Uma gigante sul-coreana produtora de óleo de palma, extraído de árvores conhecidas popularmente no Brasil como dendezeiros, tem comprado trechos das maiores florestas tropicais remanescentes da Ásia. E uma investigação aponta que queimadas foram deliberadamente provocadas pela empresa nessas áreas.
Petrus Kinggo caminha pela densa floresta tropical na Boven Digoel Regency, na região de Papua, na Indonésia. “Este é o nosso minimercado”, diz ele, sorrindo. “Mas, ao contrário da cidade, aqui a comida e os medicamentos são gratuitos.”
Kinggo é um ancião da tribo Mandobo. Seus ancestrais viveram nessas florestas por séculos. Junto com a pesca e a caça, o amido do sagu extraído das palmeiras que crescem na natureza fornecia à comunidade seu alimento fundamental.
Sua casa está em um dos lugares com maior biodiversidade do planeta, e a floresta tropical é sagrada e essencial para as tribos indígenas.
Seis anos atrás, Kinggo foi abordado por uma gigante sul-coreana de óleo de palma, a Korindo, que lhe pediu ajuda para persuadir sua tribo e outros dez clãs a aceitarem apenas 100 mil rupias (cerca de R$ 40) por hectare em compensação por suas terras.
A empresa chegou com licenças do governo e queria uma “transação rápida” com os proprietários indígenas, segundo Kinggo. E a promessa de desenvolvimento foi associada a uma intimidação sutil, diz ele.
“Militares e policiais vieram à minha casa, dizendo que eu tinha que me encontrar com a empresa. Eles disseram que não sabiam o que aconteceria comigo se eu não o fizesse.”
Quando o fez, eles também lhe fizeram promessas pessoais, afirma. Como coordenador, receberia uma nova casa com água limpa e um gerador e teria as mensalidades escolares dos filhos todas pagas.
Sua decisão mudaria sua comunidade para sempre.
Dendê é o óleo vegetal mais popular do mundo
Produzido a partir da polpa de cor avermelhada encontrada no dendezeiro, o óleo de palma, conhecido no Brasil como azeite de dendê, é o óleo vegetal mais utilizado do mundo.
Acredita-se que esteja presente em cerca de 50% de todos os produtos com óleo encontrados em supermercados e lojas.
Ele é um ingrediente importante, por exemplo, na fabricação de batom, porque é capaz de reter a cor, não tem sabor e não derrete facilmente. É encontrado em xampus, cereais matinais e macarrão instantâneo, entre outros produtos.
A Indonésia é o maior exportador mundial de óleo de palma, e a Papua é sua mais nova fronteira agrícola.
O arquipélago experimentou uma das taxas de desmatamento mais rápidas do mundo, e vastas áreas de floresta foram derrubadas para abrir caminho para fileiras e mais fileiras de palmeiras.
As exportações de óleo de palma da Indonésia movimentaram cerca de US$ 19 bilhões (quase R$ 100 bilhões) no ano passado, de acordo com dados do GAPKI, a associação nacional de óleo de palma.
As ricas florestas na remota Província de Papua escapavam até pouco tempo atrás relativamente intocadas, mas o governo agora está abrindo rapidamente a área para investidores, prometendo trazer prosperidade a uma das regiões mais pobres do país.
A Korindo controla mais terras em Papua do que qualquer outro conglomerado. E desmatou quase 60 mil hectares de florestas dentro de concessões concedidas pelo governo — uma área quase do tamanho da capital baiana Salvador —, e a vasta plantação da empresa é protegida pelas forças de segurança do Estado.
Incêndios em áreas da Korindo foram deliberados, aponta investigação
Empresas como a Korindo precisam limpar as terras nessas concessões para possibilitar o plantio de novas palmeiras. Usar o fogo para fazer isso — a chamada técnica de “corte e queima” — é ilegal na Indonésia devido à poluição do ar gerada e aos incêndios com alto risco de sair do controle.
A Korindo nega ter provocado incêndios, dizendo que segue a lei. Um relatório de 2018 do principal organismo global de certificação de madeira verde — o Forest Stewardship Council (FSC), do qual a Korindo é membro — concluiu que não havia evidências de que incêndios ilegais foram causados pela empresa.
Mas de acordo com uma nova investigação do grupo Forensic Architecture da Goldsmiths University em Londres e Greenpeace International, publicada hoje em conjunto com a BBC, há evidências que indicam queimadas deliberadas durante o período de desmatamento.
A investigação encontrou evidências de incêndios provocados em uma das concessões de Korindo durante anos, em padrões consistentes com um uso deliberado das queimadas.
Foi usada uma técnica que combina análise espacial e arquitetônica com modelagem avançada e técnicas de pesquisa para investigar violações de direitos humanos e destruição ambiental.
“Esta é uma técnica robusta que, com um alto nível de certeza, pode determinar se um incêndio é intencional ou não”, disse a pesquisadora Samaneh Moafi. “Isso nos permite responsabilizar no tribunal as grandes corporações que vêm sistematicamente provocando incêndios há anos.”
O grupo analisou imagens de satélite para estudar o padrão de desmatamento dentro de uma concessão Korindo chamada PT Dongin Prabhawa.
Eles usaram as imagens para identificar a chamada “taxa normalizada de queima”, comparando-a com dados de pontos de acesso na mesma área — fontes de calor intenso captadas por satélites da Nasa, a agência especial americana — e no mesmo período, de 2011 a 2016.
“Descobrimos que o padrão, a direção e a velocidade com que os incêndios se moviam combinavam perfeitamente com o padrão, a velocidade e a direção com que o desmatamento aconteceu. Isso aponta que os incêndios foram intencionais”, disse Moafi.
“Se os incêndios tivessem sido causados fora da concessão ou devido às condições meteorológicas, eles teriam se movido com uma direção diferente. Mas, nos casos que estávamos olhando, havia uma direção muito clara.”
A Korindo recusou diversos pedidos de entrevista à BBC, mas a empresa disse em um comunicado que todo o desmatamento foi feito com maquinário pesado e não com fogo.
A empresa afirmou que há muitos incêndios naturais na região devido à extrema seca e alegou que quaisquer incêndios em suas concessões foram iniciados por “moradores que caçam ratos selvagens gigantes escondidos sob pilhas de madeira”.
Tribos acusam a empresa de devastar a floresta
Mas moradores que vivem perto da concessão de Papua disseram à BBC que a empresa havia incendiado a região por vários anos, durante períodos que coincidem com as descobertas da investigação visual feita pelos especialistas.
Sefnat Mahuze, um fazendeiro local, afirmou que viu funcionários da Korindo recolhendo sobras de madeira, “um material sem valor”. “Eles empilharam longas fileiras de talvez 100, 200 metros, jogaram gasolina sobre elas e acenderam o fogo”, relatou.
Outro aldeão, Esau Kamuyen, disse que a fumaça dos incêndios “fechou o mundo ao redor deles, desligando o céu”.
De acordo com o Greenpeace International, as empresas raramente são responsabilizadas por corte e queima, uma prática que quase todos os anos cria uma névoa de fumaça na Indonésia que pode acabar cobrindo toda a região do Sudeste Asiático, levando inclusive ao fechamento de aeroportos e escolas.
Um estudo da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, estimou que os piores incêndios em décadas em 2015 estão relacionados a mais de 90 mil mortes prematuras. Acredita-se também que os incêndios daquele ano produziram mais emissões de carbono em alguns meses do que a economia dos Estados Unidos inteira no mesmo período.
Muitas das acusações tribais contra Korindo foram investigadas por dois anos pelo FSC, o principal organismo global de certificação de madeira verde. O logotipo em formato de árvore desse regulador — encontrado em produtos de papel em todo o Reino Unido e na Europa — tem como objetivo informar aos consumidores que o produto é obtido de empresas étnicas e sustentáveis.
Relatório aponta culpa da Korindo
O relatório do FSC sobre as denúncias contra Korindo nunca foi publicado, após ameaças de processos judiciais feitas pela empresa sul-coreana, mas a BBC teve acesso a uma cópia dessa investigação.
O relatório encontrou “evidências além de qualquer dúvida razoável” de que:
– a operação de óleo de palma da Korindo destruiu 30 mil hectares de floresta de alto nível de conservação, violando os regulamentos do FSC;
– a Korindo estava “apoiando a violação dos direitos tradicionais e humanos em seu próprio benefício”;
– a empresa estava “se beneficiando diretamente da presença militar para obter uma vantagem econômica injusta” ao “fornecer taxas de compensação injustas às comunidades”.
“Não havia dúvida de que Korindo havia violado nossas regras. Isso estava muito claro”, disse Kim Carstensen, diretora-executiva do FSC, em entrevista à BBC na sede do grupo na Alemanha.
O relatório recomendava inequivocamente que a Korindo fosse expulsa do órgão. Mas a recomendação foi rejeitada pelo conselho do FSC — uma medida que grupos ambientalistas dizem ter minado a credibilidade da organização.
Uma carta enviada ao conselho do FSC em agosto, assinada por 19 grupos ambientais locais, afirma que os grupos não podiam mais contar com o organismo “para ser uma ferramenta de certificação útil para promover a conservação da floresta e o respeito pelos direitos e meios de subsistência da comunidade”.
Carstensen defende a decisão de permitir a permanência da Korindo na FSC. “Essas coisas aconteceram, certo? A melhor coisa a fazer é dizer que eles violaram nossos valores e não ter mais nada a ver com eles?”, pergunta. “A lógica do conselho é: ‘Queremos que melhorias aconteçam’.”
A Korindo negou veementemente que a empresa esteja envolvida em qualquer violação de direitos humanos, mas reconheceu que há espaço para melhorias e disse estar implementando novos procedimentos para analisar denúncias e reclamações.
A empresa afirmou ter pago uma compensação justa às tribos e que pagou um adicional de quase R$ 40 por hectare pela perda de árvores, uma quantia definida pelo governo indonésio, que lhes concedeu a concessão.
A BBC tentou confirmar a cifra com o governo indonésio, mas as autoridades se recusaram a fazer qualquer comentário sobre a Korindo.
Região é um ponto de tensão na Indonésia
De modo geral, o governo indonésio afirma que Papua é uma parte integrante da nação, reconhecida pela comunidade internacional.
A Província, que é metade da ilha da Nova Guiné, tornou-se parte da Indonésia após um polêmico referendo conduzido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1969, no qual apenas 1.063 anciãos tribais foram selecionados para votar.
Desde então, o controle sobre os ricos recursos naturais de Papua se tornou um ponto problemático em um conflito separatista de longa duração na região. Ativistas chamam o referendo de 1969 de “ato sem escolha”.
Militares indonésios foram acusados por ativistas de violações graves dos direitos humanos em suas tentativas de reprimir a dissidência em Papua e de proteger interesses comerciais.
Observadores internacionais raramente têm acesso à região, “porque há algo que o Estado quer esconder”, segundo Andreas Harsono, pesquisador indonésio da organização americana Human Rights Watch.
“Eles estão escondendo abusos de direitos humanos, degradação ambiental, desmatamento”, disse ele. “E a marginalização dos povos indígenas. Econômica, social e política.”
Em uma tentativa de reduzir a tensão na região, a Papua recebeu maior autonomia em 2001, e houve um aumento significativo de verbas do governo, com Jacarta prometendo levar prosperidade ao povo local e dizendo estar comprometida em resolver abusos de direitos prévios
‘A floresta acabou, e estamos vivendo na pobreza’
Derek Ndiwaen era um dos membros da tribo Mandobo que, como Petrus Kinggo, recebia dinheiro da Korindo por suas terras. A irmã dele, Elisabeth, estava ausente na época, trabalhando na cidade, e não soube da negociação até voltar para casa.
Segundo ela, Derek se envolveu em um conflito com outras tribos sobre a negociação das terras. E ela acredita que tensão teve um papel importante na morte dele.
“Meu irmão nunca tinha vendido seu orgulho ou a floresta”, diz ela, em meio às lágrimas. “A empresa não trouxe prosperidade. O que eles fizeram foi conflito, e meu irmão foi uma vítima.”
Elisabeth afirma que seu irmão também recebeu promessas de educação gratuita para os filhos e de cuidados de saúde para a família. Ambas nunca foram sido cumpridas.
“A floresta acabou, e estamos vivendo na pobreza”, diz. “Depois que nossa floresta foi vendida, você poderia pensar que teríamos uma vida boa. Mas não estamos.”
Segundo Elisabeth, a Korindo disse à comunidade que construiria boas estradas e forneceria água potável.
Mas os residentes de seu vilarejo de Nakias, no distrito de Ngguti, dizem que a vida não mudou do jeito que esperavam. Não há água potável nem eletricidade na aldeia. Aqueles que podem pagar usam geradores, mas o combustível custa quatro vezes a mais do que na capital Jacarta.
A Korindo afirmou que a empresa emprega diretamente mais de 10 mil pessoas e investiu US$ 14 milhões (quase R$ 75 milhões) em programas sociais em Papua, incluindo programas de alimentação para crianças desnutridas e programas de bolsa de estudos. Disse ainda estar desenvolvendo programas econômicos para os moradores locais.
A empresa interrompeu todo o desmatamento até que seja realizada uma avaliação das florestas e do estoque de carbono dentro de suas concessões.
“Ainda vai demorar um pouco para sabermos o que fazer com os pecados do passado”, disse Kim Carstensen, do FSC. “Se são dois, três anos… Isso eu não sei.”
Elisabeth teme que nada possa compensar a destruição. “Quando vejo nossa floresta ancestral totalmente limpa, cortada, é de partir o coração”, disse ela. “Deveria ter sido transmitida para a próxima geração.”
“Ando chorando pela plantação e me pergunto: onde estão os espíritos de nossos ancestrais agora que nossa floresta foi completamente destruída. E aconteceu sob meus cuidados.”
Petrus Kinggo recebeu dinheiro de Korindo: cerca de US$ 42 mil (ou R$ 230 mil), o equivalente a 17 anos de pagamento sobre o salário mínimo mensal na Província. E a empresa pagou a mensalidade escolar de um de seus oito filhos até 2017. Ele disse que não recebeu casa nem gerador e que o dinheiro acabou.
“Não tenho mais nada”, afirmou ele. “Tios, sobrinhos, sogros, netos, irmãos, irmãs, todos pegaram uma parte. E então gastei o que sobrou na educação dos meus próprios filhos.”
Milhares de hectares da outrora vasta floresta tropical da tribo Mandobo foram derrubados e substituídos por fileiras organizadas de palmeiras. Outros 19 mil hectares agora dentro de uma concessão de Korindo estão reservados para limpeza.
Kinggo luta para salvar um pouco do que resta. Ele teme que as gerações futuras tenham que “viver de dinheiro” em vez da floresta.
Ele culpa o governo por não consultar os aldeões antes de dar a concessão a Korindo e “mandá-los aqui para nos pressionar”.
E quando anda pela floresta agora, ele olha para dentro de si, e o dinheiro que obteve pesa sobre ele. “Perante Deus, pequei, enganei dez tribos”, disse ele.
“A empresa falou: ‘Obrigado, Petrus, por cuidar tão bem de todos’. Mas, no fundo, eu sabia que havia errado.”