As experiências do “ser negro” na sociedade brasileira

Compelido a escrever este texto muitas foram as temáticas que passaram por minha mente. Poderia abordar os cotidianos fatos de discriminação racial, o racismo estrutural que nos sufoca, o genocídio negro, dentre muitos outros aspectos que podem e devem ser levantados.

Por Alexandre Matheus, do Alma Preta 

Contudo, tomei para mim a tarefa de dizer do único lugar que realmente me sinto com propriedade, ou seja, irei falar “do meu lugar”. Como jovem, negro, universitário, de baixa renda, e porque não dizer, gay?! Acredito não estar fazendo uma abordagem inovadora, muito pelo contrário, cada vez mais tenho contato com relatos de negras e negros que não têm medo e fazem do teclado de seus computadores um instrumento capaz de expandir nosso olhar sobre a realidade de forma crítica e assertiva: Stephanie Ribeiro, BichaNagô, Djamila Ribeiro, Aline Ramos, grupos no facebook como “Empodere-se Monamur”, Coletivos Negros, universitários ou não, e até mesmo esta página para qual escrevo, Alma Preta, (isso  só para dizer de alguns) são protagonistas de uma nova geração da qual tenho o imenso prazer de fazer parte!

Mas nem sempre foi assim. O caminho para ter acesso a todo este conteúdo não foi dado de bandeja. O reconhecimento de ser negro não foi algo simples de compreender e acredito que este seja o dilema de muitos negros e negras. Para alguns talvez seja mais fácil ver-se e reconhecer-se como negro quando se nasce e cresce em um ambiente familiar em que sua identidade racial não é posta em xeque, ou mesmo quando se tem total afinidade ou proximidade com uma comunidade de terreiro, jongo ou qualquer manifestação cultural e/ou religiosa que valorize as raízes negras.

Comigo o caso é diferente, e de certa forma muito semelhante à realidade da maioria da população negra. Nasci em uma família tipicamente brasileira: vários matizes de cores, mistura de várias regiões do Brasil, e o mais importante, admiradores do ideal branco; do lado paterno todos negros, com quem tive, porém, pouco contato na minha infância, a não ser por uma tia e um primo.

O convívio na família materna me marcou muito pelas manifestações jocosas nos encontros familiares. “Ixi, ficou tudo escuro” ainda é o cumprimento tradicional quando eu e minha irmã chegamos às visitas.  Posso dizer que até hoje não é fácil para mim conciliar uma postura enquanto sujeito que reivindica uma identidade negra e o convivo com essa e outras manifestações que demonstram explicitamente o enraizamento de uma visão racista perpetrada nos meus parentes.

Se em casa não foi moleza, a escola veio com o selo oficial de que ser negro não é uma coisa legal. Quando eu não era hostilizado por não seguir a performance heteronormativa que se espera de um menino em uma sociedade machista e homofóbica, a “zueira” rolava solta em cima da pele preta. Não, esta não dá para disfarçar! Está na cara, no cabelo, nos braços, nas pernas… Infelizmente esse espaço só me levou em consideração nas três páginas sobre escravidão no livro de história, que por sinal eram os piores dias para ir à escola. Não posso negar que este foi o período que mais desejei ser branco, ter cabelo liso, e talvez com isso ter mais amigos, me sentir bonito e admirado.

Agora tenho o privilégio de frequentar uma universidade pública e foi a partir das negras e dos negros que conheci por lá (que são pouquíssimos no espaço universitário), que pude realmente me ver e me reconhecer. Não é preciso dizer muita coisa para se ter a certeza de que vivemos em uma sociedade estruturalmente racista. O simples fato de um jovem negro precisar atingir 19 anos, passar no vestibular, entrar em uma faculdade, para aí sim, poder se descobrir e discutir os dilemas de ser negro fala por si só. Agora me digam, quantos/as negros/as têm essa mesma possibilidade?

Quando trago essas questões pessoais acredito trazer também um retrato da nossa sociedade. Nós negros ainda estamos discutindo o direito à vida. Quando falamos de genocídio negro, estamos apontando para o fato de ainda hoje nossa vida ser considerada de menor valor e que os que sobrevivem são diariamente tolhidos das suas possibilidades de “Ser”.

Neste sentido, a todo o momento sinto em mim a necessidade de me desprender das correntes que me colonizam, que me embranquecem, e assim passo pelo continuo processo de redescoberta de mim mesmo.

Por fim, acredito que através desse texto, por pouco que seja, estou contribuindo para a constituição da História do Negro brasileiro segundo a concepção de Beatriz Nascimento*:

Devemos fazer a nossa História, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos, estudando-os, não os enganando. Só assim poderemos nos entender e fazer-nos aceitar como somos, antes de mais nada pretos, brasileiros, sem sermos confundidos com os americanos ou africanos, pois nossa História é outra como é outra nossa problemática.

*Artigo: “Por uma história do homem negro”- Beatriz Nascimento Gomes. Publicado originalmente em: Revista de Cultura Vozes. 68(1), pp. 41-45, 1974.

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