A festa se tornou um ícone de libertação e representação de jovens periféricos de todo o País
Por: MURILO BUSOLIN do Estadão
Você já ouviu falar da Batekoo? Muito mais do que uma festa acessível para o público negro e LGBTT, o evento desenvolve um ambiente democrático e chamativo que tomou a cena de Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro nos últimos meses.
O objetivo é promover a representação de jovens negros periféricos a partir de um movimento livre de preconceitos, que é embalado por ritmos exclusivamente negros como o hip-hop, rap, funk carioca, R&B, trap, twerk, kuduro, e suas vertentes.
Origem e dificuldades. A Batekoo nasceu em Salvador e foi criada pelos produtores e dj’s, Maurício Sacramento e Wesley Miranda, em dezembro de 2014. A ideia original tomou forma através de uma comemoração de despedida do produtor Miranda, que na época estava de mudança para São Paulo.
Hoje em dia, com a alta demanda do evento, Miranda toma conta das edições paulistanas, enquanto Sacramento fica responsável por realizar as edições em Salvador.
“No início de tudo eu sabia a prática, mas não sabia a teoria. Eu sabia que a gente deveria estar nesse espaço, eu queria que os pretos ocupassem e que a festa fosse feita por um preto, então aproveitei que não tinha festas alternativas voltadas ao publico jovem e negra/periférica/LGBTT em Salvador e mesclei a ideia da despedida de Wesley com essa vontade de fazer um rolê de músicas negras, feito exclusivamente por negros”, comentou o produtor da Bahia.
Já para Miranda, a festa começou com uma simples diversão e se tornou ícone de representação do movimento negro: “Quando eu fiz a primeira festa, pensei muito mais no divertimento da noite e na comemoração do meu aniversário e da minha despedida do que em lucro ou em levar a festa adiante.
Quando vimos que deu certo, eu e Mauricio resolvemos continuar a festa e ele a deixou nos moldes que é hoje, bem mais focado na população negra e na representação da identidade dessas pessoas”.
Além da Bahia, a festa já teve edições em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro (para cada cidade, existe um produtor responsável), sendo as duas últimas cidades, as que mais recebem edições mensais do evento, por terem um pouco mais de facilidade na execução.
Os produtores explicam que, apesar da proporção que a festa tomou, ainda há dificuldades em achar um espaço adequado que atenda a proposta do evento. “A galera nunca quer abrigar uma festa que se auto afirme de preto pra preto, que aborde a cultura periférica, porque este tipo de cultura é super marginalizada, fica claro o racismo velado pois associam a festa a algo ruim e não querem que ela seja realizada”, comentou Sacramento.
A primeira opção de nome para festa era É Treta.
Desenvolvimento. Foi no decorrer das edições, que Sacramento começou a perceber a importância de se organizar uma festa voltada apenas à cultura negra, tanto para o público alvo quanto para ele mesmo.
“A festa começou sem nenhuma pretensão de ser algo grandioso, mas ela foi se concretizando a partir de várias edições. Foi uma comunicação do público comigo, com o meu ‘eu’ pessoal, negro periférico, que acabou construindo toda essa proposta que a Batekoo oferece nos dias de hoje”, explicou.
Wesley Miranda, que também é jornalista, comenta que com a grande visibilidade que eles vêm ganhando por parte de veículos de informação nos últimos tempos, a intenção é de profissionalizar cada vez mais a produção daBatekoo. “Com essa visibilidade, precisamos ficar cada vez mais atentos ao nosso público e ao que vamos e queremos comunicar para todos. Temos que ser mais profissionais também, pensar em ferramentas para a divulgação, materiais para a imprensa, questões técnicas da festa, estudar modos de produção, conhecer a cena da cidade e as possibilidades que ela oferece, tudo isso sem perder o foco da nossa proposta e do nosso público.
Inspirações e ícones. O produtor Maurício Sacramento, revela que foi com o acesso aos ensaios que destacam a cultura negra, que ele conseguiu incorporar um novo corpo para a Batekoo, apresentando uma identidade mais significativa.
“A partir da segunda edição que eu dei uma nova roupagem à festa, lembro que na época o site Afropunk era bem popular e muito compartilhado entre amigos – o site é uma espécie de plataforma que dá visibilidade para negros no cenário alternativo e punk, sendo uma das referências do movimento de empoderamento negro, por mostrar cultura, moda e música no cenário negro como nenhum outro site faz, além de espelhar tudo isso em um festival – e foi aí que eu comecei a enxergar beleza no corpo negro, mas curiosamente eu não sabia que Afropunk era um festival”.
Ele ainda completou: “Apenas fui me descobrindo e desconstruindo padrões com as identidades visuais dos ensaios de negros realizados por eles e por diversos sites nacionais que começaram a ser compartilhados em massa, o que foi agregando conteúdo para mim e para a Batekoo“.
Para Miranda, as referências históricas foram importantes no desenvolvimento e construção do movimento Batekoo. “Pessoas históricas como Martin Luther King, Malcom X, Zumbi dos Palmares, Dandara, e o pessoal mais contemporâneo como Angela Davis, Suely Carneiro e Djamila Ribeiro, foram pessoas que me inspiraram muito em toda essa jornada”, explicou.
Sacramento citou a rapper Karol Conká e seu primeiro álbum Batuk Freak, como ícones do movimento negro que o ajudou a construir a proposta do evento.
Empoderamento. Nos dias atuais, com a difusão da internet, as pessoas conseguem um acesso muito mais fácil à informações que antes não eram propagadas e se criam grupos de discussão para compactuar ideias e pensamentos, e é exatamente neste ponto que a Batekoo se firmou como um movimento.
A libertação, união de minorias e empoderamento são assuntos extremamente debatidos em seus materiais de divulgação, que possuem uma forte expressão ao serem veiculados junto aos eventos. “Há muito tempo as pessoas negras já se articulam. Foi com o crescimento da internet e a criação dessas discussões, que a cultura negra e seus desdobramentos tomaram uma proporção muito maior e muitas pessoas negras agora estão em evidência. Além da difusão da música negra e da estética, as pautas da militância negra também têm sido mais discutidas e entendidas pelos próprios negros da diáspora, que hoje em dia começaram a entender mais o seu papel social enquanto pessoas negras e reivindicar seus direitos”, enfatizou Miranda.
Para Sacramento, o movimento Batekoo revigorou a sua auto-estima. “Eu era uma vítima né, eu não enxergava beleza em gente preta, nem em mim mesmo, mas com a onda desses ensaios criei uma identidade forte com essa nova roupagem que a Batekoo ganhou, ou seja, foi um momento de destaque para o fortalecimento da voz dos negros, do crescimento de uma nova estética negra e de um novo Maurício também”, disse.
O produtor ainda conta que a partir do momento que a festa tomou uma proporção maior, vários militantes da causa entraram em contato com ele através das redes sociais. “Se não fosse o público preto que entrasse em contato e comparecesse desde a primeira edição até as de hoje, a Batekoo seria uma festa vazia como qualquer outra e vai saber se existiria nos dias atuais”, enfatiza.
Destaques. Os produtores citaram alguns os maiores destaques durante toda a jornada da Batekoo.
“Em Salvador, uma menina chegou em mim durante uma festa e me agradeceu bastante emocionada, dizendo que foi por conta da Batekoo que ela foi ler e procurar entender o que era o racismo, além de ter deixado o seu cabelo encrespar e conseguir desconstruir alguns preconceitos”, citou o produtor da Bahia.
“Não esqueceria, é claro, da primeira edição gratuita da festa em São Paulo, na Virada Cultural deste ano, em que uma travesti negra de nome ‘Milkshake’, que estava passando na rua e decidiu participar de nossa batalha de twerk – ritmo musical de origem negra. Ela se jogou tanto que acabou recebendo os R$ 100 de prêmio para a melhor rebolada no palco, foi inesquecível”, completou Sacramento.
Já Miranda destaca uma edição beneficente da festa: “Resolvemos fazer uma edição totalmente beneficente e ajudamos o Centro de Referência e Defesa da Diversidade – CRD, ONG de São Paulo que atua ajudando pessoas transexuais e travestis com HIV e em situação de rua, além das outras pessoas LGBT nessas situações. Nós fizemos uma arrecadação de alimentos não perecíveis e materiais de higiene pessoal, foram mais de 300 quilos de comida arrecadados e a produção entregou pessoalmente no instituto. A gratidão das pessoas recebendo os alimentos foi muito recompensador”, comenta o jornalista.
“Teve uma vez que resolvemos doar todo o lucro de uma edição para a construção de um terreiro de candomblé localizado na zona leste de São Paulo, por acreditarmos que também é importante a retomada das origens africanas, por meio da religião, cuidando não apenas do nossos corpos físicos, mas também da saúde mental”, finalizou Miranda.