Habitação coletiva indígena foi combatida por religiosos nos anos 1940 e 1950
Por Fabiano Maisonnave, na Folha
Índios do alto Rio Negro durante festa de inauguração de uma Maloca, na cidade de São Gabriel da Cachoeira, interior do estado da Amazônia. Foto: Eduardo Anizelli /Folhapress
SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM) – Quando o baniua Luiz Laureano nasceu, em meados dos anos 1940, toda a sua aldeia cabia na maloca. Então vieram os missionários salesianos e evangélicos. De repente, a habitação coletiva virou pecado —e que cada família tivesse a sua casa.
A mudança foi avassaladora. Após o processo de cristianização do Alto Rio Negro, entre os anos 1920 e 1950, contavam-se nos dedos as aldeias com malocas, todas em áreas de difícil acesso, na fronteira com a Colômbia.
Já morando na cidade de São Gabriel da Cachoeira, Laureano concluiu que a mudança de hábito não fazia sentido. Em 2005, decidiu erguer a sua própria maloca, na cidade mesmo. Na quinta (19), Dia do Índio, a liderança baniua reinaugurou a maloca com uma grande festa na comunidade Itacoatiara-Mirim, a cerca de 15 minutos de carro do centro de São Gabriel.
A 850 km em linha reta a oeste de Manaus, trata-se do município mais indígena do Brasil, com 23 etnias que compõem 90% da população de 44 mil habitantes.
Foi o fim de cinco meses de trabalho, que contou com voluntários e até um crowdfunding na internet que arrecadou R$ 20 mil. Parte do dinheiro foi usada para buscar a palha da palmeira caraná, a um dia de barco da cidade.
“Estou evangélico, mas não deixo a minha cultura. Não sou filho de Abraão, sou filho da cachoeira Uapui”, diz Laureano, em referência à origem mítica de seu povo.
O baniua conta que os missionários chegaram à sua aldeia em 1947. Além de convencer de que viver sob o mesmo teto era coisa de Satanás, os missionários impuseram a roupa e roubaram as pedras sagradas dos pajés. “Hoje não tem mais pajé, benzedor, cacique”, lamenta.
“Eles eram o Taleban católico”, diz o assessor do Instituto Socioambiental (ISA) Pieter-Jan van der Veld. “A maloca era o centro da cultura. Quando os missionários queriam mudar a cultura, o primeiro alvo era a maloca.”
Essa não é a única maloca de São Gabriel —a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro também tem a sua. Foi construída por Laureano, um dos poucos que mantêm o conhecimento na região.
Há 21 anos no Alto Rio Negro, Van der Veld, 54, diz que algumas aldeias voltaram a ter malocas, graças ao surgimento do movimento indígena organizado e à linha mais moderada adotada pela Igreja Católica.
O processo, no entanto, é lento. Há 20 anos, havia 5 malocas. Atualmente, são 11, na conta de Van der Veld. Em todo Alto Rio Negro, são 420 comunidades indígenas.
As novas malocas mudaram de função. De moradia, passaram a ser usadas apenas para festas, reuniões, pajelanças e outras atividades tradicionais.
Feliz com a reinauguração, Laureano diz que abrirá a sua maloca a visitantes interessados na cultura indígena. E que, mesmo sem os cinco filhos, continuará morando ali com a mulher. “Não gosto de casa pequena.”
[O jornalista viajou a convite do ISA (Instituto Socioambiental)]
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