As mil faces do blackface

A tentativa de reverter ou de ressignificar o sentido histórico, simbólico e cultural do blackface pela ex-consulesa francesa, Alexandra Loras, poderia, no limite, suscitar um debate sobre as representações estéticas das pessoas negras nos diferentes espaços e auxiliar em um tipo de “educação antirracista para os brancos”. No caso em questão, brancos da elite paulistana, já que foi em uma galeria no bairro Jardim Europa o lugar escolhido para exposição Pourquoi Pas (Por que não?).

Por Marcio André dos Santos, enviado para o Portal Geledés

Divulgação

Loras pintou de preto no photoshop e associou traços raciais negros as pessoas brancas famosas do mundo da moda, da cultura, da mídia e da política. Em um toque de “mágica digital” os branquíssimos (e tudo o que ser branco representa em um país de privilégio branco) João Doria, Michel Temer, William Waack, Xuxa, Ana Maria Braga, Gisele Bünchen e, pasmem, Donald Trump são transformados em negros. A ideia de Loras, me parece, é produzir uma espécie de espelhamento para que os brancos da elite paulistana possam olhar para si mesmos através de seus ícones, só que enegrecidos. E ai, feito um lampejo reflexivo, toda a empatia racial de brancos para com negros ganharia forma e materialidade. Voilá! Fim do racismo!

Evidente que não é tão simples assim. Destaco alguns problemas substantivos que tornam a exposição Pourquoi Pas (Por que não?) na verdade um reforço grotesco e fora de lugar do racismo e não seu contrário:

1. Todas as pessoas brancas pintadas de preto jamais saberão o que é ser negro ou negra em um país racista como o Brasil. Alguns deles, inclusive, são ativistas ferrenhos da perpetuação deste sistema de dominação atroz e cruel. Notem bem: os brancos têm consciência dos privilégios raciais que carregam/usufruem/gozam/exercem e é importante que tenham mesmo. Por outro lado, a experiência de ser negro ou negra é intransferível por definição. A empatia/solidariedade podem ser construídas entre pessoas de grupos raciais diferentes e tem sido articulada na esfera pública (escolas, movimentos sociais, universidades), porém exige um trabalho contínuo, insistente e de longo prazo.

2. Enquanto as madames, patrões e playboys brancos do Jardim Europa (notem o Europa no nome!) “apreciam” os rostos pretos das “personalidades” brancas, todo aparato midiático e cinematográfico brasileiro trabalha a todo vapor em prol da branquitude (é possível ver “excelentes” filmes brasileiros da atualidade sem um único ator ou atriz negros). Em outras palavras, os brancos bem nascidos do Jardim Europa continuarão suas vidas tranquilamente, o que implica se beneficiar direta ou indiretamente do trabalho de negros e negras para sustentar e reproduzir seu status quo. Não creio que uma exposição direcionada aos brancos que reedita o malfadado blackface tem condições mínimas de produzir um tipo de subjetividade antirracista.

3. Enquanto que para a população negra brasileira o bombardeamento diário de imagens brancas reforça e até mesmo anula a auto-estima de crianças e jovens negros, para os brancos é o inverso: suas imagens e representações são fortalecidas em todas as mídias, livros didáticos, peças culturais, dia após dia. O estrago feito por Xuxa no imaginário e na autoimagem de uma geração inteira de crianças negras é incalculável. Xuxa nos empurrou a todos para um ideal de brancura que possivelmente tenham seus efeitos psíquicos até hoje. Portanto, vê-la pintado de preto em uma galeria é de uma violência simbólica infinda.

4. Que tipo de revisão do blackface é esse que só reafirma o privilégio branco? Mesmo se a Gisele Bünchen ou Ana Maria Braga ficassem o dia inteiro pintadas de preto, lavando louça em casa de madame ou varrendo o chão de um prédio qualquer continuariam a capitalizar em torno da branquitude que as produziu. A branquitude funciona como um habitus para elas, uma segunda pele, algo que não podem e possivelmente não queiram se desfazer. O mesmo vale para todos os demais na referida exposição.

5. E Michel Temer? E João Dória? E William Waack gente? Se fosse esmiuçar aqui o conjunto de atrocidades que cada um deles tem causado contra a população negra ficaria semanas aqui escrevendo.

6. Mesmo figuras do campo da esquerda como Dilma (tudo bem, nem tão a esquerda assim…) não tem o direito de nos representar, do mesmo modo que nenhum homem negro pode representar o que é ser uma mulher negra já que somente as mulheres negras sabem traduzir suas dores e dilemas existenciais de serem mulheres negras em uma sociedade racista e sexista que as objetificam e desqualificam ininterruptamente.

7. Fico aqui me perguntando que tipo de recepção os afro-americanos teriam ao verem Donald Trump retratado como negro. Uma gestão totalmente voltada contra os avanços na área dos direitos humanos, da luta antirracista, dos direitos dos imigrantes, dos direitos das mulheres e das minorias. Mais que irônico, retratar Trump negro é extrapolar todos os limites suportáveis da nossa paciência.

Alexandra Loras é uma ativista antirracista e por isso a respeito. No entanto, discordo profundamente da abordagem e perspectiva escolhida por ela para tratar o tema do racismo ou da reversão das imagens negras no imaginário branco. Cada blackface estampado na referida galeria equivale a um tiro dado em um de nós, negros e negras. O alvo é nossa existência, nosso SER.

 Reprodução – Facebook

A rainha Elizabeth II da Inglaterra pintada de preto não redime em absolutamente em nada o genocídio e as atrocidades raciais provocadas pelo colonialismo/imperialismo inglês sobre os povos africanos e asiáticos ao longo dos séculos 19 e 20. O governador Geraldo Alckmin na versão branco opressor ou na versão blackface da exposição continuará a sustentar os interesses das elites políticas diretamente envolvidas no extermínio de jovens e adultos negros em São Paulo.

Reprodução Facebook

Para reverter a branquitude (em nível nacional e internacional) é preciso que se desenvolva instrumentos totalmente diferentes do proposto por Loras. Sinceramente, não precisamos que nos ensine nada a este respeito. Os movimentos negros, os/as intelectuais, cineastas, documentaristas, produtorxs culturais negrxs tem feito isso, apesar de todas as nossas dificuldades, limitações e contradições. Nossa obrigação é continuar tentando. Tentando até que não haja mais espaços para blackface algum, exceto a justa representação do valor da nossa negritude. Branco pintado de preto? Não, obrigado.

 

Publicado originalmente no Medium

 

Leia Também:

Stephanie Ribeiro: Pourquoi pas? Porque ser negro é diferente de estar negro

 

***Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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