Áurea Carolina: “Eu gosto de fazer política. Então eu continuo achando que ela pode ser bonita.”

“A transformação das práticas das esquerdas para fazer avançar as lutas sociais deve passar pelo reconhecimento das diferenças: de gênero, étnico-raciais, de orientação sexual, geracionais, de território, de origem socioeconômica, porque essas diferenças são condições de existência das pessoas nesse mundo. E o capitalismo associado aos outros sistemas de opressão de gênero, raça, tem uma materialidade nesses corpos.”

Fonte: Blog da Boitempo

Entrevista especial com Áurea Carolina.

Áurea Carolina de Freitas e Silva é cientista política e educadora popular com especialização em Gênero e Igualdade na Universidad Autonoma de Barcelona, formada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Próxima dos movimentos de rua, ela também foi subsecretária de Políticas para as Mulheres do Estado de Minas Gerais e uma das fundadoras do Fórum das Juventudes da Grande BH. Desde sua fundação, ela colabora com a #partidA e participa do movimento “Muitas pela Cidade que Queremos” que discute política sentadas no gramado do Parque Municipal de Belo Horizonte. Em outubro de 2016, Áurea Carolina foi eleita vereadora, com o maior número de votos na cidade. Junto com Cida Falabella, também eleita vereadora pelo PSOL, ela permite ao partido de entrar, pela primeira vez, na Câmara Municipal.

Nesta conversa, conduzida por Luc Duffles Aldon e que dá sequência à série de entrevistas do Movimento Democrático 18 de Março (MD18) com grandes intelectuais de esquerda publicadas no Blog da Boitempo, ela fala das perspectivas de sua vereança e de um outro modo de fazer política. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, a segunda, com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, a terceira com o historiador Luiz Marques a quarta, com o cineasta Eryk Rocha, a quinta, com o filósofo e crítico social Anselm Jappe, a sexta com o senador francês Antoine Karam, a sétima com o Frei Henri Burin des Roziers, e a oitava com a ativista transfeminista e professora Viviane Vergueiro.

Você se apresentou como uma candidata “mulher, negra, jovem” e uma feminista interseccional. Qual é a importância das políticas de reconhecimento na reconstrução de uma nova esquerda? Como o hip hop e a “cultura urbana” influencia sua cultura política?

A reconstrução de uma nova esquerda ou, de uma forma mais complexa, a transformação das práticas das esquerdas para fazer avançar as lutas sociais deve passar pelo reconhecimento das diferenças: de gênero, étnico-raciais, de orientação sexual, geracionais, de território, de origem socioeconômica, porque essas diferenças são condições de existência das pessoas nesse mundo. E o capitalismo associado aos outros sistemas de opressão de gênero, raça, tem uma materialidade nesses corpos. São as mulheres negras periféricas as que mais sofrem com a exploração econômica e isso vem sempre associado a outras formas de violência. Não podemos falar de uma transformação social por justiça, por igualdade, por equilíbrio de poder, sem trazer a centralidade dessas dimensões dos nossos corpos que têm uma vida condicionada, o tempo inteiro, por essas desigualdades. Por isso mesmo, os feminismos interseccionais são perspectivas de ação, de percepção da realidade, que trazem essa dimensão dos corpos presentes e de como as desigualdades afetam diretamente as nossas condições de vida.

A cultura hip hop e as culturas urbanas, de forma geral, são fundamentais para essa percepção crítica da nossa realidade. Elas são essenciais para a compreensão das contradições de um sistema capitalista que vai criando contornos próprios e que existe além da questão econômica pois, como isso tudo, ele vai sendo também processado em um sistema racial e patriarcal mais uma vez. As culturas urbanas são linguagens que nos ajudam a estar no mundo. Essa sensibilidade estética é também política e, para mim, foi uma escola de vida; foi por meio do hip hop que eu acessei várias lutas, foi uma senha fundamental para a minha politização.

Você disse que sua eleição, como o maior número de votos (17,420) na capital mineira, é a demonstração da força do campo da resistência das ruas e da cidade. Essa força vem sendo um desafio analítico eleitoral, desde de junho de 2013, e hoje, no meio da crise institucional brasileira. Frente aos candidatos “antipolíticos” você acredita mesmo que “a política pode ser bonita”?

A questão dos candidatos antipolíticos, eu percebo que ganhou muita força no Brasil, sobretudo a partir de junho de 2013 quando duas grandes narrativas sobre a política foram ganhando destaque no debate público. As duas têm a ver com uma insatisfação com o sistema político mas elas levaram a caminhos diferentes: um caminho que é pela radicalização da democracia, pela participação popular, pela recuperação do sentido da política como uma responsabilidade de todas as pessoas e também uma rejeição aos grupos tradicionais que controlam o poder. A outra narrativa traz também essa rejeição à política tradicional mas caminha em uma despolitização, no sentido de que a política é sim esse lugar da corrupção, que não tem muito o que se fazer e que a política em si é problemática.

Então de uma percepção comum de que o sistema político, tal qual funciona hoje, não nos representa e precisa ser transformado, saíram dois caminhos talvez, pelo menos os que prevaleceram. Esse de recuperar a política como um fazer coletivo de corresponsabilidade das lutas, de disputar as instituições a partir da diversidade da população, de reconfigurar para que o poder seja compartilhado. E um outro caminho, que é o da negação da política. Esse caminho de despolitização, que foi muito capturado pela direita e pelas forças conservadoras. Isso foi alimentado demais na mídia convencional e esse discurso de “chega de políticos, nós precisamos é de gente pra trabalhar na politica, de gestores…” O Dória em São Paulo, o Crivella no Rio e o Kalil em Belo Horizonte são exemplos de como esse discurso tem ressonância, mesmo.

Eu continuo achando que a política pode ser bonita porque o sentido da política está em disputa. Eu disputo uma política de cooperação, uma política de aprendizado, de construção coletiva, uma política que sirva para nos emancipar e não essa política em que alguns grupos controlam o jogo ou uma política que é distante da população, uma política que parece ser uma tarefa de alguns poucos. Não! Eu acho que a política é uma tarefa quotidiana, é um dever de cidadania também e é um exercício que vale a pena, eu gosto de fazer política. Então eu continuo achando que ela pode ser bonita.

Seu compromisso com o mandato coletivo é uma forma para “contagiar” seus eleitores, ou mais ainda os 742.050 votos nulos/brancos/abstenções com a alegria política?

Para a política ser bonita, é preciso fazer um trabalho grande de estar lado a lado com as pessoas, fazer mobilização social, educação popular, atuar nos territórios para que se recupere essa dimensão da corresponsabilidade que nós podemos sim, apesar de todas as desigualdades, fazer diferença ocupando as instituições ainda que o jogo seja muito brutal, muito violento.

Ter mulheres negras lutadoras nos espaços de poder é sim uma possibilidade de conquistar direitos ou pelo menos de ampliar o debate, de trazer novas perspectivas, de politizar questões que, em geral, são inviabilizadas. Então, se uma de nos ocupa esse espaço, ainda que esse espaço tenha uma dinâmica própria histórica de dominação de grupos, nós, alí, somos uma infiltração, uma pequena ruptura que pode significar melhoria de condição de vida de muitas de nós. “Quando uma de nos avança, ninguém retrocede”, esse é um lema importante para as mulheres negras e é preciso olhar em perspectiva histórica também, o que significou ter conquistas de direito ao longo do tempo. Nós não resolvemos todas as desigualdades, mas cada passo importa. Meu esperançar nesse contexto tão desfavorável é de exercitar, o tempo todo, esse sentido da política que me trouxe até aqui e trazer mais gente pra perto. Não é uma jornada pessoal unicamente, ela é antes de tudo coletiva e assim sustenta a minha existência pessoal.

Qual é o esperançar de uma vereadora num contexto de crise institucional, numa capital de um Estado em situação de calamidade financeira? E com a judicialização da política e a hipermediatização do conflito entre os 3 poderes, como reafirmar a função de vereadora?

Em um Estado de calamidade financeira, é preciso discutir quais são as prioridades de investimentos, para onde está indo o recurso público. Esse é um debate muito difícil e uma disputa que nós precisamos fazer. Além disso, como nós vamos destinar os recursos nesse momento de muita privação e de acirramento de uma crise que está levando ao desemprego e que, com as medidas do golpe, vão significar precarização dos serviços públicos. É dramático o contexto!

No entanto nós precisamos estar nos espaços institucionais para fazer esses debates também. E, ao mesmo tempo, fortalecer a auto-organização das lutas. Essas são dimensões imprescindíveis para a transformação e a reorganização das esquerdas.

Eu acredito que a função de uma vereadora, em um Estado que tem todos os seus poderes, a mídia, a cultura, sistemas de relações funcionando, desigualdades estruturando uma sociedade, é vocalizar o que as lutas estão construindo, denunciar, contribuir para que as pessoas acessem os espaços de poder, defender pautas urgentes; é ser uma agente colaboradora a serviço das lutas. É assim que eu encaro a vereança. É um cargo que tem muitas limitações mas que tem o potencial, ao mesmo tempo, de fazer essa circulação. É nisso que eu vou apostar, junto com a Cida Falabella e as Muitas pela cidade que Queremos, nesse contexto em que nós somos eleitas em Belo Horizonte, junto com a Frente de Esquerda BH Socialista, fazer um mandato para fortalecer a resistência popular e utilizar os recursos que temos para ampliar nossas capacidades democráticas, potencializar tudo isso. É um desafio enorme, mas eu estou muito animada e acho que é necessário fazer essa travessia.

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