Pode parecer estranho mediante a crescente produção acadêmica de artigos, monografias, dissertações e teses (CRUZ, 2013; 2017; GOMEs, 2017; SANTOS, 2010; 2013; 2022; FERREIRA, 2024; SANTO, 2023) sobre cabelo crespo penteados afro dizer que este tema é marginalizado na universidade brasileira. No entanto, a crescente produção acadêmica sobre capilaridade crespa, em larga escala, escrita e defendida por mulheres que se autodeclaram negras não significa que falar e pesquisar sobre nossa estética e construção de corporeidade, em uma sociedade marcada pelo racismo e legado da escravização, é um tema de alta recepção no universo acadêmico.
Como boa ouvinte que sou já tive meus ouvidos invadidos por falas que dizem ”Eu não aguento mais este assunto de cabelo, eu não aguento mais tantas bancas na pós-graduação abordando esse tema!”. Ora, mas quando os temas repetidos eram outros e escritos por outros corpos não me recordo de ouvir com tanta “franqueza” o mesmo! Me pergunto e penso: “realmente o cabelo é um tema repetitivo e desinteressante?Ora, o cabelo de negro não pode ser visto a partir de um ponto de vista que esteja permeado de imaginação sociológica, criatividade científica e que enquanto tema pode enriquecer ainda mais as reflexões das ciências humanas no campo acadêmico.
Este fenômeno de dizer que nós nos repetimos nas pesquisas acadêmicas, que sem dúvidas, são localizadas e corporificadas, na realidade reflete nada mais, nada menos que o espelho de Narciso branco. Novamente, indiretamente o processo de deslegitimar nossos interesses de pesquisa está carregado de vieses, preconceitos e hierarquias de poder, e, sobretudo da perspectiva brancocêntrica.
Preciso argumentar que se as falas que afirmam “não aguento mais este tema” não gerassem efeitos reais, caro(a) leitor(a), eu não me daria ao trabalho de escrever estas linhas. Mas como pesquisadora do tema cabelo o que tenho observado é que um número expressivo de pesquisadoras negras se sentem coagidas, novamente silenciadas como Anastácias (KILOMBA, 2019), a não seguirem com o tema. E ouvem com frequência “No mestrado tudo bem escrever sobre isso, mas no doutorado trate de fazer sobre um tema que realmente traga reflexão!”, disse-me uma colega. Outras falas e posturas racistas de quem controla a caneta de aprovações nas seleções de bancas também poderiam ser mencionadas, mas repeti-las pode me trazer mais gatilhos dos que já vivenciei e certamente passarei em um futuro breve.
Qual é o peso da fala e da decisão racista sobre o que podemos produzir? O que ocorre quando deixamos de escrever sobre este fenômeno social que é a construção da capilaridade para as pessoas negras? Neste sentido, pergunto:
Quem falará de nossas madeixas?
Quem terá o artigo aceito na revista de qualis alto e abordará como tema de estudo a nossa estética?
Quem terá o direito de pensar sua posição na pesquisa quando estuda um tema que lhe atravessa e que em diversos momentos da vida provocou dor, vergonha, tristeza, confusão dentre outras emoções que perturbam e podem gerar confusão?
Em relação à temática dos cabelos, da construção da corporeidade negra, eu tenho me dedicado a escrever sobre o tema desde a monografia de graduação em Ciência Sociais, passando pelo mestrado em Relações Étnico-raciais e seguindo pelo doutorado em Ciências Sociais. Em nenhum desses cursos o tema foi repetitivo, tratar das manipulações dos cabelos, dos processos de construção identitária não foi enfadonho, pelo contrário, o campo sempre se mostrou como um espaço de muitas perguntas, problemas, conflitos disputas, reconhecimentos e possibilidades de caminhos interpretativos diversificados.
Dessa maneira, reafirmo que em nenhum momento meus trabalhos foram repetitivos porque apesar do cabelo ser o elemento mobilizador das minhas indagações as minhas reflexões se encaminharam por trilhas distintas. Na monografia “Para ficar bonita tem que sofrer!: (SANTOS, 2010) dissertei sobre os processos de construção da identidade negra a partir do cabelo, na dissertação “Para além da estética: uma abordagem etnomatemática para a cultura de trançar cabelos nos grupos afro-brasileiros” (SANTOS, 2013), abordei a presença da matemática no entrelaçar dos fios e na tese “Trancista não é cabeleireira!”: identidade de trabalho, raça e gênero em salões de beleza afro no Rio de Janeiro” (SANTOS, 2022), me concentrei em expandir a noção sobre o trabalho das trancistas afro que popularmente são confundidas com as cabeleireiras e sofrem de um frequente apagamento e desvalorização de seu papel no fortalecimento da autoestima de pessoas negras. Nesta direção, posso dizer que os três trabalhos mencionados tinham o cabelo como elemento central, especialmente os cabelos trançados, contudo, as reflexões e contribuições realizadas foram diversas
Abro um parênteses para acentuar a força da dissertação de mestrado que apresentou o cabelo trançado crespo como espaço de construção de saber-aprender e produzir matemáticas. Um trabalho comprometido com o ensino de matemática e efetivação da Lei federal 10.639/2003 e que foi usado no cinema, na justiça, nos currículos e em outras mídias e instituições.
Agora pergunto, se cabelo não é importante porque essa escrita feminina negra segue sendo tão requisitada pelas pessoas negras e pelos movimentos e instituições que abraçam a diversidade e o antirracismo?
Por esse motivo, afirmo que cabelo é uma tema marginal como diz a minha amiga Denise Costa da Unilab, mas, sobretudo, é marginal para quem nunca teve suas madeixas comparadas as vassoura de piaçaba ou foi animalizado(a) por deixar os cabelos soltos para sentirem as forças dos raios solares.
Escrever trabalhos acadêmicos sobre cabelo e ter uma trajetória de pesquisa sobre o tema não é um lugar confortável como tenho vivido e observado, mas é um posicionamento necessário, é resistir às forças que nos condenam somente no olhar e posteriormente nas canetas.
Após o doutorado, eu pensei que escreveria alguns artigos resultantes da tese e depois me encaminharia para pesquisar e discorrer sobre outros temas. Mas acontece que sempre sou convidada, na verdade, lançada a seguir nas reflexões sobre cabelo, tranças, trancistas e as matemas presentes nos trançados. Sou jogada frequentemente num emaranhado de fios, falas, criações e provocações que me fazem buscar respostas e nelas estou redigindo meu primeiro livro e pensando também um artigo sobre movimento das mãos das trançadeiras, antropologia da técnica e os esquemas de modelagem matemática que tem sido feito para falar da presença dessa ciência no entrelaçar. Então pensar no cabelo, gestos, tranças como diz a pesquisadora Mariane Valério em sua dissertação é um “chamado ancestral” e um tema inesgotável!
Para finalizar, pergunto quais pesquisas acadêmicas você já leu que investigaram o tema dos cabelos crespos? Se você não leu, deixarei abaixo uma lista de livros e trabalhos acadêmicos que abordam a temática e foram escritos por mulheres negras comprometidas com narrativas outras, narrativas nossas e contracoloniais.
Livros
CRUZ, Denise Ferreira da Costa. Que beleza busca Vanda?: Ensaios sobre cabelo no Brasil e em Moçambique. Belo Horizonte: Letramento, 2019. 192p.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo de identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo no cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MATTOS, Ivanilde Guedes de. Estética afirmativa: corpos negros e educação física. 2.ed. Curitiba: Appris, 2021.
XAVIER, Giovana. História Social da Beleza Negra. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021
Dissertações de Mestrado
BRITO, Elane Pereira. “COM AS TRANÇAS EU ME TORNO MAIS NEGRA!”: Experiências estéticas e políticas de mulheres trançadeiras em Marabá.. 2023. Dissertação de Mestrado em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Belém do Pará, 2023.
COUTINHO, Cássia Ladi Reis. A estética dos cabelos crespos em Salvador. Dissertação de Mestrado em História. Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2010.
EUGÊNIA, Sara França. Raízes que sustentam: narrativas de transição capilar e identidades de mulheres negras – da violação à efetivação de direitos. Dissertação de Mestrado em Direitos Humanos. Goiás: Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021.
GOMES, Larisse Louise Pontes. Posso tocar no seu cabelo? Entre o liso e o crespo: Transição capilar, uma (re) construção identitária? Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.
LUCINDA, Maria da Consolação. Subjetividades e fronteiras: uma perspectiva etnográfica da manipulação da aparência. Dissertação Mestrado em Antropologia Social, UFRJ, Rio de Janeiro, 2004.
PAULA, Mariane Valério de. Fazer e pensar tranças: técnicas e gestos de uma arte dos cabelos. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2023.
PAIXÃO, Marli Madalena Estrela. Uma rosa para meus cabelos crespos: experiências estéticas e políticas da imagem. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Universidade Federal do Maranhão, São Luís do Maranhão, 2008.
RIBEIRO, Bárbara Rebouças Marinho. Identidade, Beleza Negra e Racialização: A trajetória de vida de Marly Paixão. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 024.
SANTO, Elisa Hipólito do Espírito. Preciosa: a trajetória de uma trancista angolana em São Paulo e a racialização dos processos migratórios. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo 2023.
SANTOS, Ana Paula Medeiros Teixeira dos. Tranças, turbantes e empoderamento de mulheres negras: artefatos de moda como tecnologias de gênero e raça no evento Afro Chic (Curitiba-PR). Dissertação de Mestrado. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba (PR), 2017.
SILVA, Paloma da Silveira da. Memória, ancestralidade e vivências de mulheres negras trançadeiras como caminho metodológico para uma interpretação geográfica dos territórios e da sociedade. Dissertação de Mestrado em Geografia. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, 2023.
Tese de Doutorado
FERREIRA, Daniela Alexandre. “Quem trança uma vez não deixa de trançar nunca mais”: raça, gênero e sociabilidades em um salão afro. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2024.
ROCHA, Neli Gomes. Crespografia, a semiótica capilar crespa. Educação e experiência estética afrocentrada Brasil-Moçambique. Tese de Doutorado em Educação, Curitiba, Paraná, Universidade Federal do Paraná, 2023.
SANTOS, Luane Bento dos. Trancista não é cabeleireira!”:identidade de trabalho, raça e gênero em salões de beleza afro no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.
SILVA, Célia Regina Reis da. Crespos insurgentes, estética revolta, memória e corporeidade negra paulista, hoje e sempre. Tese de Doutorado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.SOUSA, Raissa Lennon Nascimento. Entrelaces da resistência: Comunicação e práticas emancipatórias de mulheres negras trançadeiras da Amazônia. Tese em Comunicação, Cultura e Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém do Pará, 2023.
Luane Bento dos Santos – Professora da Universidade Federal Fluminense. Trabalha no Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional. Pesquisadora de Estética Negra e Relações Raciais
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