Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
[…] Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…
Navio Negreiro, Casto Alves
Por Mário Maestri, do Port.Pravda.Ru
Em janeiro de 1821, no Rio Grande do Sul, Auguste de Saint-Hilaire anotava em seu diário que o Reino do Brasil perigava ser “perdido pela casa de Bragança” e que “suas províncias” podiam explodir em nações independentes, “como as colônias espanholas”, considerando-se a tamanha diferença entre as mesmas. O naturalista francês escrevia coberto de razões: “Sem falar do Pará e de Pernambuco, a capitania de Minas e do Rio Grande, já menos distanciadas, diferem mais entre si que a França da Inglaterra”.
Desde sua origem, em inícios dos anos 1500, a América portuguesa foi constituída por um mosaico de regiões semi-autônomas, de frente para a Europa e para a África, de costas umas para as outras. As diversas colônias luso-brasileiras exportavam sua produção minerária e agro-pastoril e importavam os manufaturados e cativos que consumiam pelos grandes portos da costa – Salvador, Recife, Rio de Janeiro, etc. Eram muito frágeis os contatos entre as capitanias e, mais tarde, províncias, inexistindo o que hoje definimos como “mercado nacional”. A coroa lusitana tudo fazia para manter os frágeis contatos entre as diversas partes de seu domíno americano.
Nas diversas regiões da América Lusitana, os grandes proprietários e comerciantes escravistas participavam do controle do poder local e regional em associação subordinada às classes dominantes metropolitanas, desde 1808, sediadas no Rio de Janeiro. Os proprietários luso-brasileiros sentiam-se membros do império lusitano, possuíam laços de identidade regional [“rio-grandense”; “mineiros”; “paulistas”, etc.] e desconheciam sentimentos ‘nacionais’ [“brasileiros”], impensáveis e imaterializáveis devido à inexistência de entidade nacional. Ou seja, efetivos vínculos, sobretudo econômicos e sociais, entre as diversas províncias.
Lisboa pelo Rio de Janeiro
Em 1808, a família real, o aparato administrativo e importante parte das classes dominantes lusitanas desembarcaram no Rio de Janeiro, sob a proteção da marinha britânica, fugidos da invasão napoleônica de Portugal e da revolução liberal. Com o fim inevitável do exclusivismo comercial lusitano [“abertura dos portos às nações amigas”], os ingleses impuseram taxas alfandegárias privilegiadas que inviabilizaram qualquer produção manufatureira nas províncias do Brasil. Em verdade, era tudo que os escravistas luso-brasileiros queriam. Ou seja, importar manufaturados a baixo preço.
No frigir dos ovos, a exação de Lisboa sobre as prvíncias do Brasil foi substituída pelo tacão, não menos pesado, do Rio de Janeiro. As eventuais maiores exigências da administração real joanina sobre as províncias do Brasil eram compensadas por um maior aperto no tornique que literalmente esmagava os trabalhadores escravizados. Com a Corte em Lisboa ou no Rio de Janeiro, tudo seguia, mais ou menos, como dantes, no velho quartel de Abrantes!
Em 1820, quando da Revolução do Porto, a burguesia comercial lusitana mobilizou-se para por fim ao absolutismo e impor uma ordem liberal e constitucional em Portugal. Exigiram, igualmente, a recolonização do Reino do Brasil! Nesse então, como na América Espanhola, já plenamente conscientes do caráter parasitário da ordem absolutista portuguesa, as classes dominantes luso-brasileiras almejavam independência restrita aos limites das regiões que controlavam. Já em 1817, os liberais pernambucanos haviam sido massacrados quando rebelaram-se pela independência daquela província e das que dela dependiam. Não haviam pensado, por um momento sequer, na “Independência do Brasil”!
Um Estado sem Nação
O Reino do Brasil seguia sendo entidade sobretudo administrativa, sem vínculos econômicos e sociais objetivos e subjetivos entre as diversas províncias. Os laços entre o Rio Grande do Sul e o Prata eram certamente mais forte do que os com a Bahia ou Pernambuco. Era grande a comunhão entre o Rio de Janeiro e Angola, até 1850! A construção do Estado-nação brasileiro, como o conhecemos hoje, esboçou-se fragilmente na esfera política no II Império; recuou na República Velha, de viés federalista; foi sobretudo produto do ciclo nacional-industrialista dos anos 1930.
Em inícios dos anos 1820, nas províncias do Reino do Brasil atuavam as mesmas forças centrífugas que explodiram a América espanhola em constelação de repúblicas independentes – México, Venezuela, Colômbia, Argentina, etc. Pouco serviu àquelas regiões terem suas classes exploradoras a mesma metrópole, a mesma origem, a mesma lingua e a mesma religião, ao igual do que ocorria com o Brasil.
No Reino do Brasil, ainda que vicejassem as mesmas tendências dispersivas que nos territórios castelhanos, as províncias luso-brasileiras emergiram da Independência coeridas por uma monarquia fortemente centralizadora e autoritária. Para não poucos historiadores, tal fato apresenta-se como um verdadeiro mistério histórico ou é explicado por razões superficiais e ingênuas – presença de dom Pedro no Brasil; clarividência de dom João, etc.
Saudades do Colonialismo
Quando da crise de 1820, as classes dominantes provinciais desejavam pôr fim ao governo absolutista lusitano sediado no Rio de Janeiro; nacionalizar o comércio nas mãos dos lusitanos; resistir às crescentes pressões abolicionistas do tráfico internacional de trabalhadores escravizados; tomar as rédeas de suas respectivas províncias. No Norte, Nordeste, Centro-Sul e Sul, eram fortíssimas as tendências republicanas e independentistas.
Tudo levava a crer que o Reino do Brasil explodiria em uma constelação de repúblicas, como as possessões espanholas, que sequer mantiveram os laços unitários dos antigos vice-reinados – Nova Espanha; Nova Granada; Peru; Prata. Em inícos dos anos 1820, a tendência era o surgimento de uma República Rio-Grandense, Paulista, Fluminense, Mineira, Pernambucana, Baiana, Amazônica, de dimensões territoriais impostas pela força das armas de cada região.
Entretanto, um problema maior angustiava os grandes proprietários de todo o Reino do Brasil. Como realizar a independência e não comprometer a escravidão colonial, base [apenas mais ou menos determinante] da produção e da sociedade de todas as províncias. Fortes choques militares entre as classes proprietárias provinciais e as tropas metropolitanas, na luta pela independência, e entre as primeiras, na luta pelas novas fronteiras, enfraqueceriam a submissão dos cativos, dos nativos e a manutenção do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados.
Manter o tacão escravista
As classes proprietárias do Reino do Brasil sabiam que a guerra levaria ao alistamento e à fuga de cativos, como ocorrera durante a guerra anti-holandesa, em 1630-1654, e em diversas outras ocasiões. Na América Hispânica sublevada, os cativos eram alistados desde de 1810. Os grandes escravistas luso-brasileiros tinham em mente o exemplo aterrorizador da sublevação multitudinária de cativos que dera a origem ao Haiti independente e sem escravidão, em 1804, onde as cabeças dos negreiros haviam sido cortadas aos milhares, enquanto os canaviais e casas-grandes ardiam.
Os Estados luso-brasileiros que abolissem a escravidão, por não dependerem essencialmente da instituição, acolheriam cativos fujões como trabalhadores livres, como as autoridades espanholas haviam feito, antes, e os novos estados hispano-americanos, naqueles momentos, começavam a fazer, já que carentes de mão de obra. Isoladas, as pequenas nações luso-brasileiras dependentes da escravidão não resistiriam ao abolicionismo britânico do tráfico internacional de africanos escravizados.
O comerciante inglês John Armitage, chegou ao Brasil com 21 anos em 1828. Ele escreveu uma perspicaz História do Brasil, na qual registrou os temores das classes proprietárias luso-brasileiras: “Quaisquer tentativas prematuras para o estabelecimento da república teriam sido seguidas de uma guerra sanguinolenta e duradoura, na qual a parte escrava da população teria pegado em armas, e a desordem e a destruição teriam assolado a mais bela porção da América Meridional.” Para manter-se a escravidão, manteve-se a unidade do Reino do Brasil, transformado em Império. Mudava-se algumas coisa, para que tudo seguisse como sempre, sobretudo no relativo ao braço escravizado.
O Brasil nasceu da Escravidão
O Estado monárquico, autoritário e centralizador brasileiro – ou seja, o Brasil unitário – foi partejado e embalado pelos interesses do comércio e da produção escravista colonial. A Independência unitária deu-se sob a batuta conservadora dos grandes escravistas, com destaque para os do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais, da Bahia e de Pernambuco. Os ideários republicanos, separatistas e federalistas provinciais das frageis “classes médias” profissionais, dos pequenos proprietários não escravistas, etc. foram simplesmente reprimidos.
Nos momentos tensos da independência, para apaziguar republicanos, separatistas, federalistas, foi-lhes sugerida, antes do 7 de setembro de 1822, uma eventual arquitetura política monárquica federalista e liberal, a ser discutida quando da Assembléia Constituinte. Em novembro de 1823, o truculento e absolutista Pedro I respondeu às reivindicações dos deputados constituintes provinciais com o primeiro golpe militar da nova nação. Então, fechou a Assembléia Constituinte e mandou redigir carta centralista, autoritária, de forte viés absolutista [poder “moderador”], que regeu o país até 1889. Em 1824, quando os liberais pernambucanos se levantaram em armas, sufocou a rebelião em um banho de sangue que sequer respeitou a constituição por ele apenas outorgada.
A independência do Brasil foi a mais conservadora das Américas. Os grandes proprietários escravistas das diversas províncias luso-brasileiras romperam com o Estado e o absolutismo português e entronizavam o autoritário herdeiro do reino lusitano. Cortaram as amarras com a ex-metrópole e transigiram com os seus interesses mercantis e de sua casa real. Pedro I concedeu imensa indenização ao seu pai pela independência do Brasil, que cobrou do Estado que dirigia, quando dom João morreu! Aceitou que o Império do Brasil pagasse à Inglaterra o empréstimo concedido a Portugal … para combater a independência da ex-colônia!
As grandes classes dominantes escravistas provinciais mantiveram-se unidas, sob o império do tacão monárquico centralizador, para garantir, por mais de seis décadas, a exploração do trabalhador escravizado. Com a expansão cafeicultora, milhares e milhares de africanos e africanas foram desembarcados em nossas costas, até os anos 1850. O Império do Brasil foi a última nação do mundo a abolir a escravidão colonial! Monarquia, Estado, Igreja, Justiça, grandes proprietários, todos se uniram para manter seus privilégios a custa do suor e do sangue do trabalhador escravizado.
Mário Maestri, 70, é historiador. [email protected]