Carapinha. Muito cara…

Cadiveu. Ou cadáveu, como diria o Adún.  Sem dúvida, é uma das coisas que mais irritam os brancos em geral, e os racistas – brancos ou não – em particular: nosso cabelo. Também pudera. Como a pele da maioria de nós, nosso cabelo quer existir no exato sentido contrário do deles. Para cima! E o mais absurdo, contudo: gostamos. Abusamos. Às vezes, até reinventamos novos modos de estar bonitos através deles, os cabelos. Só pra chatear? Talvez… A cada vez (com ou sem trocadilho) que a indústria cosmeticida bombardeia a mídia, intoxicando tantos de nós, outros tantos exalam o orgulho de ser como somos. A consciência avança. O sentimento permanece. Imagino os brancos da publicidade, em noites insones, ou entorno de chops alegres, buscando uma nova ideia que nos convença, a nós pretos, de uma vez por todas: É ruim! E não é cabelo. É ‘algo’. Há décadas, gerações de marqueteiros tentam cortar o meu pela raiz. O nosso. São bons brasileiros, os publicitários… Não desistem nunca. E nós? Também não.

Fomos mais do que testados no Século XX. E por diversas vezes quando a opressão racista quis tocar com sua mão assassina o âmago da nossa existência (o nosso amor próprio), nossos cabelos gritaram. Se puseram de prontidão. Marchando eretos pelo Harlem, balançando proféticos pelas ruas de Kingston, ou multiplicando no Carnaval de Salvador as tranças de uma geometria ancestral. De todos os modos, eram gritos. E ainda hoje os ecos daqueles gritos nos ajudam a ficar de pé. No round. Temos ido às cordas, é verdade… mas a lona está muito, muito mais distante.

Há muitos tesouros guardados em nosso cabelo. E não dentro dele, é bom que se diga, já que a publicidade no Brasil já o quis até como “porta-treco”. O tesouro no nosso cabelo é ele mesmo, em si, as formas que assume, o zelo com que o tratamos. A riqueza é aquele delicado e último tapa no Black, é o desenho Adinkra resgatado no sonho de uma trançadeira em algum ponto da Diáspora, é a magia de cortar o tempo e o ar com as mais belas e encantadoras tranças horrendas… Nosso cabelo ainda guarda – fora de si! – sua maior preciosidade: pares de mãos profundamente sensíveis, devotas da beleza, e que se sucedem há gerações. Outras gerações.

Talvez pese ‘espiritualizar’ a discussão, mas gosto de pensar que somos criaturas divinas. Então, podendo ver no próprio corpo a imagem e semelhança do belo. Pelo cabelo. Uma beleza natural… (Êpa! Beleza natural…assim… natural, entende? Tipo natural, natural… sem enrolation). Temos, sim, que ouriçar nossas vozes! Afinal, não tem sido nada livre o arbítrio do alisante…  Os racistas nos querem contra Deus. Azar o deles. Não seremos.

Touche pas! A minha carapinha é livre! E cara. Muito cara…

Lande Onawale

Poeta e escritor


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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