‘Aprendi mais com o candomblé do que na universidade’, diz a artista portuguesa Grada Kilomba, convidada da Flip
Por Paula Carvalho, Da A Revista dos livros
Na vídeo instalação Illusions 2, a artista portuguesa Grada Kilomba faz uma releitura da história do trágico Édipo, aquele que mata o pai e casa com a própria mãe em plena ignorância. Ao se apropriar da narração da tragédia grega, ela cria um nó na interpretação freudiana da história e traz à tona uma série de elementos que se relacionam ao racismo. Além de narradora, Kilomba tomou para si o papel mais enigmático de todos: o da misteriosa esfinge, o monstro que desafia a entrada de Édipo em Tebas com um enigma. “Decifra-me ou devoro-te” parece ser o mantra decolonial em torno do racismo que Kilomba, essa mulher-esfinge, confronta o público: ou o encaramos de frente, ou todos seremos levados para o abismo.
O tema é recorrente não só em seus trabalhos artísticos – que podem ser vistos na Pinacoteca de São Paulo na exposição “Desobediências Poéticas” –, mas também no livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, lançado no Brasil pela Cobogó. Trata-se da sua pesquisa de doutorado realizada em Berlim e escrita originalmente em inglês, que segue histórias do racismo vivido por mulheres de descendência africana na Alemanha. Ao escancarar o racismo (e o colonialismo) em situações aparente banais, Kilomba – de ascendência angolana e são tomense – mostra a naturalização desse sistema calcado nas relações de poder que envolvem a branquitude. Ao mesmo tempo, critica a ideia do universalismo, cuja referência é o homem branco europeu, o que acaba por excluir a maior parte dos outros seres humanos, de mulheres a homens não brancos, passando por pessoas com gêneros não definidos.
Convidada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) desta sexta-feira na mesa das 19h, ela conversa com o agitador cultural angolano –e eventual colaborador – Kalaf Epalanga e a historiadora Lilia Schwarcz. Mas antes ela deu uma longa entrevista para a Quatro Cinco Um, que falou sobre como transformar a língua, se é possível descolonizar as disciplinas acadêmicas e como a espiritualidade permeia todos os seus trabalhos.
Você fala alemão e português, escreve em inglês. Em Memórias da plantação, você comenta muito das diferenças entre essas línguas. Quais diferenças você vê ao se expressar em cada uma dessas línguas? Eu escrevo e trabalho em inglês porque também é a língua mais predominante na Europa. O inglês também é a língua predominante, se queremos que nosso trabalho se faça entender entre as várias fronteiras. Depois tem outro aspecto mais de conteúdo. A língua inglesa tem a particularidade de ter sido a língua usada por grande parte dos intelectuais da diáspora africana, para o movimento negro de libertação, os estudos pós-coloniais, da descolonização. Começamos de Martin Luther King a Malcolm X, Angela Davis, Audrey Lorde, bell hooks, passamos para Londres para Paul Gilroy, Stuart Hall ou todas as grandes iniciadoras do movimento de libertação negro que escreveram e desmantelaram a língua em inglês. Muitos desses livros ainda não existem, por exemplo, em português ou em outras línguas. A língua portuguesa se manteve muito fechada. Isso ficou visível durante a tradução de Memórias da plantação.
Você acompanhou a tradução? Sim, o livro em Portugal saiu em maio, pela Orfeu Negro, e no Brasil em julho, pela Cobogó. Então foi quase um trabalho simultâneo. Ambas estavam a traduzir e nós recebemos as traduções, e depois percebi algo que eu sabia, mas que se manifestou de uma forma tão forte: a língua portuguesa é extremamente problemática. Nós sempre abordamos a língua de uma forma muito glorificada, muito romântica e muito colonial. “Ela soa tão bem”, é a língua mais linda do mundo. Um dos grandes discursos coloniais é celebrar o fato de termos a língua mais bela de todas, sem pensar como essa língua abafou e erradicou tantas outras, e quem pode representar e ser representado por essa ela. E quando nós chegamos à tradução, fomos confrontados exatamente com isso: quando se traduz um livro do inglês para o português muitas das frases deixavam de fazer sentido, porque muitas das terminologias que temos são terminologias que existem apenas no gênero masculino, e que não podem existir em outros gêneros a não ser que sejam identificadas como erro ortográfico. Assim, trazem questões sobre como a língua é capaz de perpetuar a violência e o poder, e como a língua tem essa função de fixar identidades num certo lugar. Uma frase que só pode existir no sentido masculino deixa de fazer sentido quando escrita por uma mulher que está escrevendo exatamente um discurso feminista, negro, de libertação, de empoderamento, e depois só pode existir nessa frase numa condição que é a condição masculina. A língua nos informa diariamente quem é normal, quem pode representar a verdadeira condição humana e quem são os outros que não podem fazer isso. Temos que repensar a língua e perceber como ela tem essa função importante de produzir racismo, opressão.
Você vê diferenças entre o português de Portugal e o do Brasil? Vejo algumas diferenças. O discurso pós-colonial e odecolonial é mais familiar em Portugal que no Brasil. Talvez, porque estejamos rodeados de países que exigem que Portugal acompanhe o discurso. Outra coisa que achei muito interessante foi a forma como no Brasil, ao contrário de Portugal muitos dos termos que usamos para a diáspora africana são problematizados porque têm uma nomenclatura colonial e racista e, portanto, ou não são mais usados ou são usados na forma abreviada [por exemplo, “preto” é escrito como “p.”] para não serem reproduzidos. Ou são repensados e criticados com mais facilidade que no Brasil, onde são usados mais comumente. Outra diferença da tradução é que em Portugal falamos do “eu” e no Brasil fala-se “a negra”, “o negro”. É a objetificação do corpo negro. No Brasil, fala-se sobre o outro, mas eu não posso falar sobre mim própria como outro, eu sou eu.
Como é possível transformar a língua? É um processo de questionar a língua. Primeiro, é preciso abandonar o romanticismo sobre a língua. Tanto Brasil quanto Portugal basearam suas identidades nacionais na glorificação do colonialismo da língua portuguesa. Nós falamos português sem pensar como essa língua surgiu a nível global. Várias línguas foram erradicadas. No Brasil existem mais de duzentas línguas indígenas. Eu não sei nomear uma delas. Quais são? Quando eu falo meu nome as pessoas não sabem de que língua é. Não sabem que existem línguas extremamente importantes e que dominam todo o continente africano que é o quimbundo, que é de onde vem Kilomba. As pessoas não sabem, mas usam a língua aqui também, salteada, em um monte de palavras afro-brasileiros. Há toda esta cultura e estes conceitos e conhecimentos que foram erradicados pela língua e a performance da língua. A escrita, a literatura e as artes têm esse ato muito político de possibilitar se tornar sujeita e autora da sua própria história. Para mim é um ato muito politizado narrar a própria história como autora e autoridade, e não como outra. Isso também quer dizer que estamos criando novos conceitos de conhecimento, de narrativa e de língua, porque é um desafio à língua. Ao termos o privilégio de escrever e narrar, a língua é questionada na sua própria forma porque os termos têm que ser mudados para quem tem a fala. Eu não posso falar da mesma forma que um homem branco fala, usando a mesma linguagem. Daí eu questiono a língua, a terminologia como sou definida, porque não me defino com essa terminologia. Para mim tem essa noção muito política de reinventar a condição humana, o conceito do conhecimento.
Qual sua opinião sobre grupos que defendem não ler mais autores homens brancos que formam o cânone ocidental, por serem considerados no presente como misóginos e racistas, em favor de autores não brancos? Eu tenho opinião muito radical. Dei aulas na universidade por quinze anos em várias universidades europeias, em Londres, Viena, particularmente na Humboldt-Universität, em Berlim. É muito importante fazer decisões radicais para transformar espaços. Em todos os anos, eu só dava autores colonizados, autores negros, women of color. Isso era uma decisão não radical, mas consequente. Se esse é um processo de descolonização, tem que ser consequente naquilo que se faz. Os alunos e as alunas têm acesso a todos os outros autores e livros. Não é importante cultivar acesso a esses autores. O que é importante é fundamentar uma relação com novas perspectivas. Nós podemos continuar a estudar Kant e Hegel, mas muitas das obras desses autores do chamado conhecimento filosófico e científico foram encomendas do projeto colonial. E o projeto colonial precisou da construção da ciência e do conhecimento para justificar o colonialismo. Hegel, Kant e outros desenvolveram as teorias de como o africano é inferior. Tudo que é ciência, geografia, topografia, antropologia, filosofia, psicologia, o filme, o teatro, mesmo dentro das artes, teve a função de criar… todos esses corpos negros e indígenas foram marginalizados, objetificados, inferiorizados e justificados pela ciência. Há uma relação muito íntima entre poder e ciência. A ideia do que é o conhecimento clássico não é simplesmente um estudo apolítico da verdade, é a reprodução das relações de poder e de gênero e de raça na nossa sociedade. Ao se perceber isso, percebemos que não é urgente ler todos esses autores que nós questionamos pelos seus racismos, que foram escritos em outro tempo e também com outra função, outra intenção. Não preciso ler esses autores. Aliás, fui forçada a ler esses autores. O que eu preciso e o que a sociedade precisa é ler autoras com um pensamento crítico que foram marginalizadas e silenciadas dentro do cânone, que não existem fisicamente nas bibliotecas. É preciso trazer estes livros para o presente. É um ato muito metafórico e deixar que eles existam no presente, porque eles são os livros urgentes para se ler agora.
É uma forma de descolonizar disciplinas como história e antropologia? Não sei se é possível descolonizar a antropologia. Muitos autores e artistas pós-coloniais, da diáspora africana, nós já criamos um outro saber que não tem a ver com disciplinas clássicas. Eu não estou interessada em descolonizar a antropologia. Não me interessa antropologia. Antropologia não serve ao meu conhecimento, ao que eu quero construir no meu discurso. Já há mais de muitas décadas, artistas e intelectuais da diáspora criam um discurso que não obedece a nenhuma dessas disciplinas. É uma transgressão das disciplinas. Fala-se para além das disciplinas e cria-se um trabalho que é interdisciplinar. Portanto, isso que é descolonização. Nós já temos isso com Frantz Fanon, que foi um dos autores mais importantes e uma das minhas grandes referências, e que não sabes classificar. Essa hibridade, essa confusão consegue desmantelar as formas clássicas. Isso é descolonização. Todas as disciplinas têm uma relação extremamente complicada com a negritude, e que não conseguem lidar coma negritude.
Você estudou psicologia. O racismo não entra nos estudos da psicologia e é até invisibilizado. O racismo afeta toda a gente. O racismo define a branquitude, acima de tudo. Mas a branquitude, pelo contrário, é definida porque marca os outros. A branquitude é definida através do racismo ao marcar os outros. O racismo é permanente em todas as biografias. Porque definiu o mundo globalmente durante quinhentos anos, assim como patriarcado, a homofobia. Essa definição da condição humana “normal” é construída através da marcação dos outros e das outras como desviantes. Há sempre uma relação de poder e de patologização dos outros. O racismo e o colonialismo são tão proeminentes na minha história como na tua história. A única diferença é que a branquitude faz uma performance do racismo, e a negritude experiência o racismo. Quando eu experiencio o racismo é porque ele vem de algum lado. Porque uma performance é um exercício da branquitude, um exercício em manter o passado no presente, é um exercício em reencenar um sistema de passado e que insiste em não viver no presente e que insiste em viver no presente como se fosse o passado. Isso é um exercício de branquitude, de poder, de privilégio. A diferença é que a branquitude tem o privilégio de não saber, não ter que saber.
Qual a sua visão da história colonial no Brasil? O Brasil é muito especial. É um pouco como a Austrália. É uma colônia bem-sucedida. É uma nação que foi colonizada e que ficou nas mãos dos colonizadores. Esse processo de descolonização política, estrutural, que aconteceu em outros países, nunca existiu. Isso é muito óbvio quando estamos aqui. Um país extremamente colonial, com uma estrutura colonial, com relações muito colonizadas. Para mim que venho de fora é uma constante tensão. As relações são muito tensas porque este cenário colonial está sempre presente. A arquitetura para mim é um dos lugares físicos mais marcantes no Brasil porque é, de fato, desenvolvida de uma forma que não conheço, com uma porta de fundo, uma porta da frente, onde os corpos não se veem, onde os corpos não podem entrar onde os corpos dominantes entram, e entram por trás porque são corpos que são corpos sujos, mas que vêm limpar a sujeirada. E que, portanto, não podem entrar em contato com os corpos limpos, que entram pela frente. Usar o espaço físico desse modo é de uma violência quando vivemos em uma democracia, entra em conflito direto com o que é uma democracia: não são todas as pessoas que podem entrar pela mesma porta.
No seu livro, Gayatri Spivak com Pode o subalterno falar é uma referência importante. Como se lidar com a questão de um sujeito subalterno que ascende em espaços de poder? Ele deixa de ser subalterno por ser considerado intelectual? Acho que a bell hooks explica isso muito bem. Ela diz: “O que é o racismo? Racismo é a supremacia branca”. Porque racismo é preconceito e poder. E poder quer dizer poder histórico, constitucional institucional, de representação. E quem tem esse poder socialmente, historicamente, institucionalmente, estruturalmente, constitucionalmente é a branquitude. Portanto, mesmo e por isso racismo é poder branco. Porque é um exercício de preconceito. É o poder de poder exercer e estabelecer o preconceito, manifestar o preconceito, que outras identidades não têm. E muitas outras identidades como Spivak, de artistas e intelectuais pós-coloniais que conseguiram, com grande e imenso trabalho, furar essas estruturas e ter reconhecimento social, artístico, intelectual etc., como nós que estamos na Flip, mesmo assim, somos e continuamos a ser corpos marginalizados. Porque esse poder é um poder branco. Isso não é discutível nesse sentido. Depois, temos acesso a estruturas e espaços em que podemos trazer vozes e uma narrativa que não estava lá, mas sendo excluída da maior parte desses espaços. Isso é algo que é muito importante pensar. Obama foi o primeiro presidente afro-americano, o que não significa que o racismo acabou nos Estados Unidos, nem que ele está excluído de racismo, opressão e violência na sua representação. Uma coisa não exclui a outra. É muito importante diferenciar uma coisa da outra. Há certas pessoas que conseguem entrar e interromper esses espaços e que é extremamente importante que isso aconteça. Mas isso não quer dizer que sejam pessoas que estão em poder. Poder é outra coisa.
Na sua arte você trabalha muito com a questão da espiritualidade com a política. É um trabalho decolonial, tem muitos elementos. A política é muito importante, a intelectualidade é muito importante, mas a emocionalidade é muito importante. A psicanálise é muito importante, a espiritualidade é muito importante. Um dos grandes exercícios dos estudos pós-coloniais foi localizar-se mesmo no próprio discurso: em que lugar, em que tempo, em que espaço estão. Por isso me posiciono dentro dos meus próprios trabalhos artísticos. E a partir desse momento, há toda uma série de níveis e elementos que fazem parte desse meu discurso, ao contrário da ciência e do conhecimento clássico, que era cognitivo, intelectual, de cabeça. Por isso que percorremos os corredores das universidades e vemos dezenas de esculturas de homens brancos com cabeças, pescoços, ombros, sem corpo, sem gênero, sem coração, sem mãos, sem genitais. A ideia do conhecimento é despida do corpo, é desincorporada. É uma coisa cognitiva que fica na cabeça, que não se mostra, que não se posiciona na sua história e na sua biografia. Ao me posicionar dentro do meu próprio trabalho, surge uma série de dimensões, e a dimensão espiritual é uma delas, que faz parte da prática da produção de conhecimento. Eu acho que a maior parte das coisas que aprendi foi na psicanálise e no candomblé, não foi na academia (risos). A academia foi onde fui buscar livros, onde conheci pessoas que foram importantes para mim e que também trabalham com essa emocionalidade e espiritualidade, e que escrevem livros. Quando faço trabalhos sei que há uma série de entidades que me acompanham. Eu me lembro dos meus antepassados, da minha família, eu sei do meu percurso. Para olhar para tudo isso eu preciso olhar com todas essas dimensões, as que já foram, aquelas que estão, porque que foram, como é que foram, quem é que está cá. Todas as dimensões têm que circular e se comunicar. A espiritualidade é uma forma de conhecimento importante que sempre marginalizamos, mas também faz parte do projeto do colonialismo. O colonialismo descartou todo conhecimento corporal, emocional e espiritual e só deu privilégio ao conhecimento manifesto e cognitivo. E isso que tem que ser desmantelado.
Quais são seus próximos trabalhos? Estávamos em filmagens antes de vir para cá. Estamos fazendo uma nova peça que se chama Illusions 3 dedicado a Antígona, que vai estrear no Museu de Arte Moderna na Suécia. Vai abrir em outubro, depois vai para Berlim e Joanesburgo. Espero que venha ao Brasil. Porque mostrar na Pinacoteca foi muito emocionante. As pessoas ligaram-se ao trabalho e é muito bonito de ver, fazer esse diálogo híbrido. Mas para ver que todo trabalho flua entre várias disciplinas e espaços. Penso escrever outros livros. Quero escrever de outra forma. Não quero escrever livros só com palavras. Quero explorar o lado performativo dos textos. Essa hibridade para mim é muito importante para desmantelar a língua, como falamos no início.