Este artigo é o primeiro de uma série de duas partes sobre o movimento dos quilombos.
Quando Luiz Pinto estava crescendo, seus pais proibiam a família de falar sobre escravidão. O assunto trazia à tona memórias horríveis.
A avó de Pinto nasceu escrava. Antes do nascimento do neto, ela se jogou num rio, tirando a própria vida depois de ser estuprada pelo filho de um rico e branco dono de terras. Escravidão e racismo viraram temas tabu na casa dos Pinto, uma coleção de casas de tijolos alaranjados empoleiradas num morro do Rio de Janeiro de onde se vê a estátua do Cristo Redentor ao longe, por entre as árvores.
“Só a conheço por fotografias”, diz Pinto, um sambista de 72 anos.
Hoje, o legado da escravidão no Brasil toma muito do tempo de Pinto. Ele viaja pelo Estado do Rio de Janeiro e vai e volta de Brasília para defender os direitos de propriedade das pessoas que vivem em comunidades fundadas por escravos foragidos. Essas comunidades são conhecidas como quilombos. De acordo com a legislação brasileira, os moradores dos quilombos têm direito constitucional às terras ocupadas por seus ancestrais – e esse direito, apesar de raramente respeitado, está revolucionando silenciosamente as relações raciais do país.
No último ano, com os olhos do mundo voltados para o Brasil na expectativa da Copa, a mídia internacional fez ampla cobertura da desigualdade estarrecedora do país. As reportagens mostraram o enorme contraste entre a desolação das favelas e o brilho dos novos estádios. O que recebeu menos atenção foi o movimento dos direitos civis, que vem ganhando força em todo o país.
Entre os séculos 16 e 19, o Brasil importou mais escravos da África que qualquer outro país do continente. Em 1889, tornou-se o último país do Hemisfério Ocidental a abolir a escravidão. Hoje, há mais descendentes de africanos no Brasil do que em qualquer outro país, com exceção da Nigéria. As pessoas de cor são 51% da população brasileira, de acordo com o censo mais recente.
Como regra geral, os negros brasileiros moram em casas piores e vão para as escolas mais pobres. Eles têm os empregos que pagam os menores salários e ocupam uma parcela desproporcionalmente grande do quarto maior sistema prisional do mundo. Esse desequilíbrio, concordam em grande medida os intelectuais afro-brasileiros e os cientistas sociais do país, é resultado de uma discriminação racial que tem raízes na história escravocrata do país.
Nunca houve no Brasil nada parecido com o movimento dos direitos civis americano ou a luta contra o apartheid da África do Sul. Mas o movimento dos quilombos, apesar de estar em sua infância, desafia a enraizada desigualdade racial brasileira. Ratificada em 1988, depois de duas décadas de ditadura militar, a Constituição afirma que os moradores de quilombos têm o direito de posse permanente e intransferível sobre as terras que ocupam – algo análogo às reservas indígenas dos Estados Unidos, menos o autogoverno.
Agora, mais de 1 milhão de negros brasileiros estão exigindo do governo o cumprimento da lei que lhes confere direitos sobre as terras. Entre eles estão Luiz Pinto e sua família, que resistiram a décadas de tentativas de despejo e conseguiram manter-se instalados em seu quilombo, conhecido como Sacopã, num bairro gentrificado há tempos por brasileiros mais brancos e mais ricos.
A situação no Brasil apresenta um contraste marcante com aquela dos Estados Unidos, onde, como apontou em maio o autor Ta-Nehisi Coates em um artigo de capa amplamente lido na revista The Atlantic, o Congresso repetidas vezes se recusou a passar uma lei que demandava um simples estudo público do impacto que teriam as reparações para os descendentes dos escravos. É impensável a ideia de que o governo dos Estados Unidos pudesse ao menos considerar a entrega de milhares de pedaços de terra para comunidades negras.
Da mesma maneira, poucos são os conservadores brasileiros que gostam da ideia. Muitos deles desdenham do movimento quilombola, que consideram uma afronta aos direitos de propriedade. Houve tentativas de derrubar a legislação na Justiça. E, apesar de propor a lei, o governo brasileiro demora tanto a entregar a posse das terras que muitos dos possíveis beneficiários se perguntam se um dia vão recebê-la.
Apesar do futuro incerto, os quilombos brasileiros contêm a semente do que pode muito bem vir a se tornar o mais ambicioso programa de reparações jamais posto à prova.
Palmeiras e grandes edifícios margeiam a rua de paralelepípedos que leva ao quilombo Sacopã. Carros novos da Kia e da Vokswagen estão estacionados na rua, enquanto SUVs mais valiosos ficam protegidos em estacionamentos. Com a exceção da família Pinto, virtualmente não há negros nessa região do bairro da Lagoa.
Houve uma época em que só negros moravam nas encostas do Sacopã, em casas improvisadas de bambu e barro. Os avós de Pinto chegaram na cidade por um rio com cerca de outros 150 ex-escravos, no fim do século 19, diz ele, e se estabeleceram com a população local, longe do movimentado centro da cidade, ao norte, e das áreas residenciais de classe média que os cercaria mais tarde.
“Os quilombos viraram favelas”, diz Pinto.
Construtoras trouxeram abaixo boa parte do Sacopã nos anos 1970, quando a crescente classe média e alta começou a se mudar para o bairro, fazendo disparar os preços da terra. As autoridades locais expulsaram ou realocaram virtualmente todos os negros, muitos dos quais eram considerados posseiros. O Sacopã ficou livre para a construção de prédios que viriam a ser ocupados por brasileiros mais ricos e de pele mais clara.
José Cláudio, sobrinho de Pinto, hoje tem 50 anos. Aos 12 ele viu pela primeira vez as autoridades ameaçarem expulsar a família do quilombo pois ela não podia comprovar a posse das terras. Dois carros da PM chegaram até a entrada da propriedade. Os policiais disseram que a casa seria demolida.
Um golpe de sorte impediu que a família fosse despejada. Por acaso, a advogada da família era casada com um oficial do Exército de alta patente. Na época da ditadura, que durou de 1964 a 1985, as ordens de um general tinham muito mais peso que uma pilha de documentos.
“Nunca vou me esquecer”, disse José Cláudio ao Huffington Post. “O subtenente, ou quem quer que estivesse no comando, prestou continência para ele e ouviu: ‘Ninguém vai ser despejado daqui’. Foi nossa primeira vitória.”
A segurança da tênue ligação com o general durou apenas até o fim da ditadura. Em 1986, um ano depois da volta à democracia, os policiais voltaram ao Sacopã, dessa vez para ficar. Durante um ano, as autoridades mantiveram dois policiais na entrada do Sacopã. A cozinha ficou trancada, para que a família Pinto não fizesse festas.
“Eles nos acorrentaram aqui”, diz José Cláudio, mostrando uma corrente enferrujada que ainda está presa na janela da cozinha. “Não podíamos fazer nada.”
Quem visita o bairro hoje pode nem reparar nas casas da família, escondidas atrás de um alto prédio residencial. O único sinal é uma placa na rua atestando que a comunidade tem o status constitucionalmente protegido de quilombo.
A propriedade recebeu a certificação de quilombo em 2004, depois de um longo processo junto ao governo federal. Em vez de tentar expulsá-los, as autoridades agora garantem à família o direito de ficar, enquanto acontece o demarcamento da terra. Ainda assim, como é o caso da imensa maioria dos quilombos, a burocracia ainda os impede de ter em mãos o título das terras.
“Não acontece nada”, diz Pinto. “Não avançamos quase nada nos direitos dos quilombolas.”
Sem a propriedade formal das terras, a família vive no limbo, ainda ameaçada de despejo.
A maioria dos brasileiros associa a palavra “quilombo” ao passado, não ao presente. A palavra está em uso há séculos, desde a era colonias – do século 16 até 1825 –, quando assentamentos de escravos foragidos se espalharam pelo interior do país. O quilombo mais famoso, Palmares, chegou a ter 15 000 habitantes e durou quase cem anos, até ser destruído pelos portugueses em 1694.
Apesar de o termo ter caído em desuso no começo do século 20, nos anos 1950 defensores de um nascente movimento pelos direitos dos negros começaram a ressuscitá-lo.
O poder simbólico do quilombo chamou a atenção da ex-deputada Benedita da Silva. Em 1986, depois do fim da ditadura militar, ela foi uma dos 11 negros (entre 594 congressistas) eleitos para participar da nova Assembleia Constituinte. Ela conseguiu convencer um Congresso majoritariamente branco a deitar as fundações da legislação atual.
Segundo a lei de Benedita da Silva, os membros dos quilombos são donos das suas terras. Eles não pagam aluguel, e ninguém, não importa o quão rico, pode legalmente expulsá-los (com a exceção do governo federal, que hoje luta contra pelo menos dois quilombos certificados cujas demandas territoriais incluem uma base naval e uma estação espacial).
A chave do sucesso da lei de Benedita foi a escolha de palavras inócuas. Ela especifica que descendentes dos quilombos têm direito de posse permanente das terras que ocupam. Mas o termo “quilombo” ficou sem definição legal durante anos, dando a entender que as comunidades teria de ser capazes de provar sua ligação direta com os assentamentos de escravos foragidos. Muitos dos que votaram a favor da lei provavelmente viram na decisão um gesto simbólico, que afetaria apenas um punhado de comunidades.
Mas não foi isso o que aconteceu. Em 2003, o governo de esquerda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva expandiu a definição legal do termo “quilombo” com um decreto presidencial que caracterizou os descendentes como uma etnia. Segundo as leis brasileiras, as pessoas podem definir sua própria etnia para fins de política social. Com a nova regra de Lula, virtualmente qualquer comunidade negra poderia se certificar como quilombola, se assim quisesse a maioria de seus integrantes.
Em 2003, ano do decreto, havia 29 quilombos reconhecidos no Brasil. Em 2013, o número chegou a 2 400, ou mais de 1 milhão de pessoas, com centenas de outros pedidos de certificação pendentes.
O governo certificou quilombos em 24 dos 26 Estados, do norte tropical ao sul industrializado. Há quilombos de milhares de habitantes e outros que são compostos por algumas poucas famílias. Há quilombos em cidades, em ilhas e na floresta amazônica. As terras que esses quilombos reivindicam equivalem a 17 800 quilômetros quadrados, de acordo com o governo federal, uma área quase do tamanho do Estado de Sergipe.
Questionada se sabia que sua ideia seria aplicada de forma tão extensa, Benedita diz que essa sempre foi a intenção.
“É claro – é para isso que estamos trabalhando”, disse ela ao HuffPost. “[O artigo] não nasceu porque eu estava na Assembleia Constituinte. Ele nasceu porque existia e ainda existe um movimento negro que inclui acadêmicos, quilombolas, universidades – todos dedicados a fazer valer os direitos à terra dos negros.”
Mas o governo brasileiro tem dado poucos sinais de que vai entregar logo os títulos de posse prometidos pela Constituição. Itamar Rangel, do Incra, agência federal responsável pelos títulos de posse, diz que os constantes atrasos se devem à necessidade de negociar acordos e indenizações para os proprietários das terras. “A lei brasileira defende o direito de propriedade de todos os cidadãos”, disse Rangel ao HuffPost. “Fazer cumprim essa lei não vai ser barato.”
Até este ano, somente 217 quilombos receberam seus papeis. No ano passado, apenas três documentos de posse foram entregues, e outros três no ano anterior – os números mais baixos desde 2004.
“O movimento quilombola está pouco preparado”, diz José Arruti, antropólogo da Unicamp e estudioso dos quilombos. “As comunidades começaram a se organizar e a entender o jogo político faz muito pouco tempo.”
Guitarrista e cantor com vários discos gravados, Pinto herdou a vocação de seus pais. Seu pai tocava cavaquinho, e as músicas que sua mãe cantava quando estendia as roupas para secar estão gravadas em sua memória.
“Ela era uma artista doméstica”, diz Pinto sorrindo, ao se lembrar de uma música que sua mãe compôs sobre a chegada do homem à lua, em 1969. “Tenho várias outras músicas dela no repertório que eu toco nos meus shows. Ela não tinha coragem de gravar.”
A música ajuda na luta de Pinto de diversas maneiras. Para receber a certificação de quilombo, toda comunidade tem de passar por um processo de várias etapas, que envolve três órgãos estatais, além de um estudo realizado por cientistas sociais que documenta as características históricas e culturais específicas dos quilombos. Para os pesquisadores que prepararam o relatório antropológico do Sacopã, em 2007, a música é uma dessas características.
“Me dá muita força nessa luta”, diz Pinto. “No palco você é ouvido por milhares de pessoas, então consegue explicar sua situação.”
O coração do quilombo da família Ponto é um espaço no meio das casas. Ali os adultos se reúnem, as crianças brincam e a comida é servida em mesas de plástico com o logotipo da cerveja Itaipava. Alguns dos nomes mais famosos da música brasileira, como Zeca Pagodinho e Beth Carvalho, já se apresentaram nas festas mensais que aconteciam no Sacopã.
Nos últimos anos, porém, o governo tem proibido essas festas. Os vizinhos dos prédios reclamaram do barulho, e o estacionamento improvisado que a família montava para arrecadar um dinheiro extra desrespeitava as leis de zoneamento do bairro, que impedem atividades comerciais.
O espaço que abrigou nomes famosos do samba carioca agora está ocioso, animado só quando os 28 integrantes da família se sentam para comer a feijoada dos sábados.
Pinto diz que a lei de zoneamento que favorece os vizinhos mais ricos é injusta. “O argumento que sempre usam é que essa é uma área residencial”, diz ele. “Então não podemos fazer essas coisas. Mas tem padaria, tem bar. É um jeito covarde de nos desestabilizar, para que eles possam nos expulsar.”
O ex-senador Demóstenes Torres, do DEM, criou controvérsia em 2010 ao dizer que a história de mistura racial brasileira é “bonita”e ao negar que mulheres negras tenham sido estupradas durante a escravidão, apesar dos registros históricos (o próprio Torres tem ancestrais africanos e europeus).
As declarações de Torres, apesar de imprecisas, apontam para algumas crenças comuns no país. Como os Estados Unidos, o Brasil construiu suas primeiras riquezas nas costas dos escravos africanos. Mas, historicamente, relacionamentos interraciais sempre ocorreram com mais frequência no Brasil que nos Estados Unidos. Hoje, o Brasil é uma sociedade amplamente mista, onde os termos “branco” e “negro” têm significados diferente dos dos Estados Unidos.
Como os latinos nos Estados Unidos, os afro-brasileiros veem raça num espectro no qual a cor da pela é medida pela gradação. Em 1976, quando o censo permitiu pela primeira vez que as pessoas definissem sua raça, em vez de escolher entre quatro opções – branco, negro, amarelo (asiático) e pardo – os brasileiros ofereceram 135 termos diferentes para descrever a cor de sua pele. Os tons levavam nomes como “castanho”, “branco escuro”, “normal” e incluíam descrições como “índio negro”, “canelado”, “azul marinho” e “torrado”.
A família de Pinto tem vários tons de preto, com membros mais escuros, como Luiz, e outros de pele mais clara, como José Cláudio – que, apesar disso, se identifica como negro.
“Minha mãe casou com um branco”, diz José Cláudio. “Então às vezes os brancos dizem: `Ah, aquele cara negro’. Eles não sabem que sou negro.”
A mistura de raças generalizada dá sustento à ideia, popular entre muitos, de que o país é uma “democracia racial” na qual todas as etnias convivem harmonicamente.
Cientistas sociais e intelectuais afro-brasileiros, por outro lado, há muito descrevem essa ideia como “pensamento positivo”, apontando para um número cada vez maior de estudos socioeconômicos e estatísticas.
Segundo o censo de 2011, o mais recente, cerca de 51% dos brasileiros se identificam como negros ou de raça mista – termos que as agências governamentais costumam agrupar como simplesmente “negros”. Entre os 10% mais pobres, 72% são negros, de acordo com um estudo de 2012 do Instituto de Economia Aplicada, o Ipea.
Um outro estudo da entidade, de 2013, apontou que 70% das vítimas de homicídio são negras e outro estudo de 2010 indica que 60% da população das cadeias é negra.
A realidade pode ser ainda mais cruel do que sugerem os números. Uma pesquisa reveladora de 2011 realizada com 2500 brasileiros, liderada pelo sociólogo Edward Telles, pediu aos participantes que identificassem suas raças e os níveis de escolaridade e de renda domiciliar. Ao mesmo tempo, sem que os participantes soubessem, o pesquisador usava uma tabela com 11 tons, do branco ao preto, para identificar a cor da pele dos que responderam a pesquisa.
Quando ordenados pelas raças identificadas pelos próprios participantes, os resultados foram inconclusivos. Os brancos tinham situação econômica melhor, mas havia muita variação nos níveis educacionais e econômicos dos brasileiros de cor. Quando os dados eram organizados de acordo com a observação dos pesquisadores, porém, surgiu um padrão claro de desigualdade: quanto mais escura a pele, mais baixos os níveis de educação e renda.
“A discriminação é bem clara”, diz Telles. Ele explica que, apesar de o Brasil nunca ter passado pela segregação explícita dos Estados Unidos, a história de escravidão moldou uma sociedade em que o racismo se revela socioeconomicamente. “Você não acharia que o país tem tantos negros se só olhasse para a publicidade e para quem está na TV, a menos que esteja assistindo futebol. Se você olhar para as pessoas nas arquibancadas durante a Copa, quase todas são brancas. Como isso se compara com aquelas que estão em campo?”
Tudo isso é óbvio para José Claudio. “Quando alguém vê um negro num carro importado, pensa: ‘Deve ser jogador de futebol ou cantor!’”, diz ele. “O que sobrou para os negros foi esporte e música. Ninguém pensa: ‘Esse cara deve ser médico. Talvez advogado, piloto’.”
Essas pesquisas, porém, ainda não convencem a direita brasileira de que reparações são o caminho para tratar do racismo. Em 2004, políticos que mais tarde formariam o DEM processaram o governo Lula para tentar derrubar o decreto que estabeleceu os quilombolas como uma etnia, acusando o presidente de ter passado por cima do Congresso. (Um deputado do DEM que não quis ser entrevistado para essa reportagem afirmou que o partido já não considera a questão uma prioridade.)
No verão de 2010, a lei chegou ao Supremo Tribunal Federal, onde espera uma decisão desde então. O suspense pesa como uma bigorna sobre gente como a família Pinto. Enquanto isso, a certificação de quilombos e os documentos de posse continuam a caminhar lentamente. Mas uma derrubada do decreto de Lula provavelmente os anularia, destruindo o movimento do dia para a noite.
Avista do Cristo Redentor é muito melhor do apartamento de Ana Simas, no quarto andar de um prédio no pé do morro. Uma psiquiatra de pele clara e cabelo moreno na altura do ombro, Simas mora na Lagoa desde que nasceu, em 1952.
Ela parece uma adversária improvável da família Pinto em sua luta pelos direitos das terras. Simas se orgulha de ser politicamente progressista. Ela acredita que o racismo permeia a sociedade brasileira. E ela conhece a família há décadas. Em 1989, quando ela se casou com seu hoje ex-marido, um sambista chamado Jorge Simas, a festa do casamento foi na casa da família Pinto, no Sacopã.
Mas a amizade começou a se esgarçar em 1999, ano em que Simas foi eleita presidente da associação de moradores. Logo depois de assumir a nova posição, Pinto foi à sua casa e pediu que ela prestasse uma declaração à Justiça apoiando a reivindicação da família, com base na Lei de Terras, que era o recurso usado na época como defesa contra as tentativas de despejo.
Simas se recusou. “Foi a primeira vez em anos de amizade que senti algo estranho no comportamento dele”, diz ela. “Não sou eu quem vai decidir se a terra é dele. Ele é que tem de provar que é dono da terra, e o juiz é quem vai decidir.”
Ao se informar mais sobre o caso, ela encontrou mais motivos para ser contra a revindicação da família. Pinto quer posse de uma área designada como área de proteção, que Simas chama de “o pulmão da zona sul”. Em 2005, a associação de moradores juntou-se a um processo movido pelo Ministério Público contra a família Pinto e outros ocupantes das terras, acusando-os de danos ambientais.
Simas começou a duvidar se o Sacopã era mesmo um quilombo. “Nunca vi um quilombo de uma só família”, diz ela. “Todos os outros quilombos de verdade, como o Jongo da Serrinha, têm muitas famílias, não uma só.”
Curiosa sobre as origens do Sacopã, ela procurou a certidão de casamento dos pais de Pinto. “Nenhum dos dois nasceu ali”, diz ela, mostrando uma cópia do documento, que identifica o local de nascimento de ambos no subúrbio de Nova Friburgo. “O que eles estavam fazendo num quilombo aqui se são de Nova Friburgo?”
Simas não é a única a questionar o que é, afinal de contas, um quilombo. Apesar de a lei brasileira dar mais importância à cultura de um grupo do que à sua história, essa ideia ainda tem de chegar à maior parte da população.
Claudio Girafa é um engenheiro civil de 57 anos, branco, que vai ao bairro de Pinto nos finais de semana para assistir jogos de futebol no apartamento do irmão. Ele diz que é importante que os quilombos provem suas raízes históricas. “Há muitos questionamentos sobre se [o Sacopã] realmente era um quilombo”, diz ele. “Não sou contra a preservação dos quilombos, em princípio, mas acho que tem de ser bem provado, pois afeta propriedades que foram compradas mais tarde.”
Os pesquisadores responsáveis pelo relatório antropológico de 2007 que confirma o status de quilombo do Sacopã sabiam que os pais de Pinto nasceram em Nova Friburgo. O casal levou uma vida itinerante, de cidade em cidade, de fazenda em fazenda, em busca de trabalho. No final dos anos 1920 eles se estabeleceram no morro da Lagoa, onde a família está até hoje. O pai de Pinto foi um dos que trabalharam na construção da Rua Sacopã, a rua que sobe a encosta.
Mas Pinto diz que seus avós já estavam naquela área desde aproximadamente o fim do século 19, buscando abrigo em uma caverna que fica dentro do território do quilombo. E, apesar de os pesquisadores não terem sido capazes de documentar a presença da família ali antes dos anos 1920, eles escrevem no relatório que as histórias familiares “nos parecem muito prováveis do ponto de vista da ciência histórica”.
O que importava para os antropólogos era a memória coletiva da família, que apontava a existência de uma identidade de grupo formada por uma história de fuga da escravidão – uma etnia quilombola.
A importância desse tipo de identidade de grupo pode escapar aos brasileiros que não têm interesse direto na questão dos quilombos. Como muitos brasileiros, quando questionado se o Brasil é um país racista, Girafa diz que não. Mas ele acredita que programas como o de reparação aos quilombolas só exacerbam as tensões raciais, porque cometem injustiças contra os brancos. “Ainda existe discriminação, sim”, diz ele. “Mas o que estão fazendo só piora as coisas.”
Pinto vê as coisas de outro ponto de vista. Para ele, o racismo não é só ser visto com desconfiança nos bairros ricos, ou ter de entrar pela porta de serviço porque as pessoas acham que ele é um empregado – humilhações que muitos negros brasileiros dizem já ter sofrido.
Racismo, para Pinto, significa que seus ancestrais foram escravos e que, ao serem libertados, foram vítimas. Sua avó foi estuprada. Seus pais tiveram de morar na favela. O racismo significa que seus pais transformaram a favela em um lar, do qual as autoridades tentaram despejá-los porque os brancos queriam morar ali.
“O racismo no Brasil é instituicional”, diz Pinto. “Está em todo lugar. É difícil confrontar.”
De sua parte, Pinto espera que o movimento quilombola jogue luz sobre as desigualdades raciais do país. Ele diz que está decepcionado com baixa adesão de afro-brasileiros nos protestos contra os gastos com a Copa, que foram em sua maioria liderados por brancos de classe média.
“O movimento quilombola ainda é muito tímido”, diz Pinto. “Somos praticamente invisíveis para a sociedade. Se não dermos as caras nas ruas, nos protestos, vamos ser esquecidos. Já nos esqueceram.”
Sua família protesta resistindo às ameaças de despejo e recusando ofertas de milhões de reais para deixar o lugar que sempre chamaram de sua casa.
Mas Pinto se sente invisível em seu próprio bairro. Numa recente caminhada com seu neto, eles pararam numa praça para descansar. Pinto diz que eram os dois únicos negros ali.
“Eu sinto o racismo com muito mais força porque estamos num lugar onde só vive gente com dinheiro, e gente com dinheiro é branca”, diz ele. “O que eu entendo muito bem é que somos negros em um lugar reservado para brancos.”
Esse projeto foi possível graças à bolsa do Social Justice Reporting for a Global America, do International Center for Journalists
Fonte: Brasil Post