Banco do Brasil é alvo de inquérito inédito sobre papel na escravidão e MPF pede reparação

FONTEPor Leandro Machado, da BBC
A instituição foi fundada em 1808 no Rio de Janeiro (Foto: GETTY IMAGES)

O Ministério Público Federal (MPF) notificou o Banco do Brasil (BB) na tarde desta quarta-feira (27/09) sobre a abertura de um inquérito civil público que pretende investigar o envolvimento da instituição na escravidão e no tráfico de cativos africanos durante o século 19.

A ação, inédita no país e obtida com exclusividade pela BBC News Brasil, visa iniciar um movimento de cobrança por reparação histórica de grandes e centenárias instituições brasileiras – estatais e privadas – que de alguma forma tenham participado ou fomentado a escravidão no país.

O inquérito foi proposto por um grupo de 14 historiadores de 11 universidades, que pesquisaram e escreveram um texto sobre o que se sabe da relação do Banco do Brasil com a economia escravista e seus negociantes.

Eles descobriram, por exemplo, que entre os fundadores e acionistas do BB estavam alguns dos mais notórios traficantes de escravizados da época – entre eles José Bernardino de Sá, tido como o maior contrabandista de africanos do período (leia mais abaixo).

Três procuradores aceitaram a sugestão e elaboraram uma ação com o objetivo de fazer com que o banco estatal reconheça e tome medidas para investigar e tornar públicas suas ações durante a escravidão.

Entre essas ações, está o financiamento, em um primeiro momento, de pesquisas acadêmicas sobre o assunto para que, no futuro, possa bancar projetos de reparação e políticas públicas voltadas à comunidade negra.

“O debate sobre reparação está acontecendo no mundo inteiro. Da nossa parte, queremos aprofundar a discussão com o Banco do Brasil e com a sociedade para que essa história não seja mais silenciada”, diz Julio Araujo, procurador regional dos direitos do cidadão do MPF, que assina o despacho com outros dois colegas, Jaime Mitropoulos e Aline Caixeta.

“O que existe hoje é uma naturalização do papel de várias instituições brasileiras nesse período. Essa é uma discussão importantíssima a ser encarada: até que ponto cabe a reparação histórica e qual é a melhor maneira de fazê-la?”, questiona o procurador.

A escravidão é considerada um crime contra a humanidade. Por isso, não prescreve e permite que ações relacionadas ao período ainda possam correr na Justiça.

Instituições de alguns países, como universidades e bancos nos Estados Unidos e Inglaterra, têm reconhecido seu papel na escravidão e criado medidas de reparação, que vão de fomento a pesquisas acadêmicas e indenizações.

No documento enviado ao Banco do Brasil, o MPF estipulou um prazo de 20 dias para a presidência da instituição responder a uma série de questões:

“A posição do banco sobre sua relação com o tráfico de pessoas negras escravizadas”, “informações sobre financiamentos realizados pelo banco e relação com a escravidão”, “informações sobre traficantes de pessoas escravizadas e sua relação com o banco” e “iniciativas do banco com finalidades específicas de reparação em relação a esse período.”

Os procuradores também solicitaram uma reunião com a direção do BB para discutir medidas de reparação histórica no dia 27 de outubro, no Rio de Janeiro. Também convidaram para o encontro o grupo de historiadores que propôs a ação e membros dos ministérios de Direitos Humanos e Igualdade Racial.

Segundo Julio Araujo, o inquérito civil “é diferente de uma investigação tradicional”, e pode terminar em um acordo, Termo de Ajuste de Conduta (TAC) ou mesmo uma ação judicial contra o banco caso a instituição se recuse a discutir o tema. “É imprevisível, não sabemos qual o rumo ele pode tomar, mas queremos uma resposta do banco”, afirma o procurador.

Após a publicação da reportagem, o BB enviou uma nota afirmando que pretente colaborar com o MPF. “O Banco do Brasil está à disposição do Ministério Público Federal para continuar protagonizando e envolver toda a sociedade na busca pela aceleração do processo de reparação” (leia a nota completa abaixo).

Mas, afinal, como o Banco do Brasil participou da escravidão?

Pintura de Rugendas mostra Cais de Valongo no Rio de Janeiro (Foto: IPHAN)

História do BB

Nos últimos cinco meses, os historiadores pesquisaram em arquivos públicos a participação de escravocratas e traficantes na fundação e estabelecimento do Banco do Brasil como a maior instituição financeira do Império.

No início da pesquisa, havia uma questão fundamental: o Banco do Brasil de hoje é o mesmo do século 19?

“Inicialmente, na minha cabeça, a resposta era negativa, porque ele havia sido fundado, liquidado e refundado outras vezes”, explica o historiador Thiago Campos Pessoa, pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), um dos acadêmicos que assinaram o documento enviado ao MPF.

A resposta para o dilema, conta Pessoa, veio do próprio banco. “Oficialmente, o BB conta que sua história começa em 1808, com a vinda do rei D. João 6º ao Brasil. Ou seja, mesmo com as refundações, ele considera que é sempre a mesma instituição. Então, partimos dessa premissa: é o mesmo banco”, afirma Pessoa.

De fato, em seu site, o Banco do Brasil afirma ter mais de 200 anos de história, embora não cite a escravidão nem suas três refundações. “Estamos cuidando do futuro com responsabilidade, e cultivando, há mais de 200 anos, o valor dessa relação que temos com os brasileiros”, diz o texto da empresa na seção “Quem somos”.

Em sites de órgãos do governo federal, como do Banco Central e do Arquivo Nacional, a história do BB sempre começa em 12 de outubro de 1808, meses depois da chegada da corte portuguesa ao Brasil.

Quando foi criado, o objetivo da instituição era enfrentar a escassez de crédito e de moeda do Império português, mas sua atuação se reduziria ao financiamento público. Segundo os historiadores, porém, parte do dinheiro do banco vinha de taxas cobradas de embarcações dedicadas ao tráfico de africanos.

“A escravidão e o comércio negreiro financiavam a constituição do banco também de maneira indireta por meio de subscrições”, escrevem os pesquisadores.

Ou seja, o governo imperial concedia títulos de nobreza a escravocratas e comerciantes ilegais que colocavam dinheiro no banco.

Com dificuldades financeiras, esse primeiro BB foi dissolvido em 1829 e depois foi refundado em 1833, mas essa fase durou apenas um curto período.

É na refundação de 1853 que a ligação do Banco do Brasil com a escravidão fica mais estreita, segundo os pesquisadores que procuraram o MPF.

Eles descobriram, por exemplo, que grandes traficantes de escravizados fizeram parte do grupo de empresários que assinaram o termo de refundação da instituição.

Embora tenha renascido como um banco privado, o BB tinha finalidades públicas, como o controle do mercado de crédito e o monopólio da emissão da moeda.

Um desses empresários que fundaram o BB era José Bernardino de Sá, que se tornou seu maior acionista em 1853. Um dos homens mais ricos do Império, o magnata tinha fazendas, inúmeros imóveis e até um teatro no Centro do Rio de Janeiro.

Mas sua principal atuação era o tráfico de africanos, diz o historiador Thiago Campos Pessoa, da UFF, que há anos estuda a vida do contrabandista e há poucos meses se deparou com o nome dele entre os fundadores do Banco do Brasil.

“Esse era um mercado muito complexo e envolvia muitas pessoas dos dois lados do Atlântico. Mas também era extremamente lucrativo, porque, na época, um escravizado valia muito dinheiro. Uma única viagem de um navio negreiro podia enriquecer um traficante”, afirma.

Segundo Pessoa, Bernardino de Sá tinha um barracão ao norte de Luanda, capital de Angola, onde deixava os africanos sequestrados até o embarque. Eles chegavam ao litoral de São Paulo e Rio de Janeiro e, depois, eram deixados em fazendas do empresário até serem negociados. Estima-se que o traficante tenha contrabandeado 20 mil africanos entre 1825 e 1851.

Essa operação, porém, era considerada ilegal desde 1830, quando o comércio transatlântico de pessoas foi proibido por lei sob pressão da Inglaterra. A questão é que a proibição “não pegou” no Brasil e ficou conhecida como “lei para inglês ver”.

Quadro de Debret mostra homens escravizados em comércio de rapé no centro do Rio de Janeiro em 1823 (Foto: MUSEU IMPERIAL/IBRAM/MINISTÉRIO DA CULTURA)

Nos anos seguintes, o tráfico se intensificou com anuência e participação do Império. Calcula-se que cerca de 753 mil africanos foram trazidos ilegalmente ao Brasil em apenas duas décadas, entre 1830 e 1850.

Como comparação, em todo o período da escravidão no Brasil, que durou cerca de 300 anos, 5 milhões de pessoas foram trazidas ao Brasil.

“Nessas duas décadas, o Brasil foi responsável pelo maior crime contra a humanidade do século 19”, diz Bruno Rodrigues de Lima, doutor em História e o Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha, e especialista na história da escravidão desse período.

“A lei assinada pelo imperador D. Pedro 2º tem efeito contrário. O tráfico se torna massivo, em escala industrial. O Rio de Janeiro se tornou na época a capital mundial da escravidão. E, para esse mercado dar certo, era preciso muito dinheiro, crédito, operações bancárias e documentos oficiais”, explica Lima, organizador das Obras Completas de Luiz Gama.

Era nesse contexto que atuava José Bernardino de Sá.

“Não era segredo o que ele fazia, ele era uma pessoa rica e conhecida, com muitos investimentos. Mas foi o tráfico que o enriqueceu. Esse ‘comércio ilegal’ era naturalizado, era conduzido pelo Estado e tinha o Estado como parceiro”, diz.

Segundo os historiadores, em 1855, José Bernardino de Sá possuía 5.216 ações do Banco do Brasil, o que representava um montante de cerca de mil contos de réis, fortuna maior do que a de muitos fazendeiros do Vale do Paraíba, região cafeeira entre o Rio e São Paulo e morada dos homens mais ricos do Brasil na época.

Mas havia outros nomes conhecidos da escravidão entre os fundadores do Banco do Brasil, inclusive em sua diretoria.

Um deles era João Pereira Darigue Faro, vice-presidente do banco em 1855. Visconde do Rio Bonito, Darigue Faro era membro de uma das famílias mais ricas do Vale do Paraíba fluminense. Segundo o documento do MPF, sua família possuía 540 escravizados, “certamente dos maiores proprietários de escravos no Império”, diz o texto.

Outro nome era João Henrique Ulrich, diretor do BB por uma década a partir de 1854. Sua história com a escravidão também é conhecida. Em 1842, ele foi flagrado pelo governo de Angola comandando um barracão de escravizados em Luanda. Segundo jornais da época, Ulrich fez fortuna com o tráfico e intermediando negócios do café.

Sede do Banco do Brasil entre 1815 e 1829, a Casa Leuzinger, no Rio de Janeiro, foi fografada em 1860 (Foto: ARQUIVO HISTÓRICO DO CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL)

Ligações do BB com a escravidão

Embora entre os fundadores do BB estejam traficantes de escravizados, até que ponto o banco estava ligado à escravidão e quanto de seu dinheiro vinha desse sistema?

Para Clemente Penna, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que também assina o documento, o sistema financeiro da época “dependia da escravidão”, mas ainda faltam mais pesquisas acadêmicas para determinar o papel de cada instituição.

“Era uma economia que tinha pouca moeda oficial circulando. O que havia era um sistema baseado em títulos de créditos, hipotecas, letras de câmbio… Quem tinha muito dinheiro em caixa eram os traficantes. Então, foram eles que financiaram o Estado, os títulos da dívida e o capital societário dos bancos”, explica.

A pesquisa do historiador, que analisou 3 mil execuções de dívidas no Rio de Janeiro entre 1830 e 1860, aponta que escravizados eram utilizados inclusive como garantia do pagamento de empréstimos.

Quando havia uma débito não pago, a Justiça determinava que escravizados pertencentes ao devedor fossem enviados a um depósito no antigo Cais do Valongo, na Zona Portuária do Rio, onde eram “armazenados” até que o dinheiro fosse devolvido. Se isso não acontecesse, o cativo era leiloado e o valor era usado para saldar a dívida.

Segundo Penna, 65% das execuções de dívidas no período tiveram ao menos um escravizado levado a esse depósito – algumas dessas negociatas tiveram participação dos bancos.

Para o historiador, todas as operações financeiras da época tinham ligação com a escravidão. “Quem fazia dinheiro no século 19 estava ligado com a escravidão, porque ela estava em toda a sociedade, em toda esquina. Todo o sistema financeiro dependia dela”, explica.

O Banco do Brasil também concedeu empréstimos a fazendeiros proprietários de escravizados.

Segundo a tese de doutorado de Thiago Campos Pessoa, da UFF, o banco emprestou 800 contos de réis para José e Joaquim de Souza Breves, conhecidos como Irmãos Breves, em 1871.

A pesquisa aponta que, além de acionista e com membros na diretoria do BB, a família Breves era conhecida como uma das maiores proprietárias de escravizados do país, com cerca de 5 mil pessoas espalhadas em suas fazendas no Rio e em São Paulo.

“O que acontecia era que o banco financiava a escravidão e a escravidão financiava o banco. O dinheiro que entrava e o que saía faziam parte desse sistema”, explica Pessoa.

Precursores das cédulas, os bilhetes do BB começaram a circular em 1810 (Foto: ARQUIVO HISTÓRICO DO CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL)

Movimento internacional

O inquérito do MPF segue um movimento global por reparação histórica de grandes instituições que participaram da escravidão.

Na Inglaterra, por exemplo, o caso mais emblemático é do Bank of England, fundado em 1694, que foi proprietário de centenas de escravizados no século 18. Recentemente, o banco reconheceu seu papel na escravidão e, por meio de pesquisas históricas, encontrou descendentes de escravizados, iniciando um processo de reparação financeira às famílias.

Já nos Estados Unidos, universidades como Harvard e Brown University também reconheceram o papel que proprietários de escravos tiveram em sua fundação e crescimento. A partir daí, as entidades financiaram pesquisas acadêmicas de longo prazo e em projetos voltados à comunidade negra afetada.

Para o procurador Julio Araujo, o inquérito contra o Banco do Brasil pode ser o pontapé inicial das discussões sobre reparação histórica no país.

“É preciso encarar essa discussão, porque esse passado e essa memória fazem parte e ainda afetam nosso presente, por meio das desigualdades sociais e do racismo estrutural. A sociedade e as grandes instituições brasileiras precisam se olhar no espelho e enfrentar esse assunto”, diz.

Já o historiador Bruno Lima afirma que “todas as instituições brasileiras com mais de 150 anos, sejam elas bancos, universidades e até tribunais de Justiça, têm em suas mãos o sangue e as digitais da escravidão.”

“Elas enriqueceram com a escravidão, compraram e venderam pessoas. É preciso um esforço institucional e uma pressão da sociedade para que essa história seja escavada, seja reconhecida, e que a gente consiga finalmente compreender como foi formado o Brasil”, afirma.

Homens e mulheres escravizados trabalhando em fazenda de café no Brasil (Foto: NY PUBLIC LIBRARY)

Nota do Banco do Brasil

Após a publicação da reportagem, o Banco do Brasil enviou uma nota sobre a ação do MPF. Leia abaixo, na íntegra:

“O Banco do Brasil considera que a história do país e suas relações com a escravidão das comunidades negras precisam ser um processo de reflexão permanente. Em relação à reparação histórica, o BB entende que essa é uma responsabilidade de toda a sociedade.

É essa necessidade de amplo envolvimento do país com o tema que norteou a criação dos ministérios dos Direitos Humanos, Dos Povos Indígenas, da Igualdade Racial e Da Mulher. Também foi recriado o Ministério da Cultura. Tudo isso para acelerar a tomada de consciência e a criação de medidas efetivas de reparação.

O Banco do Brasil tem sido uma das empresas brasileiras que mais tem contribuído nesse sentido. Em julho deste ano, o BB assinou Protocolo de Intenções com o Ministério da Igualdade Racial, a fim de unir esforços em ações direcionadas à superação da discriminação racial, à inclusão e à valorização das mulheres negras, com o objetivo de fixar e promover:

– o ingresso de jovens negras no mercado de trabalho;

– a valorização de iniciativas e produções de mulheres negras, sobretudo aquelas que se referirem a projetos culturais;

– ações de fomento ao empreendedorismo e fortalecimento de micro e pequenos negócios de mulheres negras;

– o estímulo à ocupação equilibrada de espaços de lideranças no BB, considerando o respeito à diversidade étnica e de gênero; e

– apoio mútuo e intercâmbio de experiências no sentido de ampliar as políticas afirmativas internas de raça e gênero, trazendo uma perspectiva interseccional às iniciativas em curso ou a serem realizadas no BB.

Em agosto deste ano, o Banco do Brasil tornou-se embaixador de três importantes movimentos de Direitos Humanos da Rede Brasil do Pacto Global da ONU: “Elas lideras 2030”, “Raça é Prioridade” e “Salário Digno”, que buscam mobilizar empresas e organizar empresas para o alcance do ODS.

No mesmo mês, o BB foi selecionado para compor a carteira do índice de diversidade da B3 (iDiversa B3), que inclui 79 ativos de 75 empresas, abrangendo dez setores econômicos. O BB ocupa lugar de destaque, com maior peso na composição do índice, pois possui um dos conselhos de administração mais diversos do mercado, composto por 50% de mulheres e 25% de pessoas autodeclaradas negras.

Também em agosto, em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares, o Banco do Brasil, renovando a parceria assinada em 2018, assinou a carta de adesão à Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, que é um movimento formado por empresas e instituições comprometidas com a promoção da inclusão racial e a superação do racismo no ambiente corporativo e em toda a sua cadeia de valor.

Como empresa que busca promover a igualdade racial, o Banco do Brasil está à disposição do Ministério Público Federal para continuar protagonizando e envolver toda a sociedade na busca pela aceleração do processo de reparação.”

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