Baseado em fatos reais

Nós, mulheres da periferia nasceu da união de nove mulheres que queriam conversar e escrever sobre as questões do território em que vivem.

por ANA PAULA LISBOA no O Globo

Dia desses encontrei Julio Ludemir, e o que era pra ser a entrega rápida de uma encomenda virou aula de curso de extensão na Cinelândia. Julio tem esse costume de me dar “aula” quando a gente se encontra, quase sempre na rua ou em algum evento.

Ele é um dos meus autores preferidos, e eu tenho muita alegria de conversar com autores vivos, mesmo que o Julio sempre fale mais das minhas obras do que das dele nas suas “aulas”.

Julio é autor de livros importantíssimos da literatura brasileira e, diferentemente de outros autores homens brancos e de classe média, escolheu contar a história de personagens diferentes dele. Como todo bom escritor, ele tem gosto por misturar a ficção e a realidade. Mais ainda, como bom jornalista, vê pautas onde os outros só veem histórias. Julio, assim como outros da geração dele, fica preocupado com o excesso de realidade da minha geração, com a quantidade de “post lacração” e a falta de obras de ficção que contem nosso momento.

Eu pensei isso também quando enfim assisti — eu já tinha começado três vezes e não passava dos primeiros dez minutos — ao filme “Faça a coisa certa”, do Spike Lee. Sim, eu sou essa preta atrasada em várias obras pretas.

O filme, que tem só um ano a menos de idade do que eu, conta a história do Mookie, um jovem negro que é entregador na pizzaria do Sal, um cara branco ítalo-americano que entende os negros do Brooklyn apenas como “comedores” de sua pizza. Um dia, na verdade o dia mais quente do ano, Buggin’ Out, um outro cara negro, resolve criar uma treta com Sal, porque quer se sentir representado nas imagens que o mesmo pendura em seu comércio, já que ele gasta o seu dinheiro ali. Sal responde que não vai pendurar nenhuma foto de negro na parede e ele que fique satisfeito. Buggin’ Out resolve então boicotar a pizzaria, sem muito apoio dos outros moradores. Mas Radio, um jovem preto e também bolado, resolve apoiá-lo, e, durante a confusão, é morto pela polícia, estrangulado na frente de todo mundo.

Eu gosto da ficção, mesmo quando é pra falar da vida real. E, quando Mookie joga uma lixeira na vidraça da pizzaria do Sal, desencadeando uma quebradeira geral, me dá um alívio que vocês nem podem imaginar.

Claro que se a gente resolvesse quebrar tudo toda vez que um jovem negro fosse morto por um policial não haveria mais Rio de Janeiro, não é mesmo? Nesse caso, é preciso fazer a coisa certa.

Eu gosto da ficção porque ela me dá segurança de que aquilo não está realmente acontecendo. Como nas vezes em que o Tião Bezerra (José Mayer) dava tapas na cara da Magnólia (Vera Holtz) por volta das 9h30m da noite, e eu, cozinhando, levava um susto e depois me acalmava, repetindo pra mim mesma: “É só ficção”.

Foi me agarrando nesse mantra que preferi assistir à ficção “Última parada 174”, do Bruno Barreto, antes do documentário “Ônibus 174”, do José Padilha. “Isso não é filme de ficção, não”, gritava Sandro pela janela do ônibus naquele 12 de junho de 2000, agarrado e apontando uma arma pra cabeça de Geísa.

Oito anos depois, Lindemberg aponta uma arma para a cabeça de Eloá, também por uma janela, também transmitido ao vivo pela televisão. O documentário “Quem matou Eloá?”, da diretora Lívia Perez, relata em 24 angustiantes minutos aqueles cinco dias, e como a cobertura do caso fez mais um feminicídio parecer um filme.

Até que chega Emilly no “BBB 18” para nos lembrar que reality show não é ficção, que relações abusivas são responsabilidade de todo mundo e que tem que meter a colher, sim! Ainda assim, vale pensar que o rosto exibido ao vivo foi o dela, que ele foi mandado pra casa na quietude do confessionário, que quem se desesperou e se culpou em rede nacional foi ela.

É por conta do meu cansaço da vida real que eu sou abrigada a assistir “La la land” ou “Dreamgirls”. Acho que os musicais são o oposto cinematográfico dos documentários, mesmo os documentários musicais, como o “1000 trutas 1000 tretas”, dos Racionais Mc’s ou “What happened, miss Simone?”.

E a favela-periferia-subúrbio, quando começou a poder falar de si, para si e por si, precisou de muito documentário. É claro, foram tantas décadas de silenciamento que precisamos de centenas de filmes para nos sentir representados e contar nossas histórias “agora por nós mesmos”. Mas é tão bom assistir e ler uma ficção, é tão bom lembrar que a gente sabe contar histórias tão bem quanto a gente sabe contar a realidade.

A realidade é uma demanda.

Vocês também ficam tensos quando um filme traz a legenda “baseado em fatos reais”?

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