As mulheres que dizem não

Nem tudo foi retrocesso em 2017: há algo importante que se move e não é para trás

Por ELIANE BRUM, do El Pais 

Mulheres protestam contra PEC 181 que pode criminalizar o aborto, na Avenida Paulista, em novembro de 2017 ROVENA ROSA AGÊNCIA BRASIL

Ele estava lá, o homem perplexo. Ele tinha dito qualquer coisa como “gostosa” para uma jovem mulher. E ela tinha mostrado o dedo, bem na sua cara. Tipo “te liga”. Ele explicava que aquilo não era abuso, era cantada. E a cada vez que explicava parecia encolher de tamanho. Acostumado ao topo da cadeia alimentar por quase toda uma vida, porque ele já era um velho, ele não conseguia compreender porque os lugares haviam mudado. Ele não podia mais fingir que era desejado, ele não podia mais dizer o que queria, e por fim ele desabafou que não era capaz de viver num mundo em que uma mulher não gostasse de ser chamada na rua de gostosa por um homem como ele. De repente, ele tinha ficado muito mais velho. E perguntava: mas por quê? E tenho certeza de que ele não estava blefando. Ele não sabia. Porque por tempo demais não precisou saber. E agora precisa. Naquele exato momento, aquele homem perdeu o último pinto que ainda ficava duro. E não tinha a menor ideia sobre como alcançar potência sendo o que não sabia como ser.

De tantas cenas fortes deste ano, a minha foi essa pequena, quase despercebida. Um desacontecimento que desvela um acontecimento feito onda.

Há uma brutalidade objetiva no que vivemos, no Brasil e em boa parte do mundo, que se acentuou ainda mais em 2017, neste período da história que talvez possa ficar conhecido como a paródia que ele também é, a da boçalidade do mal. E como já sabemos, em fases assim os anos não terminam nem começam, apenas se emendam, e a boçalidade do mal acordará em 2018 tão boçal quando dormiu em 2017. Possivelmente sem sequer saber de si, porque é constitutivo dos boçais ter certeza sobre tudo, inclusive sobre aquilo que menos conhecem, que é sobre si mesmos. Quem sabe de si tem dúvidas enormes, acorda sobressaltado à noite duvidando do seu próprio rosto. Os boçais jamais as têm, pensam que a máscara que colaram é sua única face e repetem muito a palavra “verdade”.

Continue lendo aqui 

+ sobre o tema

Thânisia Cruz e a militância que profissionaliza

“O movimento de mulheres negras me ensina muito sobre...

Assistência ao parto avança no Brasil, mas pré-natal ainda preocupa

Dados da maior pesquisa sobre parto e nascimento no...

Cidinha da Silva: ‘Autores brancos são superestimados na cena literária’

Quando Cidinha da Silva empunha a palavra, o mundo se desnuda...

para lembrar

Thânisia Cruz e a militância que profissionaliza

“O movimento de mulheres negras me ensina muito sobre...

Assistência ao parto avança no Brasil, mas pré-natal ainda preocupa

Dados da maior pesquisa sobre parto e nascimento no...

Cidinha da Silva: ‘Autores brancos são superestimados na cena literária’

Quando Cidinha da Silva empunha a palavra, o mundo se desnuda...
spot_imgspot_img

Thânisia Cruz e a militância que profissionaliza

“O movimento de mulheres negras me ensina muito sobre o ativismo como uma forma de trabalho, no sentido de me profissionalizar para ser uma...

Assistência ao parto avança no Brasil, mas pré-natal ainda preocupa

Dados da maior pesquisa sobre parto e nascimento no Brasil mostram avanços expressivos na prática hospitalar. A realização de episiotomia, o corte do canal vaginal com...

Cidinha da Silva: ‘Autores brancos são superestimados na cena literária’

Quando Cidinha da Silva empunha a palavra, o mundo se desnuda de máscaras e armaduras: toda hierarquia prontamente se dissolve sob sua inexorável escrita. Ao revelar...