As mulheres de García Lorca – por: Fernanda Mayer

A dramaturgia de Federico García Lorca pode ser considerada como uma grande reveladora de tradições, poesia polifônica, organizações sociais e expressões da individualidade através da figura feminina em tensão, aprisionada nos rígidos moldes patriarcais.

Em suas obras, o poeta andaluz desenhava um triste retrato da Espanha no começo do século XX. A Igreja Católica, principal responsável pela construção dos conceitos morais, executava um férreo controle social, de modo a oprimir e delimitar o espaço feminino. A condição reprodutora legitimava a função social da mulher e relegava-a a um plano subalterno daquele conferido aos homens. O arquétipo da mulher espanhola no início do século XX é claramente definido por suas características biológicas.

Neste contexto, destaca-se a trilogia rural de García Lorca, composta por “Yerma”, “Bodas de Sangue” e “A Casa de Bernarda Alba”.

Em “Yerma”, a personagem principal sofre por não conseguir conceber um filho. Yerma recorre aos meios mais absurdos para tentar engravidar e se depara com a indiferença do marido, que não compartilha de seu sofrimento. Ao descobrir que Juan não quer ser pai, ela se desespera e o estrangula, pondo fim também à possibilidade de ser mãe. No decorrer da história, observa-se que a esterilidade de Yerma é muito mais de cunho emocional do que fisiológico e causada por um marido indiferente, por uma obrigação moral de manter-se em um casamento sem amor, pelo confinamento e pela cruel vigilância a qual é submetida pelo marido e suas cunhadas.

“Bodas de Sangue” conta a história de uma noiva que decide abandonar o noivo no dia do casamento para fugir com o homem que ama, deixando de ser mais uma mulher passiva em relação aos desejos matrimoniais. Esta escolha culmina em um fim trágico e sangrento.

 

Teatro do Movimento (UFBA) apresenta o espetáculo ‘Um rito de mães, rosas e sangue’ que homenageia os 75 anos de morte do Garcia Lorca. O ato poético é uma livre adaptação das três tragédias rurais do autor: “ Bodas de Sangue” , “Yerma” e “ A Casa de Bernarda Alba”.  Foto: Divulgação/G1.

No entanto, é em “A Casa de Bernarda Alba” que encontramos uma crítica mais forte e explícita. Após a morte do segundo marido, a matriarca dominadora, Bernarda Alba, impõe um luto de 8 anos a suas cinco filhas, submetendo-as a uma cruel reclusão sobre sua implacável vigilância e ordena: “aqui se faz o que EU mando”. Todas são obrigadas a se vestirem de preto, o que retrata a perda da identidade, a impossibilidade de mostrarem suas verdadeiras cores. A casa é uma masmorra impenetrável, cuja única saída é o casamento. A submissão incontestável das filhas de Bernarda é desestruturada por Pepe Romano, noivo da filha mais velha, Angústias, mas que se apaixona por Adela, a corajosa filha caçula, com quem se encontra às escondidas e também é objeto de desejo de Martírio, a irmã soturna e considerada como a menos atraente das irmãs. Reprimidas e solitárias, as filhas de Bernarda transformam a casa em um espaço hostil, resultando em um trágico desfecho.

Lorca adotou a idéia de uma casa sem homens para construir a história. No entanto, mesmo com a ausência quase total destes personagens, o domínio masculino está sempre presente de forma implícita nas cenas, especialmente através da própria Bernarda Alba, o que nos relembra que o machismo não é exclusivo dos homens, mas também está presente na mentalidade de muitas mulheres, como fica bem explícito na fala de Bernarda: “agulha e linho para as mulheres, chicote e mula para o varão; é assim que deve ser”; configurando uma definição de função e espaço baseada no gênero.

A primeira e a última fala de Bernarda são a palavra “silêncio!”, o que simboliza como aquelas mulheres eram condenadas à submissão e proibidas de demonstrarem seus sentimentos. Adela é a única filha de Bernarda que tem coragem de se rebelar contra a autoridade da matriarca e se entregar aos seus desejos. É por meio da fala de Adela que Lorca simplifica o que era ser mulher naquela época: “nascer mulher é o maior castigo”. É justamente esta personagem a única capaz de romper as convenções sociais do sistema que a sufoca. É a única que ousou vestir um vestido verde. É a única que não se importava com as aparências. E é a única que se declarou dona do seu corpo, de sua sexualidade e de seu destino.

Assumidamente homossexual, García Lorca construiu uma incrível crítica ao machismo e aos valores hipócritas da sociedade em que vivia. É triste observar como até hoje esta crítica ainda é necessária, já que apesar dos significativos avanços a mulher ainda precisa lutar por igualdade e para reafirmar a sua liberdade perante a sociedade.

As três obras possuem desfechos trágicos. A tragédia no grego significa romper com o que estava predestinado, com o que fora imposto. Em uma realidade na qual há ainda tantos resquícios de machismo, homofobia e racismo, a literatura de García Lorca ainda pode ser considerada atual, já que suas personagens, assim como milhões de pessoas hoje em dia, lutam, acima de tudo, por suas liberdades individuais.

Autora

Fernanda Mayer é cirurgiã-dentista pela Universidade de Brasília, brasiliense, 23 anos. Gosta de música, cinema, cavalos e literatura clássica.

 

 

 

Fonte: Blogueiras Feministas 

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