Um diálogo entre negritude e loucura

“De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: delírio.”

Lima Barreto – Diário do Hospício

Por Gabriela Moura, do Não me Kahlo

Os escritos de Lima Barreto ajudam a compreender como as questões de raça, pobreza e saúde mental estão intimamente ligadas. O sofrimento psíquico causado por questões financeiras como causador primário do alcoolismo é um dos temas que podem ser colocados para debater saúde mental e negritude. É preciso compreender como as dinâmicas raciais foram moldadas durante e após o período de escravidão negra, cujos marcos de violência são minimizados em livros de História. A abolição foi um ato incompleto, como a historiadora Suzane Jardim explica:

“A dinâmica racial brasileira e a marginalização do negro em nossa sociedade é fruto de uma abolição sem conclusão, uma abolição de mentirinha que só serviu para colocar o negro em uma posição à parte da sociedade.
Quando a escravidão foi abolida, a grande maioria da população negra do país já era liberta ou havia nascido livre. Estavam todos buscando um modo de serem inseridos na nova sociedade sem escravidão, aquela nova e moderna sociedade aos moldes europeus que o fim da dominação portuguesa e o espírito republicano anunciava.
MAS NA PRÁTICA o que aconteceu foi:

aplicação de leis de incentivo à imigração com cotas (sim! olha elas aí!) para imigrantes europeus colarem pra ocupar os postos de trabalho

políticas de embranquecimento

disseminação das teorias científicas racistas no meio popular e acadêmico (aqui sim, a gente pode tranquilamente falar de racismo sem dó alguma), aquelas onde o negro era inferior ao branco, sua inteligência era menor, pessoas de traços negros tinham mais propensão ao crime ou que o sangue negro ”’estragava”’ a raça branca e seria a decadência da sociedade brasileira nessa nova era republicana que surgia

criminalização de práticas culturais e da socialização entre negros diversas das praticadas anteriormente*

* sobre esse último ponto, dou como exemplos o ‘Projeto de Repressão da Ociosidade’, o precursor da ‘Lei da Vadiagem’ que foi promulgado em 1888, mesmo ano da abolição (ó a ‘coincidência’) e que visava reprimir principalmente a ociosidade dos negros libertos (SIM, aqueles mesmos que estavam sem emprego porque as vagas eram ocupadas por imigrantes, sabem?) porque acreditavam que a vagabundagem era a maior causa da criminalidade (o trabalho enobrece o homem e mimimi), então eles encarceravam negros que andavam pela rua porque… porque sim, eles podiam, só por isso… Ou então posso apontar o fato de que de 1889 a 1937, a capoeira era crime previsto pelo Código Penal. Qualquer rodinha de capoeira de leve dava seis meses de cadeia. E exemplos como esse existem tantos…”

Partindo desse ponto, em que as políticas públicas foram propositalmente excludentes, se torna mais fácil analisar os porquês do lugar social ao qual o negro é submetido ainda hoje e as consequências graves para sua saúde mental e situação econômica.

Enquanto em 1920 Lima Barreto falava de loucura, expondo a situação de solidão e isolamento de um hospital psiquiátrico e os caminhos que o levaram a tal condição, citando a tristeza profunda que sentia em sua casa, causada pela dificuldade em encontrar trabalho e muitos problemas financeiros, que culminaram por levá-lo ao abuso do álcool, quarenta anos mais tarde a fome seria o algoz descrito como catalisador da insanidade. Dessa vez era Carolina Maria de Jesus que falava. Ela descreveu em seu diário como a pobreza corroía sua vida. Ilustrou situações onde procurou no lixo sapatos para dar de presente de aniversário aos filhos, uma vez que comprar pares novos estava fora de sua realidade. Contou, com clara tristeza nas palavras, a humilhação de receber comida podre como doação de pessoas muito ricas, e que, segundo ela, ratavam a favela como o “quarto de despejo” da cidade.

carolina

Carolina na favela do Canindé, zona norte de São Paulo

No Brasil, brancos e negros compõem em porcentagens diferentes as camadas mais pobres da sociedade. E por isso, para falar de diminuição da pobreza é mandatório falar de raça. Pois quando pautamos essas diferenças percentuais, e afirmamos que negros são a maioria pobre, não está sendo negado o fato de também haver brancos pobres. Mas, sim, que aos negros essa situação é agravada pela sua cor da pele, e que a História mostra que é necessário e urgente pensar em políticas de reparação.

“Citando números das estatísticas que demonstram que um trabalhador negro ganha, em média, metade de um não negro, e que o percentual de negros é de 70% dos pobres e 71% de indigentes, o diretor de Cooperação e Desenvolvimento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Mário Lisboa Theodoro, defendeu a adoção da política de cotas como um mecanismo capaz de ‘equalizar uma situação de portas fechadas que hoje existe no país para a população negra’.
‘A questão racial naturaliza a desigualdade. As ações afirmativas são políticas complementares às políticas universais, são políticas de nova geração, capazes de abrir portas para que se atinja o máximo de igualdade’, afirmou. Theodoro acrescentou que os estudos do IPEA mostram de forma ‘contundente’ a desigualdade racial e que sobre esse tema há acordo entre os mais de 300 pesquisadores do Instituto. Ele acrescentou que os dados estatísticos do IPEA apontam que há hoje no Brasil 571 mil crianças de 7 a 14 anos fora da escola e, destas, 62% são negras.” – Associação Cachoeirense da Cultura Afro Brasileira

E como isso afeta a vida dos indivíduos negros no país?

O racismo é desumanizador. Ou seja, tira da pessoa a noção de sua individualidade, identidade e senso de pertencimento social. Crescer e viver em um cenário social em que o negro é retratado apenas como objeto de reportagens sobre violência, fetiche sexual carnavalesco e posição de servidão com apelações emotivas estereotipadas, cria internalizações sobre o lugar social. Isso quer dizer que é imposto ao negro que ele tem um pedaço da sociedade ao qual pertence e do qual não poderá sair, segundo o senso comum: o da pobreza, do escárnio (objeto de humor) e do sexo. A degradação da imagem da negritude não foi uma criação do próprio negro, mas uma forma de dominação por meio da chacota. Ao longo da história, como o supracitado artigo de Suzane Jardim mostra, foram sendo sedimentadas as ideias de inferioridade negra. A mesma autora também mostra em outro material, intitulado Reconhecendo estereótipos racistas na mídia norte-americana, como o imaginário popular foi sendo moldado em cima de ideias que mostravam o negro como intelectualmente incapaz e de modos primitivos, servindo de humor para o branco. Esse estudo é importante para compreendermos por que alguns assuntos são encarados como “polêmica”, como a prática do black-face, por exemplo, ou a figura da “nêga maluca”, que é uma clássica fantasia de blocos de carnaval.

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Geni Guimarães descreveu no livro A cor da ternura a situação constrangedora na escolinha em que estudava, no dia de uma festa de homenagem à Princesa Isabel:

“Quando dei por mim, a classe inteira me olhava com pena ou sarcasmo. Eu era a única pessoa da classe representando uma raça digna de compaixão, desprezo! Quis sumir, evaporar, não pude. Apenas pude levantar a mão suada e trêmula, pedir para ir ao banheiro.”

Não é surpresa que uma criança seja profundamente afetada em uma cena em que sua história é contada como sendo de segunda importância, em que seus antepassados foram meras “criaturas” e os colonizadores são colocados como protagonistas de uma salvação que na verdade nunca ocorrera.

Como consequência dos efeitos da sociedade sobre a saúde mental do negros, temos problemas como alcoolismo, depressão, ansiedade e síndrome do pânico, alguns dos transtornos que podem atingir a vítima do racismo em decorrência da frequente inferiorização.

A mídia é uma das principais responsáveis pela disseminação e manutenção desses estereótipos. A conclusão, inclusive, é bem óbvia: se no Zorra Total você tem um ator vestido de mulher com o rosto pintado de marrom, dentes podres falsos e um dialeto caricato que busca imitar a forma “inculta” de fala e, nos jornais, você tem closes em homens negros que cometem crimes e são chamados de “bandidos”, enquanto brancos que cometem os mesmos atos são chamados simplesmente de “jovens”, naturalmente a divisão entre o “branco civilizado que apenas incorreu em mero deslize social” e o “negro bandido sem caráter com quem a única forma de lidar é a aplicação da pena de morte (institucional ou ‘acidental’)”, fica evidenciada a diferenciação aplicada. Mas, mais do que isso, essas pequenas inserções diárias via comunicação de massa criam na população a imagem mental do que é o negro. E, dessa forma, mantém-se a divisão social entre bem e mal, certo e errado, civilizado e primitivo, marcados pela cor da pele.

A violência é um fator de estresse muito potente. Prestem atenção ao nome Joselita Souza. Ela morreu este ano, vítima de parada cardiorrespiratória, após meses de depressão profunda pela perda do filho Roberto, um dos cinco jovens mortos dentro de um carro atingido por 111 tiros disparados pela Polícia Militar. Casos como esse são mais frequentes do que as notícias se propõem a mostrar. A depressão definha o corpo e a mente. Em uma situação de vulnerabilidade social, esse quadro é agravado.

Imagine uma vida em que você lute constantemente contra o desemprego, a falta de acesso à saúde, a fome e a violência, e tudo o que isso pode causar à sua mente.

Um trecho bastante emblemático de Quarto de Despejo pode servir para ilustrar a crueza deste cenário:

“…Enquanto eu esperava na fila para ganhar bolachas ia ouvindo as mulheres lamentar-se. Outra mulher reclamava que passou numa casa e pediu uma esmola. A dona mandou esperar (…). A mulher continuou dizendo que a dona da casa surgiu com um embrulho e deu-lhe. Ela não quis abrir o embrulho perto das colegas, com receio que pedissem. Começou pensar. Será um pedaço de queijo? Será carne? Quando ela chegou em casa, a primeira coisa que fez, foi desfazer o embrulho porque a curiosidade é amiga das mulheres. Quando desfez o embrulho viu que eram ratos mortos.”

Esses recortes, especificamente, colocando Joselita e Carolina como protagonistas, mostram questões unificadas de gênero, classe e raça. São mulheres negras, mães, pobres e periféricas, sofrendo diariamente violência física (fome, doenças sem tratamento) e psicológica (dor da perda, luto, pesar).

Algumas situações cotidianas que podem auxiliar no entendimento de como o racismo e a extrema pobreza inevitavelmente causa sensações de sofrimento mental:

  • A impossibilidade ou dificuldade de contar com serviços básicos de qualidade, como saúde e educação;
  • Menor acesso a serviços de saneamento básico e, como consequência, maior exposição a doenças;
  • A impossibilidade de ver-se belo. Ter seus traços negroides (nariz, corpo e cabelo) sendo usados para fins de deboche;
  • Sensação de isolamento em espaços frequentados por classes mais abastadas;
  • Maior sensação de insegurança em espaços públicos;
  • Sensação de constante julgamento em espaços de estudo ou trabalho;
  • Desconfiança constante sobre suas competências.

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 Lima Barreto durante internação no Hospital Nacional

E, assim, conclui-se que a negritude precisa estar em evidência nos interesses da Psicologia e da Comunicação. Sem que seja dada a devida atenção às causas do sofrimento psíquico da população, torna-se mais trabalhoso e falho atuar em soluções. Sendo o Brasil um país notoriamente desigual, cujas poucas políticas públicas de inclusão são vistas como desimportantes por uma boa parcela da população de classes mais altas e encontram entraves burocráticos, é possível afirmar que, se não olharmos para a saúde mental da população negra, disponibilizando acesso a psicólogos e psiquiatras e desmantelando a naturalização com a qual a mídia desumaniza o negro, teremos cada vez mais perdas de todos os lados.

São muitas as frentes que precisam ser trabalhadas por essas e outras ciências. Os moldes educacionais têm de ser revistos para que crianças negras cresçam sabendo que são parte da sociedade e que podem ter um futuro. A urbanização das cidades tem que ser humanizada. Os homens e mulheres trabalhadores precisam poder contar com a certeza de que seus filhos estarão em segurança, o alimento não faltará e a saúde contará com um aporte decente. Para que Carolinas e Joselitas deixem de viver com a constante sensação de insegurança somatizando doenças em seus corpos e mentes. Não será possível um real crescimento econômico e diminuição da desigualdade enquanto a população pobre estiver doente.

Referências:

Negros são 70% dos pobres, diz IPEA http://accaafro07.blogspot.com.br/2010/03/negros-sao-70-dos-pobres-diz-ipea.html

(só) a escravidão (não) explica a condição atual do negro brasileiro – Suzane Jardim https://medium.com/@suzanejardim/s%C3%B3-a-escravid%C3%A3o-n%C3%A3o-explica-a-condi%C3%A7%C3%A3o-atual-do-negro-brasileiro-668db2ec5e63#.il9twmjzq

Reconhecendo estereótipos racistas na mídia norte-americana – Suzane Jardim https://medium.com/@suzanejardim/alguns-estere%C3%B3tipos-racistas-internacionais-c7c7bfe3dbf6#.4qxe94kri

O racismo é, sim, promotor de sofrimento psíquico http://site.cfp.org.br/o-racismo-e-sim-promotor-de-sofrimento-psiquico/?wpmp_tp=1

O adeus de Joselita, mãe de menino morto em Costa Barros http://oglobo.globo.com/rio/o-adeus-de-joselita-mae-de-menino-morto-em-costa-barros-19680236

Quarto de despejo: diário de uma favelada – Carolina Marina de Jesus

Diário do hospício – Lima Barreto

A cor da ternura – Geni Guimarães

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