um grupo sobre os demais, os diferentes. Escreveu não leu, menina negra na escola é macaca; cabelo afro desamarrado, depósito de piolho; preso em chiquinhas, bombril, palha de aço. Tem pele negra, nunca será a sinhazinha do “arraiá”, ainda que venda tíquetes da rifa junina aos milhares.

Na escola brasileira, lápis cor de pele é salmão; menina de shortinho, vagabunda. Joga futebol e não tem pênis, é sapatão. Nasceu com pênis e não joga futebol, bichinha. Usa fio de contas, é macumbeiro, filho do demônio, chuta-que-é-macumba. Usa óculos, é quatro olhos; está acima do peso, rolha de poço. O pai se foi, tem família desestruturada. Repetiu de ano, é retardado. Engravidou, é piranha. Não tem dinheiro, é favelado.

Fui chamada de macaca na escola. E de cabelo de bombril. E de brinco de penico. Eu usava o par de brincos azul e dourado que fora da minha avó materna e se parecia com uma xícara. Eu tinha 11 anos e tomei horror do acessório. Eu nunca contei que fui batizada na umbanda.

No ginásio, eu tinha uma melhor amiga que dizia que o pai era da Marinha e vivia viajando. Eu disse a ela que meu pai também era marinheiro e nunca vinha em casa. No fim da adolescência, me dei conta que Maria Cristina e eu nos blindávamos com a mesma ilusão — não gosto de chamar de mentira. Ela era criada pela avó; meus pais eram separados. Faltavam alunos negros com quem eu me identificasse na Ence e na UFF. E professores. E referências históricas e bibliográficas.

Na primeira frase desse relato, mencionei delícias que vivenciei. Nas escolas por onde passei, encontrei figuras generosas e inspiradoras. Foram todas fundamentais — juntamente com Dona Anna, minha mãe — para me tornar quem sou. Mas foram indivíduos, não o sistema.

É na crueldade do modelo indiferente ao preconceito que a intolerância se perpetua. E atravessa gerações. O último exame do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês) mostrou que um em cada cinco (17,5%) alunos brasileiros na faixa dos 15 anos sofrem algum tipo de bullying várias vezes ao mês.

A discriminação contínua é prima da evasão escolar. Dos 6 aos 14 anos, quase todas as crianças brasileiras de pele branca (95%) ou negra (94,3%) estão no ensino fundamental, segundo o IBGE na Síntese de Indicadores Sociais 2016. No entanto, entram no ensino médio 67,8% dos adolescentes brancos de 15 a 17 anos e 53,7% dos pretos e pardos da mesma faixa etária. A escola precisa explicar por que, tendo recebido os pequeninos, deixa-os partir. Intolerância é uma hipótese.

 

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