Biografia analisa a trajetória de Carolina de Jesus, autora de ‘Quarto de despejo’

Em 1960, quando lançou seu livro “Quarto de despejo”, Carolina de Jesus se tornou uma celebridade. O livro, que registrava o cotidiano precário em uma favela de São Paulo, onde ela criava três filhos, foi traduzido e publicado em mais de 40 países. Carolina saiu da favela, mas as dificuldades continuaram: a escritora foi apropriada como uma curiosidade exótica pela sociedade que sempre lhe virara as costas, e seu livro se tornou objeto de decoração em estantes de salas de visita.

Por Luciano Trigo Do G1

Foto: Reprodução/Brasil de Fato

De tempos em tempos volta-se a falar de Carolina de Jesus, mas até aqui o material biográfico disponível a seu respeito era escasso. Isso muda com o lançamento de “Carolina – Uma biografia” (editora Malê, 402 pgs. R$ 72), do pesquisador e ensaísta Tom Farias. O livro entrelaça uma pesquisa ambiciosa sobre a vida da escritora com uma interpretação crítica de sua obra. O autor investiga a infância da autora em Sacramento, MG, seu trabalho como doméstica, sua vida na favela e sua inserção no mundo intelectual. Na última parte, fica claro o contraste entre a fama meteórica e o ostracismo de seus anos finais. Nesta entrevista, Tom Farias – também autor de ensaios sobre José do Patrocínio e Cruz e Souza – explica a importância da obra de Carolina de Jesus e comenta episódios de sua trajetória.

O que o livro traz de novo, em relação ao que já se sabia sobre Carolina de Jesus?
Tom Farias – O livro faz uma investigação sobre a vida e a obra de Carolina desde o seu nascimento até sua morte, em 1977. Resolvemos abordar as suas mais remotas origens, em Sacramento, sua cidade natal, em Minas Gerais, suas raízes escravizadas, a história do avô, conhecido pelo codinome “O Sócrates Africano”, e a sua trajetória de vida, o sofrimento de sua família, a escolarização, sua prisão, quando foi acusada de ler um livro de feitiçaria etc. A investigação de suas origens me possibilitou enxergar um pouco mais da personalidade de Carolina quando da sua fase adulta, o porquê de determinados comportamentos e a sua paixão pelos livros e pela literatura.

Vivendo em condições tão precárias, qual era a motivação de Carolina para escrever? Ela tinha consciência da importância e da qualidade de sua literatura ou seu objetivo maior era registrar seu testemunho e denunciar o preconceito racial e a desigualdade social?
Tom Farias – Carolina começou a ser escritora no finalzinho dos anos de 1930, em 1939. Começou escrevendo versos e os publicando nos jornais paulistas, assim que chegou à capital do estado, para trabalhar como doméstica, dois anos antes. Desde então ela queria vencer pela poesia, como “poetisa preta”, como a denominavam. Na favela do Canindé, onde começou a morar a partir de 1948, a sua necessidade de escrita veio para aplacar a fome, a injustiça, a solidão e uma revolta social que, na verdade, sempre esteve presente.

Por outro lado, na favela propriamente dita, Carolina fazia a diferença porque era uma liderança nata: dava conselhos, orientava, ensina a ler e escrever, falava bem e se impunha como uma mulher forte e independente. O fato de lidar com uma população marginalizada e abandonada pelo poder público, muitos analfabetos, desempregados e vitimados pelo vício do alcoolismo e da violência, a projetou como um “ser estranho” dentro de um universo em desordem. Quando ia vender o papel catado nas ruas, ela era uma das únicas que assinavam o recibo de pagamento, enquanto todos os outros borravam o dedo com a marca da digital.

Nesse sentido, seu objetivo era um registro dos fatos e acontecimentos da favela. Os seus diários, que resultaram no livro “Quarto de despejo” não eram para virar livro. Carolina, na verdade, queria publicar suas poesias, os contos e os romances que escrevia.

Lançado em 1960, ‘Quarto de despejo – Diário de uma favelada’ teve surpreendente sucesso comercial, esgotando 10 mil exemplares em uma semana. Como entender esse fenômeno em um país onde é tão difícil vender livros?
Tom Farias – Houve um forte impacto com algumas reportagens, realizadas pelo jornalista Audálio Dantas, sobretudo a da revista “O Cruzeiro”, em 1959. Carolina então virou uma curiosidade, que provocou um frisson na sociedade paulistana, que só conhecia a favela por ouvir falar. A figura daquela mulher maltrapilha, que tinha uma presença forte nas ruas como catadora de papel, se tornou um objetivo de curiosidade e estranhamento, que todos passaram a conhecer. Por outro lado, a edição bem realizada por Audálio Dantas dos textos escritos por Carolina e a impecável edição da editora Francisco Alves, ajudaram a pôr mais lenha na fogueira. Imaginar uma mulher moradora da favela e semialfabetizada que escreve um livro era algo que aguçava o interesse de milhares de pessoas, e também da mídia. Isso causou muita inveja de autores renomados, que boicotaram o lançamento do livro, onde foram autografados, em um só tarde, mais de 600 exemplares.

Sobre a infância de Carolina, de que forma a ausência do pai e o contexto social de Sacramento afetaram os primeiros anos de formação da escritora?
Tom Farias – A infância de Carolina foi muito parecida a de toda criança negra e pobre do pós-Abolição. Filha bastarda, não conheceu o pai, tido como um homem boêmio, poeta improvisador e tocador de viola. Reza a lenda que possuía um único terno, e quando Cota, mãe de Carolina, o lavava, o pai dela ficava deitado nu na cama, até o mesmo secar.

No seu livro de memórias, “Diário de Bitita” – que não é um diário, mas sim um dos seus melhores livros narrativos – Carolina detalha essa fase de sua vida, as agruras de sua infância e o quanto tudo isso marcou a sua personalidade, dando-lhe real consciência da sua posição de mulher e negra, em função do grande preconceito racial e social que sofreu ao longo da vida – mesmo na fase em que esteve no auge com o estrondoso sucesso do seu livro, sobretudo entre 1959 e 1961.

O escritor Tom Farias, biógrafo de Carolina Maria de JesusCarolina teve uma educação formal muito breve, o que não a impediu de se aprimorar continuamente na escrita.  Como você analisa isso?
Tom Farias – É um caso raro de autodidatismo. Algo parecido ocorreu com Machado de Assis. Aluna até a segunda série primária do colégio Allan Kardec, escola espírita de Sacramento, o seu amor incondicional pelos livros e pela leitura nasceu ali. A sede de escrever, quase como uma doença, veio quando ela chegou em São Paulo, em janeiro de 1937. Mas em Franca, última cidade por onde passou antes de chegar à capital, ela já cometia alguns versinhos, em geral para elogiar ou homenagear alguém.

Qual foi o impacto da mudança para São Paulo e Do novo cotidiano, na favela, na vida de Carolina?
Tom Farias – Carolina chegou em São Paulo com a certeza que iria vencer e mudar de vida. Logo todo este sonho caiu por terra. A grande metrópole não perdoava aqueles sem estudo e sem profissão definida, como era o caso dela – e, sobretudo, os sem o Q.I., “Quem Indica”. Tanto que, dois anos após chegar a São Paulo, ela se muda para o Rio de Janeiro, onde vive experiência muito semelhante. Aqui é igualmente infeliz, como diz. Os versos não lhe saem da cabeça, a ponto de não conseguir permanecer em um emprego, porque esquece a panela de feijão no fogo porque causa da “maldita poesia”. Ou seja, deixava queimar o feijão da patroa e era demitida de todos os empregos por falta de atenção.

Diz-se que Carolina era mal vista tanto pelos políticos de esquerda quanto pelos políticos de esquerda, isso procede? Qual era a relação da autora com a política?
Tom Farias – Não é exatamente verdade. Carolina não tinha um projeto político definido, tampouco militava numa corrente ideológica. Sua militância era registrar as contradições de uma sociedade hipócrita, tanto de esquerda, quanto de direita. Ela também era uma pessoa bastante contraditória, como qualquer ser humano. Mas foi por causa dela que a favela do Canindé foi extinta e surgiu um importante movimento em São Paulo nos anos de 1960 para pôr fim às favelas paulistanas, na época com um pouco mais de cinco espalhadas por todo o município.

O temor aos escritos de Carolina, veio depois da publicação dos seus livros – especialmente “Casa de alvenaria – Diário de uma ex-favelada”. Neste livro, Carolina destila toda a sua ironia contra uma sociedade que passou a acolhê-la após ela ficar famosa, a mesma sociedade que  antes a evitava por ela ser negra e pobre. Diz-se que, em uma cerimônia onde se encontrava o presidente João Goulart, na qual a escritora estava presente, o político informou que era preciso ter cuidado com o que se falava “pois Carolina estava por perto”, aludindo à sua mania de registrar e divulgar tudo o que ouvia, dando nomes aos bois.

Carolina morreu pobre e em relativo ostracismo. A que você atribui isso?
Tom Farias – Ela foi vítima de um meio social que apenas a consumiu como um “fruto estranho”, como acertadamente chegou a dizer o jornalista Audálio Dantas. Outra coisa foi a queda nas vendas dos seus livros, as péssimas negociações das inúmeras traduções de sua obra, hoje presente em mais de 40 países e 16 idiomas, e à ditadura, que via nela essa ameaça social; ela era erradamente vista como uma militante socialista, já que deu depoimentos elogiando a revolução cubana e Fidel Castro. Por outro lado, sua mudança para o sitio de Parelheiros, muito distante do centro de São Paulo também foi um fator que contribuiu enormemente para ajudar a fecundar este ostracismo.

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