“Isso é comentário de mulher mal-comida”, disse o “homem de verdade” – Por: Leonardo Sakamoto

– Tá tão bom esse jantar que você já pode casar!

A frase pousou na mesa de jantar tão leve quanto é possível para um golden retriever sujo e molhado, que sai correndo do jardim e, sem muita noção do próprio tamanho, lambuza todos à sua volta.

A bem da verdade, ela recebera a contragosto aqueles convidados. Pedido do chefe, que queria usar a sua melhor repórter para aumentar o interesse do pessoal da área comercial e de agências de publicidade com o jornalismo online que produziam. Então, reuniu velhos amigos para uma conversa sobre perspectivas do mercado digital – ou alguma abobrinha semelhante – e pediu o favor.

O problema é que ela não era a sua melhor repórter à toa.

– Oi, como disse?
– Que tá tão bom esse jantar que você já pode até casar.
– Desculpe, não entendi.
– Ah, é uma expressão antiga. Você já tem tudo que se espera…
– … de uma mulher?
– Não de uma boa…
– …dona de casa?
– Não, de alguém que…
– … que existe para servi-lo?

Percebendo aonde isso ia dar, o chefe tentou jogar panos quentes.

– Quando se cansar do jornalismo, a Clarice* pode abrir um restaurante!

Mas aí já era tarde demais.

Dado os comentários que o incômodo convidado fez, mangando da reação da anfitriã, os papeis já haviam sido identificados. E se ele fosse desempenhar o do “porco”, ela não ficaria na plateia batendo palmas como a “submissa”.

Após o jantar e a sobremesa, todos foram para a sala de estar a fim de beber e jogar conversa fora. Lá, o convidado, para provocar ainda mais, começou a cometer impropérios sobre o lugar do homem e da mulher, piadinhas a respeito do gênero de produtos de limpeza e reflexões sobre o que é ser um “homem de verdade” nesse mundo confuso.

O único momento em que se dirigiu a Clarice foi para perguntar:

– Poxa, mas meu cálice está seco há um século.
– Desculpe! Mas como você está falando besteira há tanto tempo, achei que já havia bebido demais.
– Isso é comentário de mulher mal-comi…

Antes que pudesse terminar a frase, um cálice de tinto chileno – de boa safra, diga-se de passagem – voou em sua camisa branca. E algumas pessoas que estavam no jantar, mesmo com a memória afetada pelo álcool, juram que tudo teria terminado em furdúncio se o sujeito não tivesse sido controlado pelos demais.

– Vagabunda! Mulher não me trata assim – esbravejou, antes de sair porta afora e noite adentro.
– Acostume-se, o mundo mudou! – ainda gritou ela.

O chefe ponderou com ela que, apesar do cara ser um idiota, ela deveria se controlar mais:

– Por sorte, ele não era de uma agência grande…
– Não, você não está entendendo. Por sorte, o que eu tinha na mão era uma taça de vinho, não alguma coisa pesada ou cortante.

Ouvi a história de um dos envolvidos e achei interessante contar. Porque a reação de alguns dos presentes foi de que ela se destemperou e não de que o maluco em questão havia extrapolado os limites da convivência. De que foi “errado” e “violento” jogar o vinho nele, que só estava “dando sua opinião” sobre esses assuntos. Manchar uma camisa é violência. Reafirmar simbolicamente o machismo que mata, decepa, esfola e machuca, não.

Eu sei, eu sei… Mundo bizarro este em que vivemos.

A verdade é que a percepção de que ele estava errado só vai entrar na cabeça de algumas pessoas quando mais cenas como essa ocorrerem. Silêncio ou risinhos envergonhados são respostas mais fáceis no curto prazo. Enfrentar e contestar, por outro lado, mudam tudo.

(*) Troquei o nome real para Clarice porque adoro a Clarice Lispector.

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