Biografia de uma Mulher Africana

Fonte: Correio do Patriota


A Graça nunca dá um ponto sem nó, diz quem a conhece bem. O que se impõe a quem a vê e ouve é a consciência que ela tem de ser uma mensagem e uma referência para todas as mulheres africanas, com a obrigação de estar em todas as circunstâncias à altura do papel que pretende representar para os jovens, africanos e não só, que têm como dever continuar as lutas que a minha geração começou. Utiliza a sua biografia como argumento e arma e elege uma ou outra das facetas do seu perfil, consoante o auditório, para lançar recados e desafios.

 

Em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, a intelectual afirmou que o que nos separa [dos europeus] em termos de desenvolvimento é o conhecimento científico e tecnológico e desafiou a cooperação portuguesa a esmerar-se na transferência de saberes. Na Reitoria da Universidade de Évora, depois de receber com orgulho e humildade o título de Doutora Honoris Causa, invocou as suas amigas de infância de Incadine, na província de Gaza, que reencontrou, muitos anos mais tarde, analfabetas e carregadas de filhos e filhas condenadas a reproduzir o mesmo ciclo de ignorância e pobreza. Fê-lo para destacar a sorte que teve por a sua mãe e irmãos mais velhos se terem empenhado em cumprir a promessa feita ao pai – falecido antes do nascimento de Graça de dar à caçula da família a oportunidade de
estudar. Família, solidariedade, trabalho são as palavras-chave do seu credo. Foi a Missão protestante que lhe permitiu seguir estudos superiores em Portugal, mas as bolsas eram reservadas aos melhores alunos. Ganhei-a, diz Graça.

 

O irmão Gabriel já estava a estudar nos EUA e acompanhou à distância os progressos da irmã nas lides universitárias, primeiro em Coimbra e depois em Lisboa, e na tomada de consciência política. Era militante da Frelimo1. Graça ingressou na organização clandestina em 1969.Para Graça, a Frelimo completou a sua educação e as duas formações tiveram a mesma importância. Numa entrevista publicada em 2005 no Brasil explicava qual foi o seu papel na guerrilha, a que se juntou em 1973 na Tanzânia:A Frelimo fazia muita questão de que os soldados não fossem apenas militares.

 

Tínhamos de estar politicamente conscientes daquilo que estávamos fazendo, porque estávamos lutando, porque queríamos a independência. Por isso, a noticiários e fazíamos com que o campo se mantivesse informado. Por outro lado, eu dava aulas à noite para as moças do nosso grupo que não sabiam ler. Uma das minhas instrutoras, por exemplo, dava-me aulas durante o dia, mas à noite ela era minha aluna. Participei dos programas de alfabetização e dos programas de cultura, e até organizámos peças de teatro. Quando fizemos dez anos de luta armada, fui para o interior do país contar essa batalha, por meio das histórias de vida das pessoas. Recolhemos muitas informações junto dos jovens, das mulheres e dos camponeses. A Frelimo queria saber o que aqueles anos tinham significado na vida das pessoas. Era o
papel do grupo do qual eu fazia parte: instruir, informar e ensinar os companheiros de luta.”Na altura, Samora Machel já era o presidente da Frelimo e Graça um soldado raso. Mas como eu tinha acabado de chegar da Europa, onde tinha estudado, ele procurou-me com o objectivo de entender o cenário de Portugal (…). Samora me fazia muitas perguntas, queria entender tudo e tivemos debates muito interessantes. Acho que foi ali que começámos a nos descobrir como pessoas (…). No meio daquelas conversas repetidas, começou a surgir uma certa química. Foi assim que nos aproximámos.

 

Aconteceu o 25 de Abril em Portugal, iniciou-se o processo de negociações com os Movimentos de Libertação e, na mesma entrevista, Graça lembra a emoção que sentiu ao sentar-se à mesa com os representantes do Governo de Lisboa, porque a Frelimo fazia questão de integrar mulheres a todos os níveis, ao contrário do que acontecia na sociedade tradicional moçambicana e no regime colonial português. Eu tinha 28 anos e vivi um momento único, porque esses momentos acontecem uma única vez na história. Foi muito bom para mim ter sido parte da história do meu país, da história da África Austral também, porque a Frelimo foi o primeiro movimento de liberação que venceu militarmente e forçou os colonizadores a assinar a rendição. Nós proclamámos a independência, não a recebemos das mãos de Portugal. (…) A independência de Moçambique e de Angola acelerou a queda dos regimes racistas na África Austral. Após a assinatura dos acordos de paz em Setembro, Graça integrou o Governo de Transição chefiado por Joaquim Chissano. Em 1975 ingressou no Comité Central da Frelimo e casou com Samora Machel.

 

Ultrapassar a guerra Ministra da Educação até 1989, Graça orgulha-se de terem conseguido escolarizar a quase totalidade das crianças no ensino básico, num país onde 90 por cento da população era analfabeta e menos de dez por cento falava português. A guerra civil, que durou 17 anos, arruinou muitas destas conquistas, destruindo a quase totalidade das escolas e causando milhões de mortos, viúvas, órfãos, mutilados, deslocados e refugiados. Viúva de Samora Machel, falecido em 1986 num acidente de aviação em território sul-africano, Graça considera-se uma das vítimas da guerra movida contra o seu povo pelo regime do apartheid. Eu sei que foram eles que o assassinaram, todo o mundo sabe, mas infelizmente eu não posso prová-lo. Mais do que fazerem de mim uma viúva, a África do Sul fez dos
meus filhos órfãos. Eu nunca tive pai e ficava muito feliz de ouvir meus filhos dizendo papá, de vê-lo levando-os nos ombros, como todos os pais fazem. Eles assassinaram o pai dos meus filhos e isso eu não consigo perdoar . Quem assistiu ao funeral de Samora?Machel em Maputo não esqueceu certamente a mulher vestida de negro que descia a grande escadaria do Palácio Municipal atrás do caixão, hirta de dor e dignidade, rodeada pelos filhos do Presidente, dos quais apenas dois eram os seus filhos biológicos.

 

Em defesa das criançasGraça não disse se teve então consciência de entrar numa nova etapa da sua vida. Manteve-se no Governo por três anos, continuou a participar activamente na vida política e a guerra só acabou em 1992. Mas em 1990 já tinha criado a Associação para o Desenvolvimento da Comunidade (ADC), com os mesmos objectivos que são hoje os da Fundação do mesmo nome. Se a educação das crianças foi sempre uma prioridade para os fundadores, a FDC defende que a tarefa não se esgota com escolas e bolsas de estudo. É preciso fazer com que as crianças, privadas de pais pela guerra ou pela sida, encontrem na comunidade a que pertencem uma família de substituição que as ampare, acompanhe e proteja contra a estigmatização e a exclusão. Para isso é necessário trabalhar com as comunidades,
envolvê-las na tomada de decisões, rompendo com a dependência em relação aos «doadores» externos, por mais bem intencionados que sejam. O trabalho desenvolvido por Graça Machel em Moçambique levou Boutros Boutros-Gali, então secretário-geral da ONU, a encarregá-la da coordenação de um estudo sobre o impacto dos conflitos armados.

 

Publicado em 1996, sob o título de Impact of Armed Conflict on Children o relatório Machel alertou o mundo para a gravidade de crimes como o alistamento de crianças soldados, a sua exploração sexual e as sequelas traumáticas da violência em que participaram como autores e vítimas.

 

O trabalho de campo realizado para a elaboração do relatório revelou a Graça Machel o drama das pequenas vítimas de conflitos alheios às realidades africanas, na ex-Jugoslávia, Palestina, Timor, Colômbia. As inúmeras iniciativas a que deu origem o relatório Machel não tiveram o efeito desejado. Um inquérito realizado dez anos depois constatou que apesar da diminuição do número de conflitos armados «o impacto da guerra nas crianças é mais brutal que nunca e viola todos os direitos dos menores. Mas abriu um novo capítulo da defesa dos direitos humanos e lançou a sua autora na alta-roda da política planetária como especialista muito consultada e para falar em nome das vítimas, dos sem voz. A outra tarefa que Graça Machel assumiu com paixão foi a defesa do legado de Samora Machel como político e estratega da libertação da África Austral, o que inclui a divulgação dos seus discursos e do seu pensamento, bem como os esforços para fazer toda a luz sobre a sua morte. Graça diz que «o nosso país passou por vários processos sobrepostos, mas eu acho que a principal conquista é a independência, sermos um Estado soberano. Para quem viveu alguns anos no período colonial não há dúvida de que o facto de termos a nossa própria identidade, a possibilidade de tomarmos decisões sobre aquilo que queremos ser, aquilo que queremos que o nosso país seja, são conquistas que não podem ser medidas. São valores  sagrados.

 

Duas vezes primeira-damaPara incitar o novo regime sul-africano a retomar as investigações sobre o acidente que vitimou Samora a viúva procurou o apoio de Nelson Mandela, recém-eleito primeiro Presidente negro da África do Sul. E de novo a «química» operou. O grande lutador septuagenário, combalido emocionalmente pela ruptura com Guie, apaixonou-se e recobrou a serenidade ao lado de uma jovem extraordinária.  O mundo comoveu-se com este idílio outonal e as fotos do casal, passeando de mãos dadas, foram capa da imprensa internacional. O casamento foi há dez anos, Graça continua a chamar-se Machel e cada um mantém as actividades e os interesses que tinha antes, com as crianças e as vítimas da sida como preocupação central. Mandela, doente, foi progressivamente reduzindo as intervenções
públicas. Mora a maior parte do tempo em Maputo, na casa de Graça, que frequentemente o representa nas homenagens que o mundo continua a render-lhe. Foi o que aconteceu em Lisboa, quando a Academia das Ciências fez do ex-Presidente sul-africano seu sócio. É ela que participa mais activamente nas missões de paz do Grupo dos «Elders» (anciãos), que faz parte do júri do Prémio No Obrais, que distingue todos os anos um chefe de Estado africano que deu prova de bom comportamento democrático, e que intervém como especialista no mecanismo de «revisão pelos pares» criado pela União Africana para avaliar as boas práticas governativas dos seus membros. Mas quando ela o faz, todos sabem que as ideias são também as de Mandela quando se trata das grandes opções políticas.

 

Também aprendeu a falar publicamente da «química» que os une, em parte para defender o homem político que Mandela é e, acima de tudo, contra as tentativas de o embalsamar em vida, como santo de altar. Confessa que foi complicado: «os dois homens com que me casei são para mim um misto de marido e herói. Com o tempo aprendi a conciliar a vida pública com a vida pessoal. A verdade é uma: Nelson Mandela é herói de todos nós mas é ao mesmo tempo a pessoa com quem partilho detalhes da vida, é meu marido, é pai dos meus filhos e o meu melhor amigo.

Fonte: África 21, Dezembro

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