Desde 1984, o sambódromo da Marquês de Sapucaí é palco do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Lá, foram protagonizados desfiles antológicos como: Kizomba, Festa da Raça, da Vila Isabel (1988); Ratos E Urubus… Larguem Minha Fantasia, da Beija-Flor (1989); Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão?, da Paraíso do Tuiuti (2018); História para ninar gente grande, da Mangueira (2019).
A passarela do samba carioca foi trajeto de personagens como Joãozinho da Gomeia, o grupo musical Ganhadeiras de Itapuã, e outras figuras negras resgatadas, homenageadas e apresentadas para o público. No que tange as civilizações e personalidades endógenas ao continente africano, a historiografia tem um papel fundamental para a construção dos enredos das escolas de samba, visto que várias obras constituíram-se como base para a elaboração dos mesmos. O historiador britânico John Fage (2010, p.77), aponta que é a partir da década de 1940 que surge uma geração de intelectuais africanos com pesquisas focadas no passado continente. Entre os diversos temas que passaram a ser explorados com maior frequência pela historiografia, está o Reino de Cuxe – região que também é conhecida como Núbia .
Na região cuxita foram desenvolvidos três grandes assentamentos humanos, são eles: Kerma, Napata e Meroé. Com um destaque, para o estabelecimento nestes dois últimos focos de concentração humana. Napata, desenvolveu-se há cerca de 3000 anos, esse assentamento recebeu uma profunda influência egípcia, na qual é manifestada na arquitetura, visto que os cuxitas promoviam a construção de pirâmides e templos, embora possuíssem características próprias. A utilização de hieróglifos pelos cuxitas no interior das construções, também é uma manifestação desse contato e influência com os egípcios (CONNAH, 2011, p.108).
Gebel Barkal, local de forte devoção ao Deus Amon, era localizado neste assentamento. A devoção a Amon – deus egípcio representado com a cabeça de carneiro – evidencia a relação do reino cuxita com a cultura egípcia. Segundo Leclant a cultura cuxita: “[…] trata‐se de uma cultura africana que ora se firma em sua especificidade ora procura alinhar‐se à civilização egípcia – ela mesma, aliás, africana” (2010, p.278).
Além do panteão compartilhado com os egípcios, os cuxitas possuíam Deuses próprios, como, Apedemak e Sebiumeker. Apesar de que, o culto ao deus-leão Apedemak tenha sido institucionalizado no século III a.C. (LECLANT e HAKEM, 2010). Hoje tanto Napata quanto a Colina Gebel Barkal são sítios arqueológicos eleitos como patrimônio da humanidade, são protegidos pela UNESCO.
Por volta do século VI a.C. Napata foi invadida, e tomada por tropas egípcias, e segundo Leclant (2010, p.282) a mudança da capital de Napata para Meroé está intimamente relacionada com as ameaças sofridas por estes. Possuindo como objetivo central ampliar a distância do Egito. Outros aspectos são destacados pelo autor, como os climáticos e econômicos, pois Meroé favorecia a agricultura, e criação de animais. Além disso, a nova capital constituía-se em um forte ponto de comércio (LECLANT, 2010, p. 283). Em Meroé são encontrados vestígios das pirâmides cuxitas, e da mesma forma que Napata, a nova capital constitui-se como um sítio arqueológico sob a proteção da UNESCO.
O Estado Meroíta atingiu o seu apogeu por volta do século II a.C é durante este período, que são encontrados os relatos mais antigos referentes à rainha-mãe, correspondendo à Shanakdakhete. Entre as funções correspondentes à rainha-mãe pode-se destacar a educação das crianças provenientes da realeza, possuíam também uma posição de destaque na cerimônia de coroação, entre várias outras. É a partir de Shanakdakhete, que ascende uma série de rainhas com amplos poderes (LECLANT e HAKEM, 2010). De acordo com Hakem (2010, p.305), em algum período as rainhas-mães ganharam mais notoriedade em relação às figuras masculinas – como filhos e parceiros – e assumiram como centro de poder do Estado Meroíta.
O título de Candace é oriundo dos termos da língua meroíta Ktke ou Kdke, que significa rainha-mãe. E de acordo com Leclant, é possível mapear apenas quatro figuras que utilizaram este título, aliado ao termo meroíta que equivale à palavra chefe. São elas: Amanirenas, Amanishaketo, Nawidemak e Maleqereabar. (HAKEM, 2010, p.304). Estas detinham uma profunda importância política, no qual fica evidenciado no relato de Plínio, O Velho, após ser enviado pelo imperador Nero numa expedição. Escreve Plínio “[…] que uma mulher de nome Candace mandava em toda a área, o nome tendo passado de rainha a rainha ao longo de muitos anos.” (SILVA, 2012, p.19)
Dito isto, o G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro em 2007, desfilou pelo Grupo Especial das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, apresentando como enredo as Candaces sendo idealizado por Renato e Márcia Lage, e a Diretoria Cultural do Salgueiro, possuindo como inspiração a peça Candaces – A Reconstrução do Fogo. Segundo a sinopse disponibilizada pela escola:
“[…] o Salgueiro vem desvendar em seu enredo a história das Candaces, dinastia de rainhas da África Oriental que comandaram, antes da era cristã, um dos mais prósperos impérios do continente. Mais do que uma linhagem de rainhas, Candace torna-se um conceito, através do qual a força da mulher negra se faz presente em lutas, conquistas e no legado matriarcal que venceu o tempo e as distâncias.” (LIESA, 2007)
O samba de enredo – elemento primordial para a realização de um desfile – apresentado para o carnaval de 2007, foi composto por Dudu Botelho, Luiz Pião, Marcelo Motta e Zé Paulo. A letra pode ser lida logo abaixo:
Majestosa África / Berço dos meus ancestrais / Reflete no espelho da vida / A saga das negras e seus ideias / Mães feiticeiras, donas do destino / Senhoras ventre do mundo / Raiz da criação / Do mito a história / Encanto e beleza / Seduzindo a realeza / Candaces mulheres, guerreiras / Na luta, justiça e liberdade / Rainhas soberanas / Florescendo pra eternidade / Novo mundo, novos tempos / O suor da escravidão / A bravura persistiu / Aportaram em nosso chão / Na Bahia, alforria / Nas feiras tradição / Mães de santo, mães do samba! / Pedem proteção / E nesse canto de fé / Salgueiro traz o axé / E faz a louvação / Odoyá, Iemanjá; saluba Nanã / Eparrei Oyá / Orayê yê o, Oxum / Oba xi Obá. (Composição: Dudu Botelho, Luiz Pião, Marcelo Motta, Zé Paulo)
O samba enredo utiliza uma série de adjetivos que corroboram com o destaque que as candaces e outras mulheres da realeza cuxita possuíam. Termos como Mães feiticeiras, destaca o papel religioso que elas possuíam, pois, de acordo com Hakem (2010, p.303) ocupavam altos cargos no clero, com destaque para os templos de Amon, mas podendo ser direcionadas para outros templos do reino. Tanto no samba, quanto na construção das alegorias, fica evidente que trata-se de um Estado Negro, isto poder visto no relato de Heródoto: “[…] chega-se a uma grande cidade chamada Méroe, que se afirma ser a capital dos etíopes” (SILVA, 2011, p.13). Vale ressaltar que o termo “etíope” refere-se ao aspecto cromático, a população de pele negra.
É de extrema importância dizer que para além das candaces, outras figuras foram abordadas pela dupla de carnavalescos. Isto fica ressaltado tanto no samba escolhido, que cita as yabás² Nanã, Oyá, Oxum, Iemanjá e Obá, quanto nas outras partes do enredo, que utilizam figuras, como a Rainha de Sabá, Nefertiti, Luiza Mahin, Tia Ciata, Aqualtune e a Rainha Ginga. Algumas destas personalidades podem ser observadas nas imagens abaixo.
A primeira imagem referindo-se a um tripé com destaque para escultura de uma mulher negra que representa a Rainha de Sabá e o encontro que teve com o Rei Salomão, relatado no Antigo Testamento da Bíblia. A segunda imagem é uma alegoria, no qual a escultura central remete ao busto da Rainha Nefertiti, busto este que está situado no Neues Museum de Berlim, na Alemanha. As Candaces aparecem explicitamente no desfile, a partir do setor 4 da escola, com o destaque para o carro alegórico que corresponde a esta parte do desfile, podendo ser vista na imagem abaixo.
O Carro alegórico número 4, encerra o quarto setor do desfile. As etapas do setor podem ser observadas abaixo, no fragmento do esquema organizado elaborado pelos carnavalescos e apresentado no Livro Abre-Alas de 2007.
Este setor foi composto por alas que remetiam ao domínio da metalurgia, entretanto segundo Hakem (2010) não se pode afirmar que havia uma larga escala deste ofício, embora seja possível que este conhecimento seja encontrado em algumas partes da região. O autor aponta que este campo precisa de mais estudos para um melhor mapeamento do papel do ferro no estado meroíta. Meroé possuía uma abundância de recursos minerais, embora seja provável que itens como bronze e prata tenham sido importados de outros locais (HAKEM, 2010).
Os detalhes em dourado presentes no carro alegórico – imagem 3 – remetem à relação íntima que o Estado meroíta possuía com o ofício de ourives, visto que segundo Hakem (2010, p.314) era um grande produtor de ouro, e de pedras preciosas. Algumas peças de ouro e de outros materiais foram encontradas por Giuseppe Ferlini³ em 1834. Talvez a peça mais famosa, encontrada por ele, seja o bracelete da Candace Amanishakheto – hoje parte do acervo dos museus estatais de Berlim.
Além disso, o desfile aponta as relações de comércio entre os meroítas e outros povos, pois Meroé era um ponto de grande fluxo de comerciantes oriundos de diversos povos e regiões do continente, sendo ponto de parada ou de partida. Produtos como ouro, pedras preciosas, entre outros, eram os principais itens de exportação. Suas principais relações comerciais davam-se com o Egito e o Mundo Mediterrâneo (HAKEM, 2010). Outros aspectos do desfile também ressalta uma outra face da relação com o Império Romano. Durante o governo das candaces, o estado meroíta entrou em conflito com tropas romanas, e um posteriormente acordou um tratado para a suspensão dos combates com Augusto César (LECLANT, p. 286). Além disso, destaca a força militar do Estado meroíta, tanto no carro alegórico que é composto por esculturas nas laterais com armas e escudos, quanto no samba enredo que utiliza o adjetivo Guerreiras.
Conclusão
O historiador Luiz Antônio Simas em seu livro, O Corpo Encantado das Ruas (2020), escreve: “O Carnaval é o duelo entre o corpo e a morte”(p.109). Em um país, no qual em 2018, segundo o Atlas da Violência, 68% das mulheres vítimas de homicídio foram negras, abordar Candaces e outras figuras inseridas dentro do conceito de candaces – forma abordada pelos idealizadores do enredo – faz-se fundamental, para a construção de uma educação antirracista e combate a reificação da mulher negra, estas alvos de uma dupla opressão – racismo e sexismo – como escreve bell hooks (2019).
¹ Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal Fluminense.
² Termo utilizado para referir-se aos orixás femininos.
³ Nascido em 1797, na cidade de Bolonha, atual Itália. Atuou como médico, militar. Além disso, atuou em expedições na busca por artefatos classificados como tesouros.
Referências:
CONNAH, Graham.“Núbia, ponto de encontro de diversos povos ” In: CONNAH, G. A África desconhecida. São Paulo: Edusp, 2011.
DESFILE Salgueiro 2007. 2007. Son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FshSFHq80A4. Acesso em: 02 dez. 2020.
EGYPTIAN MUSEUM AND PAPYRUS COLLECTION. Armschmuck mit dem widderköpfigen Gott Amun in einem Schrein. Disponível em: http://www.smb-digital.de/eMuseumPlus?service=direct/1/ResultLightboxView/result.t2.collection_lightbox.$TspTitleLink.link&sp=10&sp=Scollection&sp=SfieldValue&sp=0&sp=0&sp=3&sp=Slightbox_3x4&sp=0&sp=Sdetail&sp=0&sp=F&sp=T&sp=1. Acesso em: 03 dez. 2020.
FAGE, John. “A evolução da historiografia da África”, In: KIZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África. vol. I. Brasília: Unesco, 2010
HAKEM, A. “A civilização de Napata e Méroe”. In: MOKHTAR, Gamal (ed.). História Geral da África: África antiga. Brasília: Unesco, 2010.
hooks, bell. “Sexismo e a experiência da mulher negra escravizada”. In _____. E eu não sou uma mulher. Mulheres negras e o feminismo. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2019.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Atlas da Violência 2020: principais resultados. Principais resultados. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/27/atlas-da-violencia-2020-principais-resultados. Acesso em: 04 dez. 2020.
LECLANT, J. “O Império de Kush: Napata e Méroe”. In: MOKHTAR, Gamal (ed.). História Geral da África: África antiga. Brasília: Unesco, 2010.
LIESA. Livro Abre-Alas 2007. Disponível em: https://liesa.globo.com/material/carnaval07/abrealas/Segunda-Feira%202007.pdf. Acesso em: 28 nov. 2020.
SAMBA-ENREDO “Candaces”. Disponível no site: <http://letras.mus.br> Acesso em: 23 nov. 2020
SILVA, Alberto da Costa e (org.). Imagens da África. São Paulo: Penguin & Companhia de Letras, 2012. p. 311. Disponível em: https://bibliotecaonlinedahisfj.files.wordpress.com/2015/03/alberto-da-costa-e-silva-imagens-da-c3a1frica.pdf. Acesso em: 05 dez. 2020.
SIMAS, Luiz Antonio.“Corpos em disputa”. In _____. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.