Alguém da plateia chamou a atenção para o fato da atriz, Georgette Faddel, fazer o papel de Stela do Patrocínio, uma negra, sendo ela branca. A atriz não só concordou, como escreveu um belo texto: “Estou menos preocupada com a minha arte e mais preocupada em ouvir e respeitar a imensa voz que não quer ser representada por uma voz opressora”.
Por Julinho Bittencourt, Do Portal Fórum
Na última segunda-feira (3), o espetáculo “Entrevista com Stela do Patrocínio”, dirigido e interpretado por Georgette Fadel, com trilha sonora e direção musical de Lincoln Antônio, fazia mais uma apresentação, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, quando alguém da plateia chamou a atenção para o fato da atriz, Georgette, fazer o papel de uma negra, sendo ela branca.
O espetáculo, em cartaz há mais de dez anos, tem a trilha e direção musical de Lincoln Antônio, que atenta para o fato que “Entrevista com Stela do Patrocínio” tem a quarta parede completamente aberta. “São normais as manifestações da plateia e vice e versa”. Mas algo ali, na manifestação daquele homem negro, naquele dia, tocou profundamente, tanto a atriz quanto o músico.
“Fazemos este espetáculo há muito tempo, mas esta é uma questão que nos toca e precisamos aprender a lidar com ela. Ouvir que não é bom, legítimo e verdadeiro um branco representar um negro tem que nos levar à uma reflexão mais ampla. Eu sou branco mesmo, não conheço de fato essa dor”, disse Lincoln.
Georgette Fadel foi mais longe, e publicou um longo depoimento em sua conta no Facebook, onde diz que nem foi e nem se sentiu agredida. “Estou e sempre estarei do lado da luta dos negros, a questão é violenta mesmo. É pura violência. Trata-se de um povo que foi escravizado. Estou menos preocupada com a minha arte e mais preocupada em ouvir e respeitar a imensa voz que não quer ser representada por uma voz opressora seja ela da artista legalzona ou da madre Tereza de Calcutá. Entendo o momento histórico”, definiu.
Ao final do espetáculo, a questão foi debatida de forma mais tranquila e outros encontros deverão ocorrer para se discutir o assunto. Georgette se manifestou pronta a deixar o papel, se fosse este, de fato, o caso. “Se eu parar de fazer esse espetáculo não será pelo acontecimento de ontem (segunda-feira) que só me fez crescer. Mas por achar melhor diante da luta, por querer muito ver e ouvir uma atriz negra contando e cantando essa história que é sim, mais sua que minha” disse no seu depoimento.
Veja, abaixo, o depoimento completo de Georgette Faddel:
“Amores, amigos, quantos elogios e reflexões e coisas lindas estão sendo escritas para valorizar o espetáculo entrevista com Stela do patrocínio e nos defender como artistas livres, mas quero tranquiliza-los, eu não fui ou pelo menos não me senti agredida, estou e sempre estarei do lado da luta dos negros, a questão é violenta mesmo. É pura violência. Trata-se de um povo que foi escravizado. Estou menos preocupada com a minha arte e mais preocupada em ouvir e respeitar a imensa voz que não quer ser representada por uma voz opressora seja ela da artista legalzona ou da madre Tereza de Calcutá. Entendo o momento histórico. Entendo esse “veto”. Sinto sua legitimidade no meu coração. Se eu parar de fazer esse espetáculo não será pelo acontecimento de ontem que só me fez crescer. Mas por achar melhor diante da luta, por querer muito ver e ouvir uma atriz negra contando e cantando essa história que é sim , mais sua que minha. Entendo e compartilho do temor que percamos a liberdade, que a coisa toda tome ares de censura, mas temo mais que percamos a oportunidade de entendermos a situação. Eu chamei para o palco os amigos que se manifestaram. E os chamaria de novo e posso muito bem descer do palco para ouvi-los com atenção. Acho que foi Rosa Luxemburgo quem disse: “Liberdade é a liberdade do outro”. E Espinosa: “em relação às coisas humanas, não chorar, não rir, não se indignar, mas compreender”. Vamos aproveitar e alargar nossas consciências pra TODOS os lados. Estou em contato com a moçada que levantou a discussão no espetáculo e eles vão me ensinar várias coisinhas. Foram muito abertos e legais. É claro que estou triste, que não é uma questão fácil pra mim, que é uma dor ser desautorizada no meu ofício de representar justamente o que não sou, mas essa tristeza não me tira também a visão da importância dessa “dureza” do movimento na ocupação dos espaços de toda natureza se se quer avançar nas questões raciais. Essa é uma colocação pessoal, meus amigos do Núcleo do Cientista talvez tenham divergências. Mas estamos animados com a poeira levantada e o diálogo à vista. Beijões”
Aqui mais informações sobre o espetáculo “Entrevista com Stela do Patrocínio”
Fotos: Daniel Kersys