Carolina de Jesus, Maria Tereza

 

 

 

Por Allan da Rosa,

Em 2008 fizemos um programa de rádio, pela série ‘ Nas Ruas da Literatura’, com textos de Carolina versados por Maria Tereza. Ali eu apresentava traços da biografia e dos contextos de criação de Carolina, e minha mana Tereza recitava trechos de livros distintos: ‘ Quarto de Despejo’, ‘ Casa de Alvenaria’, Diário de Bitita ( suas memórias de infância mineira em Sacramento, escritas já adulta. Texto quente e saboroso, onde destaca seu avô, o ‘Sócrates Negro’) e também poemas e canções.

É centenário de Carolina nesse 2014. Relembrada com paixão em muitos saraus e coletâneas desde a virada do século em qualquer quebrada paulistana, considerada avó, madrinha ou pilar maior da gama de escritores das beiradinhas. Organizamos cursos e seminários pra aprender e refletir sobre seu percurso e seu estilo, sua radiação e suas lacunas, seus elos com a obra e o passo de outras mulheres negras migrantes pra São Paulo ou Rio, que afiaram a caneta e o pensamento ocupando o casulo macho da caneta, do universo da escrita, como por exemplo Lélia Gonzalez e Beatriz do Nascimento. Juntamos dezenas de cabeças pra desfrutar o doce e o amargo das suas linhas, os poros e a casca grossa de seus textos, e sempre saímos das aulas com a alma cheia mas uma sensação de oco no peito, diante das farpas e também ternura que sua obra deixa no vento.

Carolina por muito tempo foi a autora mais traduzida do Brasil. Seu sucesso de ‘ Quarto de Despejo’, retratando e filosofando as entranhas da favela do Canindé e de seu barraco com seus filhos, jamais foi alcançado por seus outros livros. Já parecia não agradar tanto quando caminhava por onde nao parecia exótico, por onde nao coubesse no cocho do estereótipo reservado. A esquerda de outrora (só de antes?), cega às miudezas e a amplitude das pautas e tretas do racismo, tentava lhe encaixar na gaveta, percebendo a negra como alguém a se integrar no esquema da luta de classes e talvez nada mais. A direita não encontrava ali alguém pra facilmente digerir, nem pelos textos nem pelas outras falas e intervenções de Carolina. Momento em que espetáculos cantavam que ‘daqui do morro eu nao saio não’, quando se exportava romanticamente uma placidez simpática entre os barracos de pau, idealizando a alegria e um bem viver na favela que só agradava quem nao pisava no lameiro, Carolina trouxe sua revolta, dramática às vezes satírica do cotidiano no Canindé. A fome, as crianças e seus roncos precários, a comunidade escorraçada, a coleta de papelão, as pequenas infinitas dívidas na venda, a falta de tudo… Até hoje o texto e a figura de Carolina não cabe em moldura de nenhum movimento ou instituição que realmente a leia e contemple suas contradições, ela tão citada em fragmentos com a foto louvada mas nem sempre com o parágrafo lido e conversado. Suas linhas sobre as relações raciais em São Paulo não convém facilmente nem mesmo aos discursos convencionais do Movimento Negro, seja quando aborda a (des)organização comunitária ou quando aponta quem é o marido ideal para si e sua menina.

Seja por inveja de seu sucesso ou porque ela abriu detalhes escabrosos da própria vizinhança da favela no seu diário ( a sua vingança elaborada, como dizia com o dedo em riste), Carolina saiu xingada e apedrejada do Canindé. Por seu centenário, em vários cantos Carolina é especialmente recordada em 2014. Já aconteceram algumas rodas e prosas e elas seguem de norte a sul do Brasil. E é claro que elas não vão acontecer nas salas ou livrarias dos barões ( e se ali vogar, desconfiemos das abordagens). O selo Ciclo Continuo, organizado por Marciano Ventura, que publica há alguns anos livros primorosos de escritores negros jovens, como Fabio Mandingo e Marcio Folha, ou reedita e compila obras de mais velhos, como Abelardo Rodrigues e Carlos Assumpção, organizou pra 22 de março um seminário fera sobre a escritora, recebendo pesquisadoras e poetas pra trocar idéia sobre significados, gostos e vertigens dos textos de Carolina, os generos variados que sua caneta desenrolou do confessional à composicao de marchinhas e sambas, do testemunhal à poesia e à ficção. Será na Biblioteca Municipal Alceu Amoroso Lima, em Pinheiros, em SP, finalizando com cenas da já clássica montagem de ‘ Ensaio sobre Carolina’ , da Companhia Os Crespos de teatro.

Aqui tem outro programa de rádio que fizemos em 2011, também lendo e refletindo Carolina de Jesus. Uma hora de prosa com a professora Flávia Rios, que estará na biblioteca em Pinheiros: Na Bahia, a poeta e atriz Vera Lopes, mais a grande ativista Vilma Reis e uma banca de responsa puxam o Coletivo Carolinas questionando os espinhos e sonhos, as unhas o fedor que impulsionavam Carolina a mergulhar em seu diário. Ainda em SP, radicada nas quebradas do Parque Bristol, Jardim Clímax e do fundão do Ipiranga, onde pulsa há varias primaveras o movimento florescente de luta por moradia, de escrita e de Hip Hop desde os tempos da Posse Poder e Revolução, do Maloca Espaço Cultural até hoje com o Sarau Perifatividade, a poeta Dinha e a pesquisadora Rafaella Fernandez chamam o povo pra colaborar com uma vaquinha. Intenção é publicarem pelo selo Me Parió escritos inéditos e trancafiados que Rafaella recentemente sequestrou na França. Pra variar, como no caso da chamada literatura de cordel e como já se demonstra com a literatura periférica e a escrita negra brasileira, pra bem e pra mal pesquisadores estrangeiros se dedicam e compõem seus acervos, organizam seminários e vão dichavando os revides e os ninhos que raramente o sistema editorial nacional se propõe a publicar ou debater. Pra firmar uma publicação distribuída na humildade e com garra e fundamento.

Bem, citei Maria Tereza no título mas o texto ficou grande por agora, só com Carolina de Jesus. Na próxima quem sabe venço minha relutância em falar sobre Tereza, supero o medo de arranhar com minhas mágoas essa ciranda, às vezes hipócrita que tanto voga sobre sua memória, e escrevo sobre essa singular escritora, pensadora e minha grande irmã de convívio e espírito, que fez sua passagem em 2010. Escrever sobre o convívio real de quintal, ônibus, biblioteca e cozinha com Tereza, suas traquinagens e místicas, nossos passos vira-latas editando seu ‘ Negrices em Flor’ em 2007, espoletando como Porta-bandeira e Mestre- Sala em 2008 com o Teatro Solano Trindade, no Embu, onde nos conhecemos e varamos noites com Dona Raquel Trindade assistindo filmes. Sobre as caixas que me deixou quando já sabia que era chegada sua hora de partir, amparada por pouca mas muito valorosa gente ( Salve Celso Sim, Mafalda Pequenino, Beth Belli, Rodrigo Bueno, Paula Pretta e outras mais que sabem de quem falo). Tudo isso pra não prevalecer a memória de sua dor massacrante, da enigmática poliradiculoneurite que lhe acometeu ainda tão jovem, da síndrome do pânico e das ligações madrugueiras desesperadas, das visitas ao Hospital das Clínicas quando sorria e chorava ao mesmo tempo quando eu lhe massageava os dedos inchados daquele pé que tanto doía e de quem ela tanto escrevia. Necessidade de lembrar Tereza chegando cedinho no Taboão pra recitar poesia a dois, pirando em estilos e temas. Tereza homenageada em blogs e microfones após sua morte, a que murmurava me perguntando por que nenhuma ‘amiga’ mais lhe telefonava, porque quase ninguém lhe visitava em vida sabendo da sua situação ( ‘- Você deu mesmo meu número de telefone certo pra elas, Allão?’), mas recordar Tereza pela nobreza moleca que bailava com os postes da rua e lia na mesma tarde, horas na biblioteca ou no ponto de ônibus, no banheiro ou no pé da porta de casa, a coleção Vagalume e Marise Condé, Stella do Patrocínio, Pablo Neruda e revista Planeta, seus livros e cadernos de fotocópias tão lambuzados de frutas, tatuados por mangas e caquis.

 

 

 

 

Fonte: Revista Fórum

 

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