Nos anos 1970, ao 6 anos, Noel Gordon foi mandado para o que era conhecido na época como internato “educativo subnormal” (ESN), a 24 km da sua casa. “Aquela escola era o inferno”, diz Noel. “Eu passei dez anos lá e quando sai, aos 16, não conseguia trabalho, porque não era capaz de ler ou preencher um formulário de emprego”, diz.
Cerca de um ano antes de entrar numa escola ESN, Noel deu entrada num hospital para retirar um dente. Ele tomou anestesia, mas tinha anemia falciforme (doença hereditária caracterizada pela alteração dos glóbulos vermelhos do sangue) não diagnosticada. E a anestesia provocou uma reação séria.
Noel diz que os problemas de saúde derivados disso o levaram a ser visto como alguém com dificuldades de aprendizado e que fosse recomendando que ele frequentasse uma “escola especial”.
No entanto, nenhuma evidência ou explicação sobre a deficiência de Noel foi dada aos pais dele. “Alguém veio e disse que encontrou uma ‘um internato especial’, onde cuidariam das minhas necessidades médicas”, diz Noel.
Durante essa conversa, eles também disseram que Noel era “burro, estúpido”. Mas os pais de Noel não foram informados que essa nova escola era para os chamados “educacionalmente subnormais”. Eles haviam se mudado da Jamaica para a Inglaterra nos anos 1960 e tinham grandes expectativas em relação à educação do filho.
A rotina no internato
Na primeira noite no internato, Noel ficou deitado na cama sozinho, chorando e pedindo pela mãe. “Eu ainda consigo sentir o cheiro das carteiras velhas de madeira. E lembro de ser muito maltratado nos primeiros dias”, diz.
Um estudante lançou insultos raciais contra ele na sala de aula, mas não foi repreendido. O professor simplesmente pediu que se sentasse.
A escola não tinha currículo. Apesar de Noel ter recebido um livro de um professor, ele nunca foi ensinado gramática básica nem como escrever. Ele fazia algumas contas de somar e subtrair, mas, durante as aulas, só costumava fazer tarefas manuais e brincar.
Os pais só perceberam que tipo de escola era quando Noel, na época com 7 anos, recebeu um soco de um adolescente de 15 anos. Por causa do episódio, seu pai visitou o internato pela primeira vez.
Noel se lembra do pai dizendo para o diretor: “Essa escola é para crianças incapacitadas”. Ele diz que o diretor respondeu: “Sim, mas não gostamos de usar essa palavra. Nós chamamos de crianças com aprendizado lento.”
A descoberta foi devastadora, mas o pai de Noel sentiu que não tinha poder para mudar as coisas. Noel não teve a oportunidade de fazer testes educacionais e obter qualificações. Ao lembrar, ele diz que ser rotulado de “educacionalmente subnormal” o fez sentir inferior para toda a vida e provocou vários problemas psicológicos.
“Sair da escola sem nenhum diploma é uma coisa, mas sair da escola acreditando que é burro é algo completamente diferente. Acaba com sua confiança”, diz.
O rótulo
O termo “educacionalmente subnormal” deriva da Lei de Educação de 1944 e foi usado para definir aqueles com capacidades intelectuais limitadas.
“O rótulo fazia as crianças se sentirem inferiores”, diz o ativista pela educação Gus John, que chegou ao Reino Unido, vindo da ilha de Granada, em 1964, como estudante. Pouco depois, ele percebeu o problema.
“Estudantes das escolas ESN não iam para universidade. Se tivessem sorte, se tornavam trabalhadores. O termo era paralisante e matava qualquer confiança e ambição.”
Escolas ESN primárias e secundárias categorizavam as crianças como tendo deficiência moderada de aprendizado, severa ou como sendo “impossíveis de ensinar”. Essas categorias eram amplas e, quando os estudantes eram recomendados para as escolas ESN, não costumavam ser dadas razões robustas por professores e psicólogos.
Embora algumas escolas ESN tivessem bons exemplos de ensino, para muitos alunos, as suas necessidades eram ignoradas. Alunos negros eram enviados para essas escolas numa proporção muito maior.
Os autores do documentário da BBC viram um relatório de 1967 do agora extinto Inner London Education Authority (ILEA, a Autoridade Educacional do Interior de Londres), que mostra que a proporção de imigrantes negros nas escolas ESN era de 28%, praticamente o dobro das demais escolas, onde a proporção de negros era de 15%.
“O percentual de crianças negras em escolas ESN na comparação com a presença de estudantes negros em escolas normais é escandaloso”, diz Gus John.
Mas por que tantas crianças negras eram definidas como subnormais?
“Racismo desenfreado”
Dados dos anos 1960 e 1970 mostram que, em média, a performance acadêmica de crianças negras era pior do que a das brancas. Isso alimentou a crença amplamente difundida de que crianças negras eram intelectualmente inferiores às brancas.
Um relatório vazado de 1969 de autoridades locais, escrito por um professor chamado Alfred Doulton, argumenta que crianças caribenhas tinham QIs mais baixos. Essa afirmação se baseou nos resultados de testes de QI frequentemente aplicados, na época, a crianças na escola primária.
Um dos principais defensores desse tipo de teoria era Hans Eysenck, ex-professor do Instituto de Psiquiatria do Kings College London, universidade do Reino Unido. Ele acreditava que a inteligência era geneticamente determinada e citava um estudo dos Estados Unidos que parecia demonstrar que o QI de crianças negras ficava, em média, 12 pontos abaixo do de crianças brancas.
No documentário, Gus John diz: “Quando pessoas como Eysenck escreviam sobre raça e inteligência, o que estavam fazendo na realidade era justificar toda essa retórica em torno do período da escravidão, em que pessoas acreditavam que os negros não só eram subumanos, mas que também não eram tão inteligentes como os brancos”.
Vários professores viam crianças negras como intelectualmente inferiores e temiam que ter “muitas” delas na sala poderia prejudicar o aprendizado dos alunos brancos. Após protestos de pais brancos em Southall, no oeste de Londres, em junho de1965, o governo emitiu um guia sobre as necessidades sociais, de linguagem e médicas de crianças imigrantes e sugeriu manter um limite de até 30% de imigrantes em cada escola.
Como consequência, várias autoridades locais adotaram a política de enviar crianças imigrantes a escolas fora de suas regiões numa tentativa de limitar o número de minorias étnicas nos colégios. Essa prática teve fim em 1980.
“O sistema educacional alimentava e legitimava a ideia de que crianças negras caribenhas eram menos inteligentes que outras crianças. É por isso que várias delas acabaram indo para escolas ESN”, diz Gus John.
“Era racismo.”
‘Descartados’
Muitos equivocadamente relacionavam raça com habilidade intelectual. Mas como argumentava a psicóloga educacional Mollie Hunte a fraca performance dos estudantes negros não era consequência de suas habilidades intelectuais. Os testes usados na época eram culturalmente tendenciosos.
Gus John explica que os testes usavam referências e vocabulário que as recém-chegadas crianças caribenhas não conheciam bem. “Um elemento-chave é \ linguagem”, diz.
“Se você cresce numa casa jamaicana, você fala inglês jamaicano, o patois ou creole. Como esses idiomas derivam do inglês tradicional, ninguém achava que os alunos negros precisavam de apoio com aprendizado da língua. Esse era o principal problema”, explica.
Como consequência, eles não tinham a ajuda extra que outras crianças imigrantes que não falavam inglês recebiam. Segundo John, professores não tentavam compreender as barreiras culturais que crianças negras enfrentavam, e os testes não levavam em conta circunstâncias domésticas e socioeconômicas, ou o impacto da migração.
Várias crianças só viajavam para o Reino Unido depois que os pais estavam estabelecidos. Eles chegavam num país desconhecido para viver com pessoas que não viam há anos.
“Esse deslocamento causa muitos traumas”, diz John. “Tem um sofrimento e um luto. Essa crianças, em muitos casos, nunca mais viriam seus avós.”
Segundo o ativista em educação, havia uma cultura de baixas expectativas entre os professores. Dificuldades de aprendizado eram confundidas com deficiência de aprendizado, e crianças negras eram simplesmente descartadas e enviadas às escolas ESN.
A história de Maisie Barrett
É isso que aconteceu com Maisie Barret, da cidade britânica de Leeds, que foi enviada a uma escola ESN quando tinha 7 anos, nos anos 1960.
“Primeiro, frequentei uma escola normal. Lá, um professor disse para minha mãe que eu não conseguia aprender. Disseram que eu ficaria melhor numa escola especial”, conta.
Maise diz que a decisão de ser mandada para uma escola ESN foi um erro que arruinou suas chances na vida. Como no caso de Noel, a nova escola de Maisie não seguia um currículo educacional.
“Nós jogávamos jogos, tinha discotecas… Eu chamo de ‘escola livre’, porque a educação era tão básica que brincávamos mais que estudávamos”, diz. Foi só quando estava na faixa dos 30 anos, décadas depois de ser enviada à escola ESN, que Maisie foi diagnosticada com dislexia.
“Em vez de me ajudarem com minhas dificuldades de aprendizado, eu simplesmente fui descartada como sendo burra. Os professores nunca investiram tempo para descobrir por que eu tinha dificuldades para aprender. Isso arruinou minha autoconfiança”, diz.
“Eu era devagar, mas um professor deveria ter investido tempo para me ajudar.”
Segundo Maisie, a falta de apoio para o aprendizado era apenas parte do problema. “Eu fui para uma escola que era uma instituição racista.”
Oportunidade dada tarde demais
Tanto Noel quanto Maise eventualmente receberam a chance de frequentar escolas normais. Mas, àquela altura, era tarde demais.
No caso de Noel, ele foi para uma escola secundária normal, por metade do dia , a partir dos 12 anos, e passava o restante do tempo numa escola ESN.
“Na escola secundária, eu matava aulas por me sentir intimidado por não ter amigos e não ser capaz de ler”, diz Noel.
Maisie deixou a escola ESN aos 13 anos e foi para uma escola secundária. “Minha mãe me colocou em contato com uma assistente social negra que, depois de me avaliar, disse que eu era inteligente e falou que eu tinha sido enviada a uma escola ESN por racismo.”
Àquela altura, no entanto, sem saber ler ou escrever, Maisie achou a escola secundária extremamente desafiadora e saiu sem um diploma.
Não tão ‘especiais’
Inicialmente, vários caribenhos que migraram para o Reino Unido nos anos 1960 e 9170 tinham uma visão positiva das escolas ESN.
Elas eram frequentemente chamadas de “escolas especiais” por professores. E pais caribenhos, com pouco conhecimento do sistema educacional britânico, pensavam que se tratavam de escolas que dariam maior apoio para o aprendizado de seus filhos.
“Quando minha mãe foi informada que eu havia sido recomendada para uma escola especial, lembro de vê-la sorrindo. Ela achou que escola especial significava escola melhor”, diz Maisie.
Essa presunção sobre escolas “especiais” era estimulada pelas experiências dos caribenhos em seus países.
“Uma educação britânica era vista como caminho para mobilidade social e as aspirações dos pais eram altas”, diz Gus John.
“Professores eram estimados nas comunidades caribenhas, e os pais inicialmente confiaram nos professores britânicos. Foi um choque descobrir que as crianças estavam sendo rotuladas como subnormais.”
A mobilização
No entanto, preocupações sobre o desenvolvimento dos filhos logo começaram a surgir entre pais caribenhos. Conforme iam presenciando as crianças tendo dificuldades básicas com leitura e escrita, grupos foram se formando.
Por exemplo, em 1970, após descobrir que havia um número desproporcional de crianças negras em escolas ESN no norte de Londres, um grupo chamado North London West Indian Association fez uma reclamação formal ao Conselho de Relações Raciais, alegando discriminação, com base na Lei de Relações Raciais de 1968.
Em 1971, um livro chamado Como a Criança das Antilhas se Torna Educacionalmente Subnormal no Sistema de Educação Britânico foi fundamental para mudar a opinião de pais negros que moravam no Reino Unido.
O autor, Bernard Coard, um escritor e professor nascido na ilha de Granada, deu aulas numa escola ESN e percebeu o elevado número de crianças caribenhas lá. Quando um grupo de pais preocupados pediram que Coard investigasse a questão, ele escreveu o livro em tempo recorde.
Coard argumentou que as escolas ESN estavam sendo usadas pelas autoridades educacionais como um “depósito” de crianças negras, e que professores estavam confundindo o trauma causado pela migração com falta de inteligência.
O trabalho de Bernard Coard gerou reação e levou a um crescimento acentuado de escolas de reforço para crianças negras, que funcionavam aos sábados e eram geridas por pais negros com o objetivo de elevar a performance educacional de seus filhos.
Eles ensinavam pontos do currículo tradicional, juntamente com história negra, para aumentar a autoestima das crianças, ajuda-las a obter diplomas de qualificação e prepara-las para empregos.
Após anos de pressão e campanhas, a Lei Educacional de 1981 passou a prever a necessidade de medidas de inclusão e todos os grupos sociais, e o termo “educacionalmente subnormal” foi abolido.
Uma investigação do governo sobre a educação de crianças de grupos de minoria étnica, publicada em 1985, descobriu que a média baixa em testes de QI de crianças caribenhas não era um fator significativo no baixo desempenho educacional.
Na realidade, o amplo preconceito racial na sociedade exercia papel crucial na performance abaixo da média dessas crianças.
Impacto permanece
Mas, para Noel e Maise, as consequências do tempo que passaram nas escolas ESN permanecem. “O rótulo ESN danificou com minha autoconfiança. Eu poderia ter sido qualquer coisa, mas nunca recebi as ferramentas para me tornar a pessoa que nasci para ser”, diz Maisie.
Apesar de ter escrito dois livros e completado quatro graduações após deixar a escola, incluindo em Estudos Caribenhos e Escrita Criativa, Maisie teve dificuldades para encontrar trabalho ao longo dos anos.
Noel descobriu que, na verdade, gosta de aprender e acumulou uma série de diplomas impressionantes na idade adulta, incluindo uma graduação em computação. A parede da sua casa em Tottenham, em Londres, é coberta de certificados. No entanto, ele até hoje tem dificuldade para ler e escrever. “Aquela escola ESN me arruinou”, diz Noel.
E, apesar do significativo progresso desde então, disparidades na educação de crianças negras permanecem. “As preocupações que tínhamos sobre as ESN permanecem em termos do número de crianças negras sendo encaminhadas para as chamadas pupil referral units“, diz Gus John.
Essas unidades educacionais foram estabelecidas em 1993 para o ensino de crianças excluídas das escolas normais. Mas há nelas uma quantidade desproporcional de crianças negras, três vezes mais em alguns locais.