Bloquear os retrocessos no Brasil

A AWID falou com Ana Cernov, coordenadora de programas de Conectas Sul-Sul, sobre a atual crise política no Brasil. A análise de Cernov busca ajudar-nos a entender os efeitos a longo prazo da crise na sociedade civil e nos direitos humanos no Brasil.

Por Gabby De Cicco*, do Forum.awid


AWID: Qual a situação atual no Brasil? Você pode nos dizer sobre a repressão e os retrocessos democráticos em curso?

Ana Cernov (AC): A crise política no Brasil nos preocupa, em particular, devido às consequências profundas e impactos negativos sobre as instituições democráticas e os direitos humanos. A derrubada de um/a chefe de Estado é uma questão séria e, como tal, somente justificável em circunstâncias extremamente excepcionais. Há questionamentos sobre a legitimidade política e a conformidade legal do processo que acusou a Presidenta Dilma Rousseff de ter quebrado leis orçamentárias.

No entanto, independentemente de Rousseff ser definitivamente afastada do cargo, é inquestionável que as forças que se mobilizaram para apoiar o governo interino já anunciaram medidas que – sob o pretexto de combater a crise econômica – de fato constituem um ataque direto aos direitos civis, políticos e sociais consagrados na Constituição Federal de 1988.

É verdade que o país ainda está longe de alcançar os objetivos estabelecidos na Constituição, tais como a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Mas também é verdade que houve progresso ao longo do percurso, desde a redemocratização. Por isso é necessário defender com firmeza as recentes – e, como tal, frágeis – vitórias e anunciar que qualquer medida que resulte em retrocessos terão como resposta uma profunda resistência e condenação por movimentos de direitos humanos.

O rebaixamento da importância dos direitos humanos na agenda do governo interino deve ser condenada. Não somente, mas especialmente, as mudanças institucionais anunciando a incorporação do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos pelo novo Ministério da Justiça e Cidadania. As intenções declaradas pelo partido do presidente interino Michel Temer de colocar um fim às vinculações constitucionais de gastos com saúde e educação também indicam uma escolha políticaque ameaça as garantias sociais no Brasil.

O alinhamento das forças conservadoras no Congresso produziu algumas iniciativas perturbadoras. Estas incluem projetos de leis que ameaçam o princípio da laicidade do Estado brasileiro, por exemplo uma proposta de emenda constitucional que permite entidades religiosas questionarem leis aprovadas (PEC 99/2011).  Há também uma lista longa de propostas pendentes no Congresso Nacional que visam a restringir os direitos reprodutivos e sexuais, tais como o Estatuto da Família e alterações no Código Penal, que criminalizam mulheres e profissionais da saúde que prestam assistência a vítimas de violência sexual.

Um gabinete provisório consistindo somente de homens brancos também envia uma clara indicação de desvalorização da igualdade de gênero.

No campo da justiça criminal, há um risco iminente de redução da maioridade penal e de aumento no tempo das penas de prisão.

A crise econômica pela qual o país passa exige uma ação equilibrada deste governo interino para que direitos humanos não se tornem uma moeda de troca, seja na política doméstica, seja na política externa do Brasil. Lamentavelmente,  manifestações públicas  do presidente interino e de seu partido têm sinalizado um sério risco de prevalência dos interesses privados sobre o interesse público.

As leis trabalhistas claramente encontram-se vulneráveis, uma vez que já foi veiculada pelo PMDB a proposta de que acordos coletivos negociados entre empregadores e empregados prevaleçam sobre a legislação trabalhista, mesmo quando impliquem perdas às/aos trabalhadoras/es. Preocupa também a fragilização da responsabilidade socioambiental das empresas e do licenciamento ambiental frente a projetos de grande impacto. Há alguns projetos de lei alarmantes tramitando no Congresso, tais como emendas constitucionais que enfraqueceriam os requisitos do licenciamento ambiental e a aprovação do novo Código da Mineração sem os ajustes necessários para prevenir desastres ambientais, tais como o de Mariana/Rio Doce, ou para garantir a proteção dos direitos humanos das comunidades afetadas. O mesmo padrão de priorizar interesses privados em detrimento dos direitos humanos pode ser observado nas ameaças contra os direitos de povos indígenas e tradicionais do Brasil, por exemplo, ao não permitir a demarcação de suas terras.

Há também sinais preocupantes de que a política externa brasileira poderia ser reduzida a um meroinstrumento de promoção comercial do país. A Constituição Federal afirma que as relações internacionais do Brasil devem dar prioridade aos direitos humanos. É especialmente preocupante o papel que a indústria nacional de armas poderia ter nesse esforço de promover o comércio brasileiro no mundo.

Em conversas com outras pessoas, vejo uma preocupação crescente sobre como as narrativas estão sendo construídas em torno do fato de que a sociedade civil apresenta ameaças para cidadãos comuns. Por exemplo, existem discussões sobre se uma lei específica é necessária, com penas mais duras para prejuízos à propriedade. Protestos, ocupações e outras estratégias comuns usadas pelos movimentos sociais e a sociedade civil estão sendo apresentadas para a sociedade como perigosas e prejudiciais. Esta narrativa provavelmente trará efeitos negativos e de longo prazo.

AWID: Qual você acha que é o papel da sociedade civil e de organizações de direitos humanos em engajar-se e abordar a crise atual no país?

AC: Os movimentos e organizações sociais têm um papel importante neste momento, que é manter-se vigilantes e identificar retrocessos para garantir direitos. A constituição brasileira de 1988, escrita apenas três anos depois do fim de nossa ditatura (o Brasil foi governado por uma ditadura militar de 1964 a 1985) ainda é considerada progressista e avançada em razão de importantes compromissos trazidos pelo texto.

Ameaças à Constituição têm crescido enormemente nos últimos meses com o governo interino, embora ela tenha estado sob risco há algum tempo. O sistema político brasileiro requer a construção de alianças entre seus 39 partidos políticos – para formar coalizões e maioria tanto nos poderes executivo quanto no legislativo. Como consequência, as coalizões são frequentemente construídas em torno de interesses econômicos e reúnem bancadas que, quando alinhadas, podem ser ainda mais perigosos para os direitos humanos. Um exemplo é a chamada bancada BBB – bíblia, bala e boi – representando os interesses e poder da igreja evangélica em ascensão, da indústria das armas e da indústria do agronegócio. Estas combinadas formam uma ameaça explosiva à terra, ao meio ambiente e aos direitos LGBTI e de mulheres.

Infelizmente, nosso país tem uma estrutura política na qual homens brancos e milionários têm acesso a candidaturas e são eleitos como representantes. Eles não representam a população do país que é, emsua maioria, feminina e negra. Entretanto eles têm o poder de usar os governos para sua própria vantagem e para a vantagem de seus aliados. Sem reforma política, quando esta crise for superada, outra estará na esquina.

No entanto, apesar dos retrocessos e ameaças à nossa ainda jovem democracia, temos uma sociedade civil muito ativa e vibrante. As realizações do processo democrático desde 1985 estão diretamente ligadas aos movimentos e organizações sociais que garantiram que as injustiças fossem denunciadas, as preocupações verbalizadas e que tomaram parte na construção de soluções.

Então nesse momento, mais do que nunca, a sociedade civil precisa assegurar que as ameaças sejam identificadas e visibilizadas. Somente com vozes fortes, firmes e comprometidas, seremos capazes de bloquear os retrocessos.

AWID: Dado o seu trabalho a nível mundial, em especial relacionado a engajamentos Sul-Sul; você pode traçar algum paralelo entre o que está acontecendo no Brasil atualmente e as tendências em outras partes do planeta?

AC: O que está acontecendo no Brasil não é um caso isolado. Há uma onda de novos governos na América Latina em particular, que estão pendendo para a direita e aumentando o foco em uma agenda econômica em detrimento da social. O papel dos interesses privados está aumentando, novamente em detrimento dos interesses públicos e, com isso, o papel que a sociedade civil tem na democracia tem sido desvalorizado.

Há crescentes ameaças à sociedade civil em razão desta agenda econômica. A sociedade civil agora tem que disputar com a captura corporativa de nossos governos, bem como com as recomendações por instituições internacionais e multilaterais para restringir seu funcionamento. Um exemplo claro é a Financial Action Task Force (FATF – Força Tarefa para Ação Financeira), uma instituição pouco conhecida ligada à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). A FATF tem, na última década, promovido medidas antiterroristas. Em seu pacote de recomendações, a FATF informa os países que a sociedade civil pode ser particularmente vulnerável a ser usada por grupos terroristas para seu financiamento e deve ser portanto melhor controlada. Como resultado desta recomendação da FATF, uma série de mecanismos de controle de ONGs em um número de países do Norte e do Sul têm sido implementados, por exemplo listas de registros de ONG e controle burocrático e restrições ao financiamento.

Ao mesmo tempo que medidas devam ser tomadas onde há riscos, elas precisam ser identificadas em primeiro lugar, antes de impor regras e regulações sobre a sociedade civil que ajudem governos – democráticos ou não tão democráticos – a regular, controlar e limitar o que uma organização ou grupo pode fazer e sob que circunstâncias.

Depois do atentado de 11 de setembro, houve um grande aumento no número de leis antiterroristas em todo o mundo e, com isso, mais limites à sociedade civil demandando direitos. Os limites aos protestos são frequentemente incluídos no marco de leis antiterroristas e a experiência nos mostra que isso é frequentemente usado contra os movimentos e organizações sociais fazendo reivindicações não desejadas.

A lei antiterrorismo do Brasil foi aprovada no último mês de fevereiro depois de ter sido acelerada pela Presidenta Rousseff. Temos certeza de que ela será usada para criminalizar o dissenso e as reivindicações por direitos não desejadas, como aconteceu em muitos outros países.

O  13° Forum Internacional AWID será um importante momento para nos mobilizar, nos reunir e intercambiar visões. Aprender juntos é fundamental como caminho para promover nossas causas e igualdade.

Não somente porque pode nos trazer lições inestimáveis, mas também porque cada passo adiante pode ser celebrado em solidariedade. E esta força é o que fará nossas organizações e movimentos quebrarem as barreiras que estão sendo impostas à sociedade civil globalmente.


*Agradecimentos a Angelika Arutyunova e Susan Tolmay

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