Baila Vini Júnior, baila…

FONTEPor Christian Ribeiro, enviado ao Portal Geledés
Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil. (Foto: Arquivo Pessoal)

A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!

(“Zumbi – A felicidade guerreira”, 1984, Gilberto Gil)

Vinicius José Paixão de Oliveira Júnior, nome completo de Vini Júnior, o Vini Malvadeza, é um artista da bola, um jogador de futebol de técnica e habilidade invejáveis, que muito jovem foi vendido pelo Flamengo, já como uma estrela em ascensão do futebol, para ano a ano, estar se desenvolvendo mais e mais enquanto profissional do esporte mais popular do mundo, no Real Madri, a marca – para o bem ou para o mal – mais famosa do futebol mundial. Em um time acostumado a trucidar reputações e trocar de jogadores sem a menor formalidade ou constrangimento, Vini Júnior tem construído uma trajetória das mais instigantes e bem-sucedidas, de um começo cintilante enquanto promessa, a um desapontamento generalizado de jogador show, mas “improdutivo” e não apto a jogar no time madrilenho, para se tornar um dos principais personagens na reconstrução de time vencedor, de uma franquia que se propõe situar-se enquanto senhora da Europa. Tendo como um de seus rostos-símbolos, a jovem imagem deste profissional que galga caminhos cada vez maiores em sua carreira.

Uma recuperação e mudança de valor, de significado da sua imagem, que passa concomitantemente por seu desenvolvimento técnico, por encontrar o seu jeito de jogar futebol, num esporte cada vez mais padronizado e nivelado pela força física. Sendo hoje o jogador que representa o jogar bonito, o estilo de jogo brasileiro que sempre tornava o impossível em realidade, a poética em cotidiano, a beleza enquanto sublime experiência humana. Até mesmo o seu jeito aparentemente relaxado, como que despreocupado das tensões do mundo, engendra um olhar, uma visão de mundo que não o coloca enquanto refém ou determinado pelas expectativas ou limites que os outros tenham sobre ele. 

É um jovem que possuí total segurança e certeza de seus atos e potencialidades. O que aparentava desleixo ou alienação, era o seu jeito e maneira de lidar com o mundo, sem nunca desconfiar ou desacreditar de seu próprio talento ou potencial. Que sabe já estar presente ao panteão dos grandes astros contemporâneos do esporte, mas que se caracteriza por portar-se sem atropelos ou estrelismos no trato com as pessoas. O que é algo bem raro entre figuras joviais lançadas ao estrelato, e principalmente em um esporte que gera tantas centenas de bilhões de euros… É um jovem que se diverte e vive a vida como todo jovem, potencializado por uma conta bancária respeitosa e fama tão grande quanto, num mundo esportivo em que várias mídias classificaram o padrão Neymar de comportamento enquanto a referência dos jovens futebolistas brasileiros, surge ele que rompe esse padrão de “fútil deslumbramento”, apenas sendo simplesmente quem ele é. Tranquilo, sem stress, sem querer briga com ninguém, apenas querendo viver a vida do jeito que acredita que deva ser vivida. 

Além disso, Vinicius Júnior nos remonta a uma tradição quase esquecida – ou seria renegada? – do jogo brasileiro. A dos jogadores que sorriam durante a partida, não em sentido de escárnio ou de humilhação ao adversário, mas de jubilo e honra ao esporte, de felicidade por poder se divertir em seu trabalho. Quantas pessoas podem fazer isso, em especial nesses dias de desemprego ou de alienação do trabalho? Ele pode e faz isso. Aliás, ele sabe e aproveita, por isso, o máximo possível desses momentos que no futebol são tão fugazes em sua eternidade.

Não à toa, sendo um dos esportistas mais queridos e seguidos pelas crianças hoje em dia, o colocando enquanto um dos sucessores, em conjunto com o francês Kylian Mbappé como possíveis sucessores dos astros Leonel Messi e Cristiano Ronaldo. Em outras palavras, que seja dito de forma nítida e sem dúvidas, Vinícius Júnior já é um jogador de primeira linha do cenário mundial do futebol e os limites que ele pode vir a alcançar ainda estão para ser traçados, literalmente, o céu é o seu limite.

E tal situação incomoda, em especial por aqueles acostumados a padronização da mediocridade da vida, daquela rotina ordinária que só satisfazem aos de alma pequena, aos de espírito já derrotados e de luz apagada. Soma-se isso ao racismo cada vez mais frequente e manifestado nas mais variadas esferas da vida humana, enquanto fenômeno global. Em que o futebol é uma de suas áreas de maior ocorrência sistêmica, em vista da falta de combate efetivo contra as ocorrências de racismo, e outros preconceitos, que tanto as entidades responsáveis pelo esporte (federações nacionais e internacionais, torcedores, imprensa e, até mesmo jogadores) preferem se fazer cegos, surdos e mudos ante a sua existência, ou por conivência, e até concordância, ou para não ferir interesses políticos e econômicos. 

Por mais que a FIFA desenvolva campanhas institucionais contra o racismo, de prático nada é feito de maneira organizada para se enfrentar esse mal. Sendo comum os jogadores negros acabar sendo expostos a situações vexatórias, sem o mínimo suporte. Literalmente jogados a própria sorte… E Vinicius Junior sabe dessa realidade, não se faz alienado ou isolado dela. Pois tem ciência de que muitas das críticas que sofre, são na verdade manifestações disfarçadas de puro ódio e preconceito, em especial de raça e xenofobismo. O que nos remete ao caso da última semana, em que após a criação de uma polêmica alimentada pela imprensa esportiva espanhola se as danças celebratórias de Vini Júnior a cada gol, representa um ato de desrespeito ou não, ao esporte e aos adversários. E quais as consequências que tal atitude “desrespeitosa” poderia gerar no clássico local contra o Atlético de Madri. Uma falsa celeuma, que tomou proporções outras quando Pedro Bravo, presidente da Associação de Empresário de Jogadores da Espanha, disse textualmente:

“Deve-se respeitar o adversário. Quando você faz um gol, se quiser sambar, que vá a um sambódromo no Brasil. Aqui (na Espanha) o que se tem de fazer é respeitar seus companheiros de profissão e deixar de fazer papel de macaco.”

Uma pessoa inserida ao mundo profissional do futebol, que não se pode dizer alienada da realidade que ocorre em meio ao esporte do qual ganha o seu sustento, em vista dos constantes casos de racismo, repudiados pelo sindicato dos jogadores profissionais da Espanha. E mesmo assim, se sentiu autorizado a manifestar o seu xenofobismo e racismo, sem medo ou pudor, como algo inconteste e indiscutível. Mas, tal situação, ao ganhar destaque pelas mídias sociais, nos revelou uma faceta até então desconhecida de grande parte do público, de um atleta social e racialmente consciente, que reagiu de maneira concisa e assertiva. 

“Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho nos olhos, haverá guerra. Tenho essa frase tatuada no corpo e tenho atitude na minha vida que transforma essa filosofia em prática. Dizem que felicidade incomoda. A felicidade de um preto brasileiro, vitorioso na Europa, incomoda muito mais. Mas a minha vontade de vencer, meu sorriso, meu brilho nos olhos são muito maiores do que isso. Fui vítima de xenofobia e racismo numa só declaração. Mas nada disso começou ontem” 

Contextualizou o racismo ao qual foi vítima, numa perspectiva política dos fatos que nos insere em uma constante e sistemática criminalização a qual os jogadores negros (afro diaspóricos ou africanos) e latino-americanos têm sofrido ao realizarem suas comemorações, remetendo a existência de uma tradição de celebração a diversidade cultural do mundo que ele pontua desde Ronaldinho Gaúcho, mas que na verdade está nas origens do próprio futebol brasileiro. Fora que Roger Milla, na Copa do Mundo de 1990 na Itália, celebrava os gols de Camarões dançando, numa das imagens mais icônicas do futebol das últimas décadas. Mas, para além dessas lembranças diretas ou indiretas que acabou por suscitar com sua fala, o grande acerto de sua análise, foi o apontamento de que jogadores como João Félix (português) e Griezmann (francês) também dançam ao comemorarem os seus gols. Destacando de maneira sutil, tal qual seus dribles em campo, que a estes não é feita nenhuma objeção ou restrição, por serem atletas brancos e europeus. Sendo a execução da dança “Take the L“, inspirada no jogo virtual Fortnite, por parte de Griezmann, uma de suas marcas registradas. Revelando assim a insistência de um padrão de exclusão e discriminação voltados aos considerados de “fora”, os “outros” que abusam do privilégio que possuem de ali – “Primeiro Mundo” – habitar e trabalhar. Como se fosse um lembrete para que aos indesejáveis não se deixa-se esquecer “qual é o seu lugar no mundo”, uma situação que se faz atrelar ao, tão asqueroso quanto, “quem você pensa que é?” ou “sabe com quem está falando?” quando as pessoas discriminadas manifestam repúdio, denunciam e cobram providências ante as situações discriminatórias as quais são submetidas.

E Vinícius Júnior, acabou por deflagar uma onda de enfrentamento a tal situação, que para além de ações marketing oportunistas, e de muito mal gosto, como a “somos todos macacos”, reafirmou sua posição orgulhosa enquanto homem negro, brasileiro, em diáspora, ciente de sua importância e significado como estrela mundial do esporte que ultrapassa todas as fronteiras. E mandou em alto e bom som, que continuaria a bailar, a sorrir, não se curvando aos preconceitos e racismos de seres desprezíveis, desprovidos de qualquer noção ou sentido de humanidade. Revertendo a situação e situando que animais, que inferiores, são aqueles que cometem tais atos. Que ele, e nem ninguém, não devem, se deixar pautar ou inibir por ações desse tipo. Não devem se envergonhar por ser quem são e por buscar trazer alegria, quando só querem sisudez e a mesmice de sempre.

E, em meio a esse furacão de informações e tensões, chegou o dia do aguardado jogo, e circulavam as mais dispares teorias de como ele iria se aportar. Se Vini Malvadez, iria se abalar emocionalmente ante tal pressão (sempre reaparecendo o senso comum de que pessoas negras não suportam extremos emocionais), com Koke, capitão do Atlético de Madri, dizendo que haveria confusão caso Vini Júnior baila-se… Todo um clima hostil montado, com a torcida adversária o esperando com manifestações e cânticos racistas. Tensão que se fez desmanchar a cada toque e jogada que ele realizava, com as vaias diminuindo a cada toque, a cada arrancada. Até o momento do passe em excelência que destinou a Rodrygo, dando a chamada assistência para o belíssimo gol que inaugurou o placar da peleja. E os dois, jovens, negros, brasileiros, maravilhosamente insolentes, comemoraram sorrindo e bailando, dançando provocativamente, como que sambando em cima do ódio e desprezo dos racistas.

Uma vitória do Real Madri, pelo placar de 2×1, com a excelência dos excluídos e marginalizados que formam e constroem as potências transformadoras e embelezadoras do mundo. Mesmo que por vezes invisibilizadas nesse processo. E Vini Júnior lançou ao mundo, fazendo de uma partida de futebol o seu palco-manifesto de que nunca se deixará calar ou intimidar por aqueles que se acham senhores do mundo. Nem por um momento, se furtando ao combate e ao debate, sempre procurando por não contemporizar ou querer as mesmas soluções conciliadoras, inócuas, de sempre. Pois com racismo, com racistas não há diálogo possível ou imaginado. “Vou passar com minha arte por cima de vocês”, esse foi a atitude que sua postura em todo o episódio nos demonstrou. E, sejamos sinceros, existe drible mais lindo do que esse? Existe golaço mais belo e importante do que este?

Numa época de ufanismo desmedido – principalmente em período de Copa do Mundo, num país como o Brasil – em que heróis são construídos e içados a condições de divindades tão rápidos, e mais rápidos ainda acabam sendo lançados ao poço do esquecimento. Em tempos de ídolos tão frágeis, de isenção e silêncio até ante situações das mais prosaicas, ter uma figura midiática como ele, construindo a seu jeito e ao seu ritmo, uma jornada pública desta magnitude, não deixa de ser alentador!  O bailão do Vini é arrasta-pé dos bons e para os bons! Canalhas não passam nem pela porta… E que a dança nunca acabe! A gente agradece! 


¹ https://www.terra.com.br/esportes/futebol/internacional/equipes/atletico-de-madri/vinicius-junior-e-alvo-de-racismo-em-programa-na-espanha-tem-de-deixar-de-se-fazer-de-macaco,c19e165de88481e3ee8ccf074c0e979exahg2p2d.html, acessado em 18/09/2022. 

²  https://jovempan.com.br/esportes/futebol/vinicius-junior-se-pronuncia-apos-ser-alvo-de-racismo-aceitem-respeitem-ou-surtem-assista.html, acessado em 18/09/2022.


Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

-+=
Sair da versão mobile