Apropriação Cultural

Muita coisa já foi escrita sobre apropriação cultural, essa discussão realmente não é nova. Mas como apropriação cultural é um negócio que parece continuar rolando infinitamente, escrever os parágrafos a seguir foi inevitável.

Por  Bárbara Paes Do Ovelha Mag

A apropriação cultural acontece quando elementos de uma cultura são adotados por indivíduos que não pertencem a esta cultura. Isso inclui o uso de acessórios e roupas, a exploração de símbolos religiosos, o sequestro de tradições e de manifestações artísticas. A apropriação cultural é especialmente terrível quando se trata de elementos de uma cultura historicamente marginalizada e explorada.

A linha entre apropriação cultural e intercâmbio cultural é tênue. Intercâmbio cultural é um fenômeno natural e bem frequente. Mas a apropriação cultural é um processo bem problemático que precisa ser mais bem compreendido, pois dá uma margem enorme para que elementos de uma cultura sejam banalizados, trivializados e estereotipados. Um grande problema de sequestrar elementos de culturas não dominantes e adotá-los de maneira descontextualizada, é que as pessoas que fazem a apropriação se beneficiam dos aspectos que julgam “interessantes” de uma cultura, ignorando os significados reais desses elementos, enquanto os membros dessa cultura tem que lidar com opressão diariamente.

Nos últimos tempos, cada vez mais gente passou a reconhecer a apropriação cultural como uma coisa problemática, mas ainda vemos muita gente apropriando elementos de outras culturas como se eles fossem apenas tendências passageiras. No começo deste ano, a Amandla Sternberg (que fez o papel da Rue no Hunger Games) e uma amiga chamada Quinn Masterson produziram um vídeo para a aula de história delas que ficou bem famoso. Intitulado “Don’t Cash Crop My Cornrows, o vídeo postado no tumblr da Amandla é basicamente uma aula sensacional (e bem completa) sobre apropriação cultural e cultura negra.

Nesse vídeo, a Amandla fala do papel do cabelo na afirmação da identidade negra e como isso se relaciona com a cultura do hip hop. A Amandla eloquentemente descreve o processo que levou muitas marcas e celebridades a se apropriarem da cultura negra, explicando que pessoas brancas começaram a usar acessórios, roupas e penteados associados ao hip hop conforme ele se popularizou.

Isso me leva ao recente caso de apropriação cultural da Kylie Jenner. Ela, assim como muitas outras celebridades brancas, sempre dá umas cagadas muito sérias quanto o assunto é raça e apropriação cultural. Em janeiro, a menina postou fotos usando dreads; em abril, rolou um incidente com blackface; e na semana passada, ela postou uma foto usando cornrows. A Amandla respondeu a essa foto da Kylie fazendo um post no instagram, onde ela explica que enquanto as mulheres brancas capitalizam e são elogiadas ao se apropriarem de elementos da cultura negra, mulheres negras continuam submetidas a fetichismo, violência e constantes ataques à sua aparência. Segue um vídeo muito bom da Chescaleigh (maravilhosa, vocês devem conhecer do “Shit White Girls Say to Black Girls”) contextualizando e comentando esse caso:

Um detalhe muito importante da foto da Kylie, é que a legenda foi escrita em ebonics. Mais uma vez, a apropriação cultural, dessa vez por meio da linguagem, abre portas para que muitos estereótipos sejam perpetuados. Ao usar essa variação coloquial do inglês americano, a Kylie reafirma a narrativa midiática de que todos os negros americanos falam de uma determinada maneira.  A linguagem tem um papel importante na apropriação da cultura negra. A voz natural da Iggy Azalea, por exemplo, é um sotaque rural australiano, mas assim que ela pisa em um estúdio, ela começa a cantar com uma voz que tenta imitar uma linguagem normalmente associada a mulheres negras americanas. Ela reproduz trejeitos, sotaque e vocabulário de forma caricatural, interpretando uma personagem com o que ela imagina ser uma representação da mulher negra americana.

O que muita gente não leva em consideração ao fazer apropriação cultural é a forma com que essas culturas foram tratadas historicamente.

Um exemplo de apropriação da cultura negra que todo mundo conhece são os turbantes. De uns tempos pra cá, muitas revistas, editoriais e marcas começaram a mostrar os turbantes como uma nova “tendência”. Mulheres negras sempre usaram turbantes, não se trata de uma tendência cool que surgiu no Instagram para meninas brancas parecerem mais descoladas. Muita gente branca ignora o significado dos turbantes para a identidade da mulher negra. Se considerarmos também como as religiões de matriz africana são perseguidas na sociedade brasileira, é impossível tratar os turbantes como meros acessórios, despidos de significado.

Vivemos em uma sociedade onde as escolhas estéticas e capilares de mulheres negras são escolhas políticas. Isso significa que o uso de turbantes e a valorização do cabelo natural devem ser vistos como resistência, e não como tendências passageiras.

Outro aspecto bem perverso da apropriação cultural é que, muitas vezes, elementos de uma cultura são comercializados e capitalizados, mas em nenhum momento membros dessa cultura se beneficiam desse processo de maneira significativa.  A indústria da moda é um grande exemplo disso. Sabemos como as mulheres negras têm sido sistematicamente excluídas da moda. Não faz muito tempo, a modelo Nykhor Paul, fez uma declaração no seu Instagram, onde afirmou estar cansada de ter que constantemente se desculpar por ser negra. Além de lembrar que pouquíssimas modelos negras são contratadas, Nykhor fala de como a grande parte dos maquiadores não estão preparados para maquiar modelos negras, nunca carregando produtos adequados para peles escuras. Nesse cenário de baixíssima representatividade negra, muitas grandes marcas lançam coleções com estampas africanas, ou de inspiração africana, enquanto empregam uma quantidade super pequena de pessoas negras como modelos e estilistas.

Uma coisa que me incomoda bastante é que ao mesmo tempo em que vemos revistas de moda, grandes marcas, gravadoras e artistas fazendo apropriação cultural, em especial da cultura negra, vemos pouca disposição dessas instituições para combater e desconstruir o racismo. Esse apoio seletivo é desconcertante.

É justamente disso que a Azealia Banks tá falando quando critica a Iggy Azalea por se apropriar do rap e, simultaneamente, se omitir de posicionar contra a violência policial direcionada à juventude negra. É justamente essa a crítica da Amandla na foto da Kylie, uma pessoa que se apropria de características e de partes da cultura negra, mas se recusa a usar sua posição de poder para ajudar americanos negros no combate ao racismo. É justamente esse o problema com as festas pseudo-descoladinhas com temática afrobrasileira. Esse negócio de querer “prestar homenagem” por meio de apropriação cultural, enquanto rola o genocídio da população negra é o fim. Podem parar que já deu.

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