Livro mostra como os bailes de soul ajudaram a construir o movimento negro brasileiro

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Jovens cariocas aprenderam, dançando, o beabá do empoderamento. (foto: Reprodução)

‘1970 – Movimento Black Rio’, dos jornalistas Luiz Felipe Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe, será lançado nesta terça-feira, 29, em BH

Por Ângela Faria, UAI

Com cabelos ouriçados e muito soul no pé, eles enfrentaram – ao mesmo tempo – a ditadura, a intelligentsia, a direita e a esquerda. Venceram. A cada fim de semana, milhares de jovens se reuniam em bailes suburbanos no Rio de Janeiro, nos anos 1970, para dançar hits do soul vindo dos Estados Unidos.

1976 – Movimento Black Rio (Editora José Olympio), escrito pelos jornalistas Luiz Felipe Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe, prova que as noites de balada não eram só festa para os súditos brasucas de James Brown. Aliás, ”Sex Machine”, em pessoa, gravou vinhetas para programas radiofônicos de DJs ligados à cena soul fluminense. Nesta terça-feira, 29, o livro será lançado em BH.

Celebrando o orgulho de sua negritude, jovens cariocas aprenderam – dançando – o beabá do empoderamento. Algumas dessas lições se inspiraram na luta dos Panteras Negras, a organização política que radicalizou a luta contra o racismo nos EUA. Há 40 anos, suburbanos brasileiros já praticavam a política de identidade tão reverenciada neste século 21. Curtiam filmes blaxploitation, com heróis e heroínas negros, saudavam-se com o braço erguido e punho cerrado, ostentavam vistosas cabeleiras black. Muitos daqueles garotos se tornaram militantes da luta contra o racismo no país.

 

A Zona Sul e o Brasil custaram a ouvir o ensurdecedor recado das caixas de som das gigantescas festas que rolavam nos clubes Renascença, Cascadura, Bonsucesso e Cassino Bangu, entre outros espaços da periferia carioca e da Baixada Fluminense. Nada daquilo existia para o ”mundo oficial” – da política e da cultura – até a publicação, em julho de 1976, de uma reportagem de Lena Frias (1944-2004) no Jornal do Brasil.

Em Black Rio – O orgulho (importado) de ser negro no Brasil, Lena e o fotógrafo Almir Veiga mostraram que 1,5 milhão de pessoas frequentavam festas animadas por 300 equipes de som, ouvindo a nata do soul americano. Até o New York Times noticiou o fenômeno brasileiro. Peixoto e Sebadelhe explicam, no livro, que não se tratava de mera ”onda”, mas de uma espécie de ”trincheira” cultural de gente orgulhosa de sua cultura e de sua cor.

Bordoadas vieram à esquerda e à direita. Agentes da repressão passaram a circular pelas pistas, vigiando ”subversivos”, suspeitava de ”aliados” dos Panteras Negras. Para delegados, festas black tinham o intuito de arregimentar pretos contra os brancos. A Polícia Federal pôs fim a várias festas. Recolhidos em camburões nas imediações dos bailes, jovens negros eram humilhados. ”Enjaulados”, eram exibidos para vizinhos, parentes e amigos, relembra Movimento Black Rio.

Ditadura Trincheira da luta contra a ditadura, o jornal esquerdista Pasquim ironizava aqueles pretos. Acusou o movimento soul de servil ao neocolonialismo e a interesses dos EUA. O crítico Roberto M. Moura aconselhava o jovem a se voltar para o samba e para ”os verdadeiros valores e cultura negros do Brasil”. Pai da teoria da democracia racial, o sociólogo Gilberto Freyre espinafrou: ”Trata-se, mais uma vez, de introduzir, num Brasil que cresce plena e fraternalmente moreno, o mito da negritude”. E advertia que o país precisava estar preparado para o trabalho feito contra ele ”não apenas pelo imperialismo soviético, mas também pelos Estados Unidos”.

Diretor artístico da gravadora Warner, André Midani teve de prestar contas aos militares. O executivo era suspeito de financiar a revolta nas favelas brasileiras, por meio da multinacional e do movimento negro norte-americano. Reportagens na grande imprensa se sucederam, tachando a garotada soul de alienada, de massa de manobra ao imperialismo dos EUA e de voltar as costas para a legítima cultura brasileira.

Na verdade, argumentam os autores de Movimento Black Rio, não havia ali nada de novo no front racista. Em 1970, o maestro negro Erlon Chaves ousara encerrar a canção Eu quero mocotó, no Festival Internacional da Canção (FIC), aos beijos com dançarinas louras. Realizado diante do Maracanazinho lotado, o happening não rendeu ao músico apenas dias na prisão. Proibido de trabalhar, o maestro foi aconselhado a sair do país.

ELIS

 

Bem antes de o JB ”descobrir” os bailes cariocas, o soul americano já havia se instalado lucrativamente no mainstream nacional: Elis Regina, em 1971, gravou a canção Black is beautiful; o negro Toni Tornado estourou com BR-3, em 1970; Roberto Carlos lançou Todos estão surdos, em 1971. Wilson Simonal, em 1967, fez sucesso com seu Tributo a Martin Luther King. E Tim Maia já conquistava corações. O Movimento Black Rio bebeu em todas essas fontes.

O ”problema” foi a ousadia de mobilizar multidões de pretos e pobres na contramão da ”fraternidade morena”, em plena ditadura. Baile é baile, assembleia é assembleia, mas inegavelmente politizava-se ali a questão racial. ”A verdade é que você/ tem sangue crioulo”, escreveu o compositor Macau, indignado depois de ser preso e humilhado, no Rio de Janeiro, por causa de sua cor. O verso de Olhos coloridos, hino do soul brasileiro, nada tinha de metáfora. Falava de um policial ”moreno” e racista.

Personagens do livro, o músico Macau, o produtor Dom Filó (um dos principais articuladores do Movimento Black Rio) e os DJs Ademir Lemos, Big Boy, Messiê Limá, Mister Funky, Corello e Paulinho, entre tantos outros, deram preciosa contribuição ao movimento negro no Brasil. Afinal, nos bailes comandados por eles, garotos aprenderam a se orgulhar de sua origem africana. Gerson King Combo, Toni Tornado, Luiz Melodia, Oberdan Magalhães, Banda Black Rio, Tim Maia, Cassiano e Lady Zu são artistas que ajudaram a escrever essa história.

Passados 40 anos da reportagem de Lena Frias, é fato: deu em nada a tão propalada ”guerra ideológica” entre a ”legítima” batucada nacional e o importado groove ”neocolonialista”. Aliás, a quizumba acabou em samba soul, hoje celebradíssimo.

Os herdeiros do suingue
Traçando uma espécie de ”linha evolutiva” da música preta brasileira, o livro de Luiz Felipe Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe mostra que os bailes cariocas setentistas são ”avôs” do funk carioca e do charme, com repercussão até no hip-hop.

É certo que o soul setentista brasuca se tornou mercadoria cobiçada por gravadoras, foi diluído pela chamada era discotheque e virou trilha de novelas da Globo. Mas o movimento black se espalhou por várias capitais, inclusive Belo Horizonte. Os ”brau” de Salvador, por exemplo, frequentaram muitos bailes assim até formar o bloco Ilê Ayê, ícone da cultura afro-brasileira.

O Movimento Black Rio foi o fio condutor de uma revolução de ideias, defendem Peixoto e Sebadelhe. Para a dupla, surgia ali um impulso para a futura consolidação do movimento negro no Brasil, cujos militantes hoje denunciam a falácia da ”democracia racial”, questionam a ”fraternidade morena” de Gilberto Freyre e celebram a identidade afro-brasileira.

Assim como os jovens dos anos 1970, garotas e garotos negros do século 21 exibem vistosas cabeleiras, causando sensação até na passarela da São Paulo Fashion Week (SPFW). Eram mesmo proféticos os versos de Macau, o compositor do clássico Olhos coloridos: ”Meu cabelo enrolado/ Todos querem imitar/ Eles estão baratinados/ Também querem enrolar”.

1976: MOVIMENTO BLACK RIO
De Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe

» Editora José Olympio
» 253 páginas
» R$ 59,90
» Lançamento amanhã,
às 19h, na Livraria Leitura do Pátio Savassi. Avenida do Contorno, 6.061, lojas 235 e 236, Savassi’

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