Brasil: perda, esbulho e opacidade

O Brasil hoje é uma sociedade em amplo processo de movimento onde grupos sociais, classes, setores profissionais, grupos identitários se movem em busca de bem-estar e de maior dignidade.  A velha sociedade hierárquica, autoritária e desigual é batida em várias frentes simultâneas. A nova dinâmica social envolve, para além da redistribuição de renda, amplos debates sobre justiça social, gênero, opção sexual e discriminação (versus inclusão) racial e regional. Mais recentemente, um pouco em função dos debates sobre os programas sociais da Era PT e, muito especialmente, da relação entre voto e benefícios sociais (como o Programa “Bolsa Família” e o debate sobre cotas raciais e sociais), emergiu um forte sentimento de menosprezo regional, culminando em casos notórios de ódio, preconceito e racismo. Ou seja, a velha sociedade resiste e luta pela manutenção, não do status quo, mas da volta nostálgica de uma sociedade desigual idealizada como os “bons velhos tempos”.

Por Francisco Carlos Teixeira Da Silva, do Correio do Brasil 

A cultura tradicional posta em xeque:

Embora expressões corriqueiras de desprezo social e racismo (do tipo “hoje é dia de branco”; “baianada”; “trabalho para preto”, “programa de índio”, “trabalho de mouro” etc…) estejam arraigados na cultura brasileira, até muito recentemente tais manifestações não assumiam suas conexões políticas e/ou eram socialmente aceitáveis como “cultura popular”, força de uma tradição. A novidade reside neste momento em desqualificar o agir político de grupos e setores sociais em ascensão a partir de tais chavões culturalmente pertencentes ao mundo daqueles que sempre se mantiveram no Brasil como uma elite dirigente, monopolista de direitos e, no mais, de privilégios.

Por esta via, os grupos em movimento – alguns em notável ascensão social, envolvendo cifras e grandezas da ordem de milhões de pessoas – constituem-se em cerca de 40,3 milhões pessoas ingressaram no grupo “C” do universo social brasileiro. Enquanto isso outros 36 milhões saíram da pior pobreza. No seu conjunto, ingressaram na cidadania mais ampla, constituindo uma nova classe de cidadãos, 103 milhões de pessoas [1] -, num cenário de transformação social intenso, e considerado por organismos e entidades internacionais como fenômeno modelar de inclusão social – malgrado um resistente bolsão de pobreza ainda existente. Da mesma forma, a taxa de mortalidade infantil recuou imensamente, tirando o país de um cenário medieval, enquanto a longevidade aumentava. Da mesma forma, o número de matrículas, da escola básica até as universidades, multiplicou-se por quatro, mesmo onde – pela distribuição constitucional – cabe aos municípios a ação central.

Assim, o Brasil assistiu a um intenso movimento de inclusão social, econômica, educacional, digital – seja com computadores ou telefones – e integração às estruturas maiores da sociedade, tais como a educação básica e universitária (com programas como o PROUNI e o Pronatec) até a um atendimento de 75 milhões de pessoas no SUS. Em alguns casos, como os programas de AIDS e de Saúde da Família, constituíram-se, também eles, em modelo internacional. Tal fenômeno social de inclusão mexeu profundamente com as estruturas tradicionais da sociedade brasileira. A realização, massiva, de concursos públicos nos setores da Justiça, tais como o Ministério Público e outras entidades de defesa dos Direitos Humanos, alistou uma nova geração de jovens advogados familiarizados com o debate e a defesa da cidadania, o que se traduziu em ações concretas de defesa dos Direitos Humanos, contra a corrupção e o uso de cargos em auto proveito – embora, muito, muito mesmo, ainda tenha que ser feito. Muitas vezes com apoio do Parlamento – como no caso da Lei Maria da Penha – outras vezes com a decisiva judicialização da política via o STF – como no caso da União Civil de Gays e na questão do aborto médico – a sociedade brasileira avançou em temáticas sensíveis e as instâncias políticas e jurídicas passaram, com certa frequência, a acatar as demandas de direitos e de recusa às ofensas sociais de velho tipo vigentes no Brasil.

Foi desta forma que instituições tradicionais da sociedade brasileira – da empresa, o local de trabalho, passando por shoppings centers até os estádios de futebol – foram chamados à responsabilidade por diferentes ofensas à cidadania. Velhos e repetidos preconceitos, como no caso do jogador Aranha, do Santos, em 2014, num espaço dito “da virilidade” por excelência (o campo de futebol, que deveria ser um “espaço livre” para toda e qualquer fala, sem limitações, conforme a velha cultura), explicitaram a ponta do iceberg do preconceito no Brasil. Por toda parte, incluindo as relações nos locais de trabalho (assédios, ofensas morais e sexuais) manifestações de sexismo, machismo, misoginia e homofobia passaram a frequentar os noticiarias e causar polêmicas intensas sobre a criminalização ou não de tais ofensas. Ou seja, pobres, pretos, gays, mulheres, nordestinos passaram, com mais ativismo, a recusar as ofensas baseadas numa falsa concepção de cultura tradicional.

No entanto, o entendimento de diversas instancias do Poder Executivo (e com notável resistência da instituição policial, incluindo as guardas municipais, as PMs e a própria PF) ainda resiste a aceitar a natureza racista da maioria dos atos de ofensas. É notável no caso da homofobia, quase sempre vista como “agressão”, quando é registrado o fato policial, recusando-se atestar a natureza odiosa de crimes como racismo, misoginia e homofobia.

Tal compreensão, aceitação e acima de tudo a ampla e crescente visibilidade do debate sobre a criminalização de ofensas sociais – como o atual debate sobre a PEC da Homofobia – mobilizou setores até então calados da sociedade – como na debochada “Parada Hetero” no Rio de Janeiro – que se sentiram de alguma forma “ameaçados” pela democratização dos direitos sociais e, depois, civis de amplas parcelas da população brasileira em ascensão.

Assim, apontamos alguns movimentos altamente perturbadores da, até então, lamentavelmente estável estrutura social brasileira. Lado  a lado com a ascensão de novos grupos sociais – há uma ampla discussão sobre a natureza de tais grupos, envolvendo Marcio Pochmann e Marcelo Neri – deu-se a implantação de novos direitos e novas demandas sociais e cidadãs – como no caso da PEC do Trabalho Doméstico.

Parafraseando um poeta, tais novos grupos sociais não “querem só comida”: querem também respeito. Tal respeito envolve reconhecimento, e auto reconhecimento, de novas identidades, construídas a partir de uma nova cultura “nacional”, “mestiça”, “negra”, “periférica” ou “da comunidade”, como se expressa no velho e bom grito de guerra: “só quero ser feliz, na favela que eu nasci!”.

Transformação social e “perda”:

Por outro lado, a rápida e incontestável ascensão dos novos grupos – em grande parte negros, mestiços e periféricos – criou em setores estabelecidos da sociedade, em especial nas classes médias baixas, nos funcionários públicos e dos setores privados – uma forte sensação de insegurança e, no limite, de perda. Grande parte do prestigio e da sensação de “ser alguém” na sociedade brasileira, gozado pelos setores médios, advinha da sua imensa superioridade de chances e oportunidades sobre a massa de desvalidos que compunham a maioria da sociedade brasileira.

Particularmente a escola, os hospitais e o serviço público constituíam-se em estruturas monopolizadas pelas antigas classes médias, que assim eram contempladas no âmbito do pacto oligárquico dominante. Os novos e  massivos programas de “Ações Afirmativas”, incluindo o Bolsa Família, os novos sistemas de cotas sociais e raciais, a melhoria do salário mínimo, a expansão do crédito e do microcrédito e os diversos programas de acesso à Educação, deram aos velhos setores de classes médias a forte sensação de (1) por um lado, de financiar, via impostos, a ascensão social dos setores desvalidos da sociedade e (2), por outro lado, ficarem, eles mesmos, excluídos injustamente da agenda social direcionada aos pobres do país. Assim, a ascensão dos grupos subalternos majoritários da nação, em vez de ser saudade como uma vitória, foi acompanhado pela forte sensação – estatisticamente não comprovados – de perda e de subalternização social das velhas classes médias devido a ação do Estado e, por fim, (3) uma percepção raivosa que tais mecanismos de promoção social são, intrinsecamente, injustos e não buscam a igualdade de oportunidades e sim a eternização do PT no poder.

Em vez de criticar o sistema de imposto de renda e de impostos indiretos vigente, e assumir uma agenda tributária que enfatizasse a tributação das grandes fortunas, dos lucros extraordinários e das transações financeiras, tais setores da classe média – açulados pela mídia empresarial – criticam o “gigantismo” do Estado e os programas sociais e acusam os grupos sociais desvalidos de “preguiçosos” e “aparelhados”.

Este “círculo viciado” explicita a incompreensão dos setores médios da população sobre os próprios mecanismos de exploração e de dominação, centrando suas críticas na ascensão dos pobres, em vez de compreender os mecanismos regressivos de transferência de renda no interior da sociedade. A isso chamamos de “experiência não vivenciada” ou “não-experiência de vida”.

Por este caminho, abrem-se duas vias de desqualificação dos movimentos de ascensão social, considerados ora falsos ou “maquiados” os progressos vividos pela sociedade brasileira, ora – e isso é o mais terrível – voltados para pessoas e grupos sociais “preguiçosos”, inferiores de alguma forma (por serem racialmente ou regionalmente diferentes do antigo núcleo duro branco e organizado sob a forma da família paternalística tradicional). Emerge aí uma construção abstrata, conservadora, desqualificadora das massas sociais em ascensão como incompatíveis com um “mundo do trabalho” duro, sério, competente e, no mais das vezes, branco, vivido como experiência única pelas velhas classes médias.

Por estes vieses, a Educação gratuita, principalmente o ensino universitário e o sistema de cotas sociais e/ou raciais, o seguro desemprego, o Programa Bolsa Família, ou “Mais Médicos” ou “Ciência Sem fronteiras” não mereceriam – por seus “preços” astronômicos ( avaliados sem qualquer referência estatística e com erros brutais de informações básicas ) e seus resultados pífios ( também sem avaliações estatísticas corretas e contrariando as realidades dos programas sociais )  – serem sustentados via impostos, por estes segmentos “trabalhadores” da antiga classe média. Aqui, a sensação difusa de “perda” – expressa nas manifestações diversas de mal-estar contra o acesso das novas massas de consumidores aos aeroportos, shoppings, restaurantes, cinemas, ou mesmo na compra de bens duráveis e da casa própria – torna-se em pura sensação de roubo e esbulho, patrocinado a partir das instâncias do Estado “aparelhado” pela “esquerda”, dita “comunista” e mesmo “bolivariana” (fora os demais epítetos simplesmente ofensivos e marcados pelo completo “non sense”).

Neste caso, tais segmentos médios, em suas origens eles próprios populares, optam por uma narrativa falseada e por uma “memória recente” inteiramente falseada e reinventada em direção a um tempo passado melhor, marcada por uma densa opacidade da história do tempo presente no Brasil. A maioria de tais segmentos “ameaçados” não consegue analisar sua própria experiência, sua vida vivida, e optam por uma memória não-experiência e tomada de setores dominantes e oligárquicos da sociedade, no mais das vezes expresso nos segmentos economicistas da mídia empresarial. Na verdade, a opção por uma análise concreta dos processos de geração de riquezas, de sua distribuição – como a relação salário, produtividade e impostos -, é abandonada em favor de simplificações ampliadas de lugares comuns, do tipo “são pobres porque são vagabundos”. Tal processo – perda imaginária, sensação de esbulho e opacidade experiencial de vida – resultam num processo de revolta contra os grupos sociais em ascensão (que se expressa em claras manifestações de racismo e ódio regionalista) e contra o Estado liberal-representativo, já considerado “uma ditadura”.

Da “perda” ao ódio à democracia:

Em tal contexto – repito, perda imaginária, esbulho e opacidade da própria experiência – tais segmentos descobrem, para sua tragédia final, que não são mais a maioria da sociedade. Na verdade, nunca foram a maioria da sociedade.

Constituíam-se numa “maioria” institucional construída pela exclusão até recentemente da massa de brasileiros e pelo controle e aliança das classes médias com as oligarquias tradicionais, que em troca da liberdade de exploração das massas não contempladas pelo Estado, deixavam os espaços de privilégios deste próprio Estado para tais setores da classe média. Assim, perplexos diante de um fenômeno inusitado – não são a maioria da nação e a agenda por eles proposta não é a agenda dominante – partem para a própria negação do regime liberal-representativo.  Não podem mais, em tais condições, considerar a democracia liberal-representativa, incluindo os seus partidos (“nenhum partido nos representa”, como foi colocado nas ruas em 2013), como seus representantes ou como instituições válidas para a expressão de suas expectativas e de sua agenda.

Assim, com a naturalidade dos revoltados, tais segmentos, sempre capazes de ampla mobilização (já que controlam instâncias do Estado e da mídia) e de acesso aos meios de comunicação que dizem, por motivos vários, exatamente aquilo que tais grupos querem ouvir, fortalecendo, em feedback, as certezas opacas da não-experiência. Passa-se, desta forma, para a defesa da abolição do Estado liberal, para a culpabilização dos pobres pela sua própria pobreza e pelo empobrecimento da política – em face do empoderamento dos pobres -, a distinção e diferenciação da cidadania  em categorias de maior e menor legitimidade, com a recusa de direitos e de identidades alternativas e uma valorização de critérios únicos de definição de família, de masculino e de feminino, de dignidade da pessoa e de bem-estar social. Em suma, toda a alteridade e pensamento crítico são afastados como “esquerdismo” ( e epítetos afins ), resvalando para explicações do tempo presente inteiramente opacas e acríticas, incluindo a defesa de golpes militares e de intervenções estrangeiras como última garantia de um mundo perdido.

Perda, esbulho e opacidade foram concretamente os sentimentos dominantes em vastos setores  da sociedade alemã num tempo intenso de mudanças. Classes médias, setores burocráticos do estado e pequenos proprietários, assustados com a ascensão do proletariado e de seus representantes, identificaram na Constituição democrática de Weimar de 1919 a fonte de seus infortúnios. Foi quando vastos setores da sociedade marcados pela perda imaginária optaram por Adolf Hitler.

[1] Ver Ascensão social recorde forma o novo Brasil classe média.

Francisco Carlos Teixeira Da Silva, é  professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

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