Stephanie Ribeiro: Pourquoi pas? Porque ser negro é diferente de estar negro

Na coluna #BlackGirlMagic, nossa colunista fala sobre um mês da consciência negro invertido, no qual negros foram achincalhados, e da exposição da ex-consulesa da França Alexandra Loras, que pintou rostos brancos de preto e reacendeu a questão sobre o blackface

por Stephanie Ribeiro no Marie Claire

Novembro é sem dúvidas cheio de debates raciais – mesmo sendo o mês da Consciência Negra, também é um mês em que pessoas demonstram a ausência de consciência racial. Em escolas brasileiras, vemos que para debater o 20 de novembro muitos professores promovem o blackface (alguns chegam ao ápice de pintar crianças de preto mesmo sem o consentimento dos pais). Esse também é o mês da negação: li inúmeras manifestações racistas de gente que não quer fazer o debate racial e fica afirmando “somos todos humanos”, num país em que apenas humanos negros jovens morrem a cada 23 minutos por causa de sua cor.

É fato que novembro deste ano nos surpreendeu negativamente devido a ataques racistas a Taís Araújo após sua palestra no TEDxSaoPaulo e a Titi, filha de Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. Todos esses atos que envolvem ataques a famosos e anônimos demonstram que o racismo no Brasil ainda está longe de ser superado e é um assunto debatido muitas vezes de forma equivocada. No caso de Titi, chama a atenção o silêncio coletivo da mesma massa de pessoas que surgiu para se dizer anti-racista, quando o ataque foi direcionado a Taís Araújo. É importante destacar que o racismo e a luta anti-racista não pode ser seletiva – os ataques contra Taís foram significativos e violentos e o silêncio não é uma escolha quando fotos do filho dela estavam circulando nas redes em tom de piada. Além disso, nas redes sociais, muitos indignados com agressões contra Titi começaram a comparar Day McCarthy, a agressora racista, com um macaco dado seus traços negros.

Gisele Bündchen negra (Foto: Reprodução)

Qual o sentido disso tudo?

E a exposição “Pourquoi pas?”, que será inaugurada em São Paulo, no sábado? Me parece mais um equívoco deste mês. Tal mostra pretende criar um mundo invertido em que figuras brancas de destaque se tornam negras. Para isso, foi proposto pintar digitalmente pessoas brancas de negros, somando a isso diversos outros traços fenotípicos associados a negros como lábios grossos, nariz largos e cabelos crespos. É fato que a exposição deixa vago o que é SER negro, algo que está muito além de ESTAR negro. A consciência racial sobre nosso lugar na sociedade é claro e não nasce naturalmente num contexto racista como o nosso. O caso de Titi, atacada por Day McCarthy, mostra exatamente isso. Mesmo sendo evidentemente de ascendência negra, a suposta socialite atacou uma criança negra visando aparecer na mídia usando o racismo.

Pintar pessoas de negro pode causar espanto, mas está longe de promover uma reflexão profunda sobre o assunto num país em que as chagas racistas são diversas e profundas. Seja a do negro que ataca negros ou dos empáticos em defender uma criança que atacam sua agressora de forma racista. Nada é simples, tampouco podemos entender ainda qual é o sentido que almeja a mostra em que algumas figuras abertamente racistas foram pintadas de negro e ganharam indumentárias, como roupas com estampas étnicas. Essa série de quadros está sendo produzida pela ex-consulesa da França Alexandra Loras, com curadoria do artista Marcus Vinícius Enivo, para a galeria Rabieh. A proposta de Loras é se colocar no mundo da arte como uma ativista artista e artista plástica.

Vale lembrar que Alexandra, que tem uma carreira jornalística e no campo das artes plásticas, nunca havia se manifestado, segundo consta sua própria biografia na wikipedia. E que desde que chegou ao Brasil, o fato de ser estrangeira a colocou num lugar que nenhuma mulher negra brasileira conseguiria. É fato que a branquitude brasileira é colonizada e, por isso, aceitar uma estrangeira de um país europeu falando sobre racismo é mais fácil do que aceitar uma mulher brasileira. Acredito que Loras vem ocupando um lugar que nenhuma outra mulher brasileira sendo negra seria convidada a estar. O caso da Taís essa semana mostra exatamente isso:  mesmo sendo uma atriz global e famosa, a fala que destaca a violência que seu filho está exposto metaforicamente numa sociedade racista foi considerada uma ofensa para homens brancos poderosos. Enquanto isso, Loras defende abertamente cotas na frente de homens brancos poderosos (como eu já vi) e não é interceptada da mesma forma – afinal, ser uma mulher estrangeira francesa dá ela um aval para a branquitude brasileira que se julga extremamente culta, contudo é extremamente colonizada. Já li muitas pessoas dizendo que Loras estaria “furtando” o espaço de mulheres negras brasileiras quando, na verdade, o espaço ocupado por ela é um espaço que não seria concedido à negras brasileiras.

O caso é que ativistas brasileiros estão questionando o lugar que Loras teria na nossa sociedade para propor uma exposição como essa – tendo em vista que ao pintar digitalmente pessoas brancas como Donald Trump, William Waak, Michel Temer, Ana Maria Braga, Dilma Rousseff, João Dória, Xuxa Meneghel, Silvio Santos, Fátima Bernardes, entre outros -, a ex-consulesa estaria promovendo, dado a estética apresentada, algumas caricaturas que reforçam um padrão estético que remete sim a um blackface. No Brasil e no mundo o blackface é uma caricatura que desumaniza negros e surgiu no teatro não só para substituir figuras negras usando atores brancos, mas também para zombar por meio do reforço de estereótipos. O blackface nunca foi só o ato de se pintar de preto, mas o leque de simbologias como exagero e a caricatura em si, símbolos esses que estão presentes nas caricaturas pintadas digitalmente por Loras.

Vale lembrar que existem muitas propostas artísticas que trabalham na ideia de trocar personalidades brancas por figuras negras, ou até mesmo escurecer pessoas brancas com técnicas de pintura. É importante destacar que esses projetos existem em maior quantidade e ganham mais mídia do que os que pretendem dar espaço a personalidades negras, que na vida real são socialmente embranquecidas, pois muitos compreendem que a genialidade só faz sentido se atribuída a um branco. Por isso, é raro ver retratos de lideranças e destaques negros: nossa genialidade dificilmente é exaltada. Atualmente, Carolina Maria de Jesus vem sendo embranquecida no teatro com a atriz Andréia Ribeiro, assim como João Miguel que atuou esse ano no Sesc Bispo do Rosário.

Perceba que ninguém lido socialmente como branco quer interpretar foragidos negros, mas personalidades negras de destaque. Assim, ao tratar de figuras que são enegrecidas, vemos recorrentemente projetos que enegrecem quem goza dos privilégios raciais concedidos pela branquitude para promover segregação, violência e ódio contra negros e outros grupos socialmente marginalizados. A exposição que propõe pintar figuras brancas de negro, inclusive usando pessoas abertamente racistas, não me soa  como algo que incomodaria brancos, mas algo que ofende negros brasileiros que já lidam com invisibilidade. Nossos artistas raramente tem espaço em galerias, nossas grandes figuras históricas raramente são lembradas e, por fim, nossa construção estética tem capacidade de ir além do que aquilo que está sendo proposto.

Eu diria que por mais que muitos artistas trabalhem dentro desse viés da inversão racial, a estética apresentada em “Pourquoi pas” cria uma repulsa, um desconforto que me lembra a sensação de ver uma pessoa usando blackface. Não é só sobre o “pintar de preto”, mas a forma como o “pintar de preto” soar como piada – parece que ser negro sempre é uma grande zoeira que faremos com figuras que abertamente veem na sua branquitude uma virtude. Mesmo que a exposição seja proposta por uma mulher negra, no país da “nega maluca” não dá para defender o indefensável.

Bruno Gagliaso, Titi e Giovanna Ewbank (Foto: Reprodução / Instagram)

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