Fonte: Brasil de Fato –
por: Elaine Tavares –
Muito pouco se sabe sobre o continente e o que se sabe em grande medida reproduz a lógica do eurocentrismo
O seminário sobre África promovido pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em parceria com o Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Descendentes, mostrou aquilo que já era esperado. Muito pouco se sabe sobre o continente e o que se sabe em grande medida reproduz a lógica do eurocentrismo, o mesmo que foi responsável pelo que Jorge Risquet, de Cuba, conceitua como o maior genocídio promovido pela humanidade: a escravidão.
Durante dois dias inteiros – 18 e 19 de agosto –, vários professores envolvidos com o ensino da história da África e da literatura africana trouxeram informações sobre o tema, mas a maioria sem uma amarração conceitual crítica. Conceitos como colonialismo, escravidão, capitalismo e imperialismo passaram ao largo, dando espaço para discussões mais abstratas, como contemporaneidade, religiosidade, cotas, elementos textuais e de linguagem, numa espécie de “exercícios de Castália”, a famosa sociedade de Herman Hesse na qual o conhecimento era apenas um jogo linguístico.
A nota política e crítica foi dada pelo cubano Jorge Risquet, o mesmo que nos anos 1960 liderou o trabalho de solidariedade revolucionária nas terras africanas, juntamente com Che Guevara, que, com as mais importantes lideranças africanas da época, colocaram um ponto final no colonialismo, inaugurando as vitórias de independência.
Um espaço de começos
O jovem escritor angolano Ondjaki, também bastante conhecido no Brasil, apresentou o seu documentário “Oxalá cresçam pitangas”, que mostra como é o cotidiano da gente de Luanda, capital de Angola. O trabalho traz o depoimento de dez jovens da periferia da cidade e é uma espécie de colcha de retalhos, apresentando variados aspectos do dia-a-dia de uma gente que precisa batalhar muito para reproduzir a vida. Uma grande cidade, com todo o contingente de pessoas que migram do campo e que acabam tendo de “dar jeitinho” para poder sobreviver no caos urbano.
Ondjaki diz que o documentário é parcial e foca apenas nessa parte da vida luandense. “Quem quiser mostrar outra Angola, que faça outro filme”. Segundo ele, o povo da periferia está com os olhos no futuro, tem uma atitude otimista diante da vida, coisa que, acredita, possa se transformar também em ativismo social.
Na grande cidade de seis milhões de pessoas, o escritor centrou foco no sonho. Para ele, elementos como a música e o futebol são os que mais movem os jovens luandenses, e é por esse caminho que, crê, vai o futuro. “A gente vê que também há um esforço do governo em enfrentar o pós-guerra, mas o problema é tão grande que é difícil. Eu exijo sempre mais”.
Ondjaki conta ainda que há muita gente trabalhando em Angola, nas ONGs, sindicatos, associações, e que as pessoas têm uma grande vontade de aprender. “Gente, há filas para entrar em bibliotecas. Isso é uma coisa incrível”. A palavra tem muita força na boca dos jovens e eles a usam. Angola é um lugar que viveu 500 anos de dominação colonial, passou por 37 anos de guerra civil e desde 2002 entrou num tempo de paz, o que mostra que há ainda um longo caminho por se fazer.
Mãe África? De quem?
Durante o seminário, foi visível a sede dos negros brasileiros que lotaram o auditório de saber sobre aquele que consideram seu torrão original. Assim, falar da “mãe” África é coisa natural. Mas, para Ondjaki, é muito difícil entender esse sentimento de orfandade. “Lá, a gente não pensa na África como uma coisa só. São países diferentes, povos diferentes. Não há essa ideia de um espaço único”.
A explicação para esse sentimento vem das pessoas que cotidianamente vivenciam a herança ancestral de um povo arrancado de seu lugar e jogado em outro mundo para servir como escravo. “Aqui, no chão da escravidão, não havia diferenças entre nós. Éramos todos cativos e estávamos na mesma situação. Daí, talvez, esse sentimento, que foi crescendo. Já não vislumbrávamos as fronteiras do lugar original. Todos éramos ‘africanos’, por isso entranhou-se em nós a ideia de uma única mãe, a África”, explicou uma mulher na plateia.
E esse foi, talvez, o maior estranhamento causado durante o seminário. A maioria dos estudiosos de África trouxe um olhar que chamaram de “visão da diáspora”, o que, de fato, esteriliza o processo brutal da escravidão que drenou a vida daquele continente por séculos inteiros.
A diáspora pressupõe o deslocamento voluntário de pessoas, ainda que constrangidas por algum fator. Mas o que houve nos tempos coloniais não foi um “constrangimento”, foi um crime, um genocídio, um processo feroz de captura e comércio humano, concretizado na escravidão.
Não foi à toa que o professor Nildo Ouriques, estudioso de América Latina e presidente do IELA, fez uma fala pesada contra o colonialismo que se expressa na universidade. “A maioria dos autores citados são referências europeias, ou de africanos que passam pelo crivo europeu. Mas, como falar de África sem falar de Agostinho Neto, Samora Machel, Lumumba, Ben Bella e tantos outros? É preciso que as pessoas que ensinam a história da África a conheçam pelos seus autores e não mediados pela colônia. E também não dá para falar desse continente deixando de lado conceitos como a escravidão, o colonialismo e o capitalismo”.
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