Artigo: Racismo e a produção do deficit de 200 anos de cidadania no Brasil

Esta nação não compreenderá a si mesma negando a pensadoras negras e pensadores negros antirracistas o reconhecimento da condição de analistas imprescindíveis da sociedade brasileira. Elas e eles sabem quem são e tem aumentado o número de quem entende isso. Mas não esperem que esses sujeitos tenham todas as respostas para os problemas deste país. A imposição de tamanha expectativa seria reincidir no erro desumanizador de atribuir a quem sofreu um dano a completa responsabilidade pela reparação do mau que lhe foi causado.

O que não podemos mais ignorar são as consequências negativas da concentração de homens brancos entre os chamados “intérpretes do Brasil”, aqueles autorizados a nomear, quantificar, qualificar e projetar futuros. No ano em que alcançamos a marca do bicentenário da independência nacional e vivenciamos as eleições mais tensas de nossa história recente, intelectuais, jornalistas e políticos hegemônicos se mostram incapazes de dimensionar a articulação entre os graves problemas enfrentados pela maioria da população brasileira.

Entender como brasileiros e brasileiras, em sua diversidade, reagem a isso se mostra ainda mais desafiador àqueles que foram levados a acreditar que tinham resposta para tudo. Ocorre que pouca coisa tem se encaixado nos modelos explicativos priorizados. Esse é um sintoma da falta de costume para lidar, por exemplo, com o Brasil que tem cor e gênero fora do enquadramento de problema social. Na falta de um sólido entendimento dessas pessoas como sujeitos históricos e de direito, há pouca chance de se compreender como se posicionam (nos posicionamos) a partir das experiências regionais, religiosas, de classe, escolaridade, habitação, cultura etc.

No maior país negro fora do continente africano, o certo seria que as demandas dos homens e das mulheres que compõem esse segmento majoritário fossem encaradas com a máxima seriedade. Mas a falta de um acerto de contas justo com o passado-presente escravista não deixa. Em vez disso, a naturalização do monopólio racial da fala tem sustentado a possibilidade de jogar o vivido pelo povo para debaixo do tapete.

A negação do racismo, como estruturante das desigualdades sociais, segue autorizando o não cumprimento de promessas de cidadania iniciadas há dois séculos. A relativização dos dados que caracterizam um cenário de genocídio da juventude negra impede até mesmo a formulação de uma política de segurança pública pautada no direito à vida. Direitos civis, políticos e sociais são cotidianamente violados, mas há quem diga, mesmo assim, que a democracia está assegurada.

Na contramão de tudo isso, as/os 34 intelectuais ativistas e acadêmicas/os, escritoras/es e religiosos que depositaram suas reflexões na coletânea A resistência negra ao projeto de exclusão racial — Brasil 200 anos (1822-2022) vem reforçar uma das maiores verdades nacionais: “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”, afirmação quem tem sido impulsionada pela Coalizão Negra por Direitos nos últimos tempos.

Ao chamamento de Helio Santos, doutor em administração pela FEA-USP e histórico militante da causa antirracista, responderam dessa vez: Amauri Mendes Pereira, Ana Flávia Magalhães Pinto, Ana Maria Gonçalves, Ana Vitória Luiz e Silva Prudente, Anielle Franco, Bianca Santana, Carlos Alberto Medeiros, Celso Luiz Prudente, Cida Bento, Conceição Evaristo, Cuti (Luis Silva), Denise Carrascosa, Dennis de Oliveira, Djamila Ribeiro, Edna Roland, Eliane Barbosa da Conceição, Elias de Oliveira Sampaio, Elisa Lucinda, Helio Santos, Jaqueline Gomes de Jesus, Joel Zito Araujo, José Enes de Jesus, Kabengele Munanga, Marcilene Garcia de Souza, Mário Theodoro, Michael França, Nivia Luz, Renato Ferreira, Ronilso Pacheco, Samuel Vida, Sueli Carneiro, Valdirene Silva de Assis, Valter Silvério e Zelia Amador de Deus.

O lançamento da publicação é uma das várias ações estratégicas de enfrentamento do deficit escandaloso de cidadania do Brasil. Hoje (10 de outubro), às 19h, no Itaú Cultural, uma parte do grupo se reunirá para o lançamento em São Paulo. Outra parte estará no Rio de Janeiro, no dia 13 de outubro, no Museu do Amanhã, no mesmo horário.

A obra representa um exercício de fomento a análises de estrutura e conjuntura a serem praticadas Brasil adentro e afora. Nelas a centralidade da presença negra deve ser um parâmetro inegociável, embora, por força da tradição de luta do Movimento Negro, não sirva para a exclusão dos demais integrantes de nossa sociedade, sobretudo os mais vulneráveis.

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