Mulheres debatem alternativas para a crise política no livro “Tem Saída?”

Obra reúne ensaios de políticas e intelectuais sobre neoliberalismo, impeachment e a necessidade de uma visão mais plural na discussão política

Da Carta Capital 

O afastamento de Dilma Rousseff é um dos temas abordados no livro. Na foto, mulher protesta em Brasília contra o impeachment, em maio de 2016

No debate político brasileiro, as mulheres podem falar? Caso falem, elas são ouvidas? E, caso sejam ouvidas, são levadas a sério?

Na contramão do mainstream intelectual, que mesmo em ambientes progressistas costuma privilegiar análises masculinas e brancas, o livro Tem Saída? Ensaios críticos sobre o Brasil traz só mulheres como autoras.

A obra, publicado pela Editora Zouk em parceria com a Casa da Mãe Joanna, traz para o centro da discussão os diferentes olhares de mulheres ativistas, políticas e intelectuais sobre a mais recente crise política brasileira. Participam da publicação, além das organizadoras Winnie Bueno, Joanna Burigo, Rosana Pinheiro-Machado e Esther Solano, outras 25 mulheres.

Entre elas, há mulheres diretamente envolvidas com a política partidária, como a ex-candidata à presidência pelo PSOL, Luciana Genro, a pré-candidata pelo PCdoB, Manuela D’Ávila, além das vereadoras Sâmia Bonfim e Marielle Franco. Já entre as pesquisadoras, há nomes como o da filósofa Márcia Tiburi, a educadora Suzane Jardim e a professora de Ciência Política na UnB, Flávia Biroli.

“Compreender a esquerda, seus rumos e os caminhos traçados pelo lulopetismo são ações fundamentais para que se reconstrua (ou simplesmente se construa) um campo progressista democrático no Brasil. Entretanto, quando debates que enfatizam a urgência da autocrítica são engendrados – e eles o são, majoritariamente por vozes masculinas e brancas – reproduz-se não apenas a gênese da crise da esquerda, mas também a gênese da crise mais ampla, nacional”, argumentam as organizadoras no prefácio A prefiguração como saída política, disponível abaixo na íntegra:

A prefiguração como saída política

Por Winnie Bueno, Joanna Burigo, Esther Solano e Rosana-Pinheiro Machado* 

A indagação sobre as saídas para as crises que o Brasil atravessa tem permeado nosso cotidiano nas reuniões de família, nas redes sociais, na sala de aula e nos eventos científicos e políticos.

Não é raro que esses encontros e discussões acabem em processos destrutivos, agressivos ou violentos, pois são sintomas de uma sociedade polarizada e fragmentada – processo que veio a abalar algumas estruturas que estiveram acomodas por muito tempo no Brasil.

Pelo campo da direita, encarnada hoje nas forças que apoiam o governo Michel Temer (mas não apenas), somos convencidos de que o que ocorreu no Brasil foi unicamente um processo econômico de má-administração dos recursos (a corrupção) e de decisões macroestruturais equivocadas.

A saída, nessa lógica, seria aprovar um pacote de austeridade e reformas de enxugamento do Estado – especialmente a PEC 55, que prevê o teto de gastos públicos, a reforma trabalhista e a reforma da previdência.

Como deixou claro o Presidente Michel Temer durante um pronunciamento concedido em meio ao escândalo que colocou em risco a governabilidade de seu mandato, o que o Brasil precisava era apenas continuar no rumo certo, aprovando as reformas e retomando o crescimento econômico.

Já no campo das esquerdas existe uma tendência a perceber a crise como fundamentalmente política, e o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff seria o marco desse processo.

(Nesta linha argumentativa, não é raro voltar aos protestos de junho de 2013 no afã de criar uma genealogia do golpe, identificando naquele momento a emergência de forças conservadoras.) A saída, portanto, seria restaurar a democracia e retomar um projeto de governo popular.

A primeira coisa a pontuar acerca de nossa provocação “Tem Saída?” é de que não existe uma saída para a crise, mas múltiplas saídas. O que ambas as posições polarizadas têm em comum é uma leitura populista da crise, enxergando-a por meio de uma lente sincrônica e unidirecional, que fornece saídas simplistas.

As autoras reunidas no lançamento do livro em São Paulo, na segunda-feira 18

As posições igualmente ignoram o fato de que uma crise com as proporções como a que estamos atravessando nunca é totalmente nova.

Neste livro, partimos da premissa que estamos diante de uma crise multidimensional, tendo seus atravessamentos nas esferas econômicas, políticas e democráticas, sociais, étnica-raciais, culturais e interpessoais.

E o que as autoras deixam bastante evidente é que o momento atual, portanto, pode ser definido como uma intensificação e visibilização de diversas formas de opressão, violência estrutural e ausência da ordem democrática que sempre estiveram presentes no cotidiano das camadas subalternizadas da população brasileira.

No campo progressista, em que este livro se situa, são tímidos os projetos emergentes que forneçam um projeto de nação radicalmente alternativo à ordem vigente.

De modo geral, as esquerdas encontram-se perplexas com a ruptura democrática e a virada conservadora que ocorre não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos, na França, na Alemanha e no Reino Unido – para citar apenas alguns exemplos.

Nesse contexto, percebe-se a emergência de um movimento reflexivo de autocrítica e de avaliação de cenários, formando certo consenso de que haveria, ainda, uma outra crise no Brasil: a crise da própria esquerda – e a prova disso seria a dificuldade que lutas populares parecem enfrentar na criação de campos de resistência, tensão e debate capazes de frear o ritmo das reformas, e de produção de mobilizações de massa para além do alegórico “Fora Temer” em muros, shows e cinemas.

Não é à toa que o tema da crise das esquerdas tem sido recorrente nos debates nas universidades, nas conversas entre partidos e movimentos sociais, e também em um conjunto de publicações recentes.

Compreender a esquerda, seus rumos e os caminhos traçados pelo lulopetismo são ações fundamentais para que se reconstrua (ou simplesmente se construa) um campo progressista democrático no Brasil.

Entretanto, quando debates que enfatizam a urgência da autocrítica são engendrados – e eles o são, majoritariamente por vozes masculinas e brancas – reproduz-se não apenas a gênese da crise da esquerda, mas também a gênese da crise mais ampla, nacional.

Ambas são indissociáveis, se não a mesma crise, pois possuem uma natureza comum: a exclusão histórica dos grupos subalternizados, fruto da resistência contra a potencialização, de fato e de direito, de uma base diversa de atores políticos.

Não basta repetir o cliché de que é preciso “mais escuta”. Longe de afirmar que a escuta não é importante, o que queremos dizer é que, mais do que serem escutados, grupos historicamente subalternizados precisam estar à frente dos debates, das ações e das esferas de poder e processos decisórios.

Este livro, portanto, ganha forma a partir do entendimento de que as crises pelas quais estamos passando são antigas, enraizadas na sociedade brasileira, e remetem à mesma saída: a radicalização do projeto democrático desde a base.

Acreditamos não ser possível discutir soluções para as crises sem um aspecto prefigurativo, ou seja, sem que o próprio livro não seja uma tentativa de representação mimética da sociedade que lutamos para construir.

Se o desejo democrático nunca é alcançado e é sempre postergado e relegado a atores externos, este livro rompe com essa lógica no momento em que a tática prefigurativa adotada cruza a linha do desejo e refaz – no aqui e no agora – a sociedade que queremos.

Desde a capa deste livro, trazemos para o coração do debate político os olhares e as vozes pulsantes e provocativas de mulheres que são deixadas em segundo plano: das mulheres negras, trans, pobres, indígenas, ativistas, políticas, intelectuais. Cientistas, anarquistas e partidárias. Do Rio Grande do Sul ao Pará. Essas mulheres não são apenas “ouvidas” aqui: elas são próprio motor da transformação social.

O livro está dividido em cinco partes.

Na primeira, Neoliberalismo e Governabilidade, as autoras apresentam panoramas em meio a um cenário decididamente neoliberal, desde suas alianças com o conservadorismo às contradições e limites da política brasileira e seus sujeitos.

Na segunda parte, Impeachment e Resistência, autoras fornecem tanto uma radiografia do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff quanto compartilham as formas como pensam sobre resistências emergentes do cenário de crise, cortes e perda de direitos. A terceira e quarta partes explicitam os motivos pelos quais não podemos falar em crise como excepcionalidade, já que anormalidades democráticas profundas sempre existiram para os setores mais vulneráveis da população, afetando seus corpos, os marginalizando, ou matando-os.

Na terceira parte Democracia, Nação e Interseccionalidade, fica evidente que o projeto de nação brasileiro é excludente desde sua fundação, se reproduz na sua autoimagem e prejudica as mulheres, de formas mais aprofundadas as mulheres negras, indígenas e as mais pobres. Assim, não há como falar em saída democrática sem ter como prioridade a melhoria da vida das mulheres.

Na quarta parte do livro Corpo, Vida e Morte, as autoras explicitam algumas das muitas formas com que crises violam os corpos e tiram as vidas daqueles e daquelas que sobrevivem no sistema.

Por fim, na quinta e última parte, Imaginação, Sentido e Caminhos da Política, abrem-se necessárias pontes, tanto entre passado, presente e futuro como entre projetos e perspectivas.

Diferentemente do mainstream político e acadêmico, branco e masculino, o que as intelectuais deste livro estão apontando é que precisamos do uma nova utopia, uma política de pensamento e conhecimento que seja capaz de olhar para o passado e re-imaginar o futuro.

É um passado de genocídio e exclusão, mas também de lutas e sobrevivências. De forma criativa e inovadora, é preciso juntar essa memória potente de resiliência, resistência e sobrevivência para redesenhar o futuro democrático que sonhamos.

Entre o passado e o futuro, deixamos as leitoras e os leitores com este livro, que é uma tentativa presente de reunir as vozes e os olhares daquelas que cravam a sua própria autonomia.

* Winnie Bueno é iyalorixá, ativista feminista negra latino americana, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas, mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale Rio dos Sinos. Joanna Burigo é fundadora da Casa Da Mãe Joanna, professora e coordenadora da Emancipa Mulher, escola de emancipação feminista e luta antirracista. Rosana Pinheiro-Machado é professora, colunista e pesquisadora. Atualmente está baseada na Universidade Federal de Santa Maria. Esther Solano possui Mestrado em Ciências Sociais – Universidad Complutense de Madrid (2009) e doutorado em Ciências Sociais – Universidad Complutense de Madrid (2011).

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