Campeão na Grande Rio, Exu sem estereótipos influencia artistas, pensadores e jogadores de futebol

Em um carnaval fortemente marcado pela temática afro, uma figura em especial causou impacto no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. A imagem do orixá Exu apareceu “no topo do mundo” em uma alegoria da Acadêmicos da Grande Rio, impondo-se como o grande destaque da escola campeã deste ano — e, para muitos, do carnaval como um todo. A proposta dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora subverteu os estereótipos erroneamente associados à divindade presente nas religiões de matriz africana.

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Se o Exu do imaginário cristão é tratado como o diabo, sendo alvo de preconceito e perseguição, o da Grande Rio reúne as qualidade que o tornaram central no pensamento afro. Responsável por fazer a ponte entre os humanos e os orixás, ele é múltiplo e contraditório, simbolizando os caminhos e as encruzilhadas. Sua energia também está ligada à comunicação e à fertilidade, além de dar proteção a espíritos mal-intencionados. Toda uma potência que extrapola o carnaval e vem influenciando artistas e pensadores em diversas áreas.

— É importante começar a falar dele para pensar a Humanidade, o ensino, a filosofia, a História, a comunicação, a vida. Quando Exu é associado ao diabo cristão, o que a colonização está fazendo é colocar um pensamento subversivo, potencial para se pensar outras ideias de construção do mundo, como algo inferior, algo errado. Queríamos mostrar a influência que extrapola o carnaval, sua energia nas ruas, nos malandros, na arte contemporânea… Ele é caminho, arte e intelectualidade — diz o historiador Vinicius Natal, que trabalhou com Haddad e Bora na pesquisa do enredo da Grande Rio.

Integrante do Meta Meta, grupo que ressalta signos da música de influência africana no mundo e cujo nome significa “três em um” em iorubá, o músico e artista plástico Kiko Dinucci acredita que “Exu representa a plenitude do ser brasileiro”:

— Ou seja, quando o brasileiro se enxergar em Exu, coisas acontecerão, um portal transformador se abrirá e fará com que os fantasmas do Brasil colonial, racista e da violência percam força — diz Dinucci, compositor (em parceria com Edgar) da música “Exu nas escolas”, cantada por Elza Soares e incluída no álbum “Deus é mulher”.

Na música, outro artista identificado com o orixá é Baco Exu do Blues (pseudônimo de Diogo Moncorvo), que já contou em entrevistas ter orgulho de incluir o orixá na sua persona artística. Segundo ele, depois que colocou Exu no nome, sua vida começou a mudar positivamente.

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O jogador de futebol Paulinho, atacante do Bayer Leverkusen, também se esforça para desfazer o preconceito contra o orixá, exaltando-o em suas redes sociais com posts como “que exu ilumine o Brasil” e “nunca foi sorte, sempre foi EXU”.

Com um trabalho fortemente marcado pela figura de Exu, o artista plástico Mulambö colaborou na concepção do desfile da escola de samba campeã carioca. São dele as bandeiras dos casais de porta-bandeira e mestre sala — uma “bandeira mulamba”, que tem um búzio no centro. Ele próprio desfilou na Sapucaí com uma vassoura (símbolo histórico do trabalho) transformada em tridente.

— O desfile não tentou consertar um visão, ele apresentou uma força que um Brasil sempre conheceu e que agora um outro Brasil também pôde ver — opina o artista.

Mulambö diz tirar a força de sua arte do espaço “entre lugares para estar em mais de um lugar”:

— E isso é Exu. O movimento, os tempos se cruzando e se comendo e fortalecendo.

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Outro artista identificado com Exu, Luang Senegambia acredita que o orixá sempre esteve “no topo do mundo”. Para ele, Exu é uma figura anárquica, até mesmo dentro do conjunto das entidades afro-brasileiras.

— Como homem negro, vivendo no Brasil, sendo vítima cotidiana do olhar desconfiado e violento da sociedade em geral, é muito importante ter Exu sendo exposto na sua verdadeira potência e beleza — diz.

Crescendo na Lapa, ele passou a ver vítimas da desigualdade urbana como descendentes diretos da linhagem da divindade. O artista carioca trabalha com fotomontagens, a partir da abordagem da iconografia da religiosidade e cultura iorubá.

— Assim como Exu, os moradores de rua também sofrem preconceito — diz ele, que exibe suas obras no Instagram (@senegambia81). — Quando fui crescendo e aprofundando meu conhecimento sobre os deuses da cultura iorubá, fiquei muito fascinado por essa figura, que simboliza tanto o caminho quanto o caminhar, que mostra por onde devemos ir, mas nos permite, em absoluto, que tomemos as nossas próprias decisões.

Conhecida por seu trabalho sobre gênero, sexualidade, decolonialidade e interseccionalidade, a performer paraense Rafael Bqueer saiu como destaque do queijo do primeiro carro de abre-alas da Grande Rio:

— Sou uma artista preta e não binária, acredito na justiça dos orixás. Não existe o diabo nas religiões de matrizes africanas, o diabo é um reflexo do racismo e da violência do homem branco. Queremos Exu na educação de uma nação sem preconceitos e que o povo preto tenha respeito.

Para o escritor, pedagogo e pesquisador Luiz Rufino, o desfile da Grande Rio é um divisor de águas:

 — Exu é um signo que foi interditado e amordaçado, sofreu terrorismo por parte da agenda colonial dominante. Essa tentativa de cancelamento, para usar um termo bem atual, não é à toa. Então, trazer a sua figura para o centro é revolucionário. Ele sempre esteve presente nos carnavais, mas nunca como o mote, como destaque. Exu como enredo é uma novidade como leitura política e poética.

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Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Rufino é autor de “Pedagogia das Encruzilhadas” (Mórula), que propõe uma educação alternativa a partir de conceitos extraídos de sabedorias e viveres afro-brasileiros.

— Muito se fala da encruzilhada como uma sinuca de bico, mas é um equívoco — explica. — A encruzilhada é a chegada para quem não quer ser o centro. É uma dimensão que marca um mundo que não pode ser definido pela mesma via. É pensar as diversas relações, o diálogo e o inacabamento.

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