Carta a Vilma Reis: um breve resumo sobre Chico Preto

De Cleidiana Ramos no Flor de Dente

Cara Vilma Reis:

Neste momento em que você tem produzido um encantamento em tantas e tantos de nós pela mensagem de esperança de que ainda é possível desafiar o racismo estruturante e estruturado por meio desta corajosa entrada na disputa pelas articulações destinadas à conquista da Prefeitura de Salvador gostaria de lhe contar um pouco da história do meu pai. Tenha paciência com o texto longo, pois já decidi assumir que isso faz parte da minha ideia de jornalismo mesmo, ou seja, não se dobrar à rapidez destes tempos modernos, e contar as histórias no tamanho que elas forem merecendo.

Em 1982 eu entrei na escola pública em Iaçu. Naquela época, mesmo que já estivéssemos alfabetizados- como era o meu caso- tínhamos que aguardar a idade mínima para ingresso na rede. Meus pais recorreram à professora Altamira Miranda (Mil) para dar um apoio enquanto chegava a hora. A minha entrada no grupo Escolar Elísio Medrado coincidiu com o ano em que meu pai, Pacífico Teixeira Ramos, conhecido como Chico, resolveu disputar a eleição para prefeito do município.

Meu pai já havia sido prefeito de 1971 a 1973 entrando no seleto grupo dos 19 prefeitos eleitos pelo MDB na Bahia. Era o tempo da desumana ditadura civil-militar. O MDB não era a instituição desacreditada de agora. Pelo contrário. Integrá-lo, sobretudo no território de Iaçu, com enfrentamento acirrado entre posseiros e grandes latifundiários,  constituía-se em ato de coragem.

Chico lançou-se numa eleição que sinalizava para a abertura política depois de duas décadas de ditadura. Na escola eu estava em um novo mundo, “fora da bolha” amigável como se diz agora. E ali, aos 7 anos, eu comecei a ter as primeiras experiências da violência do racismo. Colegas de turma e de outras classes, quando me viam no recreio, faziam coro: “porco preto, porco preto”. O apelido era aquele que os adversários políticos lançavam contra o meu pai, seguidamente. Alguns iam mais longe e diziam: “Onde já se viu preto ser prefeito?”. Crianças aprendem a ser cruéis,especialmente se são estimuladas neste sentido.

Foto: flordedende.com.br

Chico Preto enfrentou o racismo com coragem e maestria

Mas Chico ganhou a eleição. Contam que mandou pintar no trio elétrico que contratou para festejar sua vitória dois porquinhos abraçados: um branco e um preto. Deste detalhe eu não me lembro, pois não me foi permitido ir para a festa devido à idade e, depois que fui crescendo e entendendo o tamanho do que eram as batalhas políticas do meu pai, sei que por razões de segurança. Lembro da minha frustração quando queria ir esperá-lo na ponte que liga Iaçu à rodovia para Itaberaba, cidade vizinha, depois que ouvimos sua vitória pelo rádio- na época, o município não tinha comarca eleitoral. Minha mãe, dona Nazinha Ramos, disse que eu não ia, pois estaríamos em perigo: “Seu pai vem com proteção policial, mas imagina se alguém quiser se vingar em você”. Uma menina  não iria compreender os riscos para um candidato vitorioso que estava desafiando todo o poder, inclusive as forças de segurança em um regime ditatorial, mas minha mãe, infelizmente, vivia sob o peso da certeza de que os riscos da ousadia e coragem do meu pai eram extensivos a todas e todos nós.

Mas lembro que dali em diante, meu pai escolheu “Fuscão Preto”, de Almir Rogério, como música tema das suas campanhas. Nas micaretas de Iaçu, realizadas em maio e embaladas pelo trio Estrelar, em algum dia íamos para uma espécie de palanque improvisado. Ali, quando a festa estava no auge, o vocalista da banda dava a deixa para o momento do meu pai testar a sua popularidade. E aí, muito rapidamente- os discursos de Chico eram muito curtos- chegava a hora em que ele era levado a pedir uma música.Sua escolha sempre era por “Fuscão Preto”. E aí o vocalista continuava: “Em ritmo de frevo ou de seresta?”. E Chico arrematava: “Em ritmo de frevo que é para o povo dançar”.

Sutileza

Em 1983 meu pai tomou posse. A nossa casa foi aberta para um almoço disponível a quem quisesse chegar. Lembro do silêncio que se fez quando apareceu na esquina da Rua Joana Angélica, onde até hoje está a nossa casa, o afoxé de Seo Zezinho de Ogum. Em nossa região, na época não se tinha um nome específico para se referir às manifestações das religiões afro-brasileiras. Quem ia à “casa de um curador ou curandeira” era alvo de sussurros e até censura em algumas conversas que nós, crianças, com muito cuidado ouvíamos aqui e ali. Se nos pegassem em flagrante, escutando o que os adultos falavam, estávamos perdidos no rígido código da educação doméstica da época. Pois foi nesse contexto que Chico incluiu como parte das comemorações pela sua vitória a performance do afoxé da casa de Seo Zezinho com todas as suas filhas e filhos religiosos que tiveram a coragem de se expor como tais. Ou seja: aquele povo que fazia seus cultos bem escondidos e sob censura agora estava integrado oficialmente em uma agenda da nova administração do município.

Sempre comentamos, minha mãe e eu, sobre a reação de um então morador da nossa rua, que desafiando o código de cordialidade sempre cumprido por todos,  lançou várias ofensas contra o grupo. Esbravejou, mas a apresentação estava feita. No final, todos se somaram à festa com comida farta que, se não me engano, era sarapatel e fato de bode, além de uns salgadinhos que minha mãe providenciou, preocupadíssima. As contas de convidados das festas do meu pai sempre eram duas ou três vezes muito acima do que ele dizia para convencê-la.

Enfrentamento

Meu pai nunca se afastou da política partidária. Perdeu duas eleições seguidas – 1992 e 1996. Esta última foi doída, pois ocorreu  por apenas 45 votos de diferença em meio a uma disputa extremamente polarizada com incitação dos nossos adversários a um ódio como há muito não víamos em Iaçu. Ainda ocorreu, em 1997 ou 1998,  a expulsão do meu pai do PMDB, que estava nas mãos do sr. Gedel Vieira Lima. Chico, que nesse período, adotou o “Preto” como complemento ao apelido, em enfrentamentos ainda mais contundentes contra os racistas, havia se negado a apoiar a aliança do partido com Antonio Carlos Magalhães (ACM). Foi expulso por infidelidade partidária, mas continuou a ter o respeito de pessoas como Waldir Pires, Emiliano José e outros sedimentando o seu passado como integrante da ala dos chamados “autênticos do velho MDB”.

Na tarde em que foi expulso do partido que amava e onde considerava que era necessário resistir mesmo que ele estivesse se desmanchando em relação à sua origem, meu pai protagonizou mais um episódio do qual me orgulho muito. Ele recebeu uma ligação com um convite para migrar para o PT. Agradeceu e no telefone se explicou: “O PT em Iaçu foi fundado por ferroviários. Eu nunca fui ferroviário. Se eu entrar no partido vocês, possivelmente, vão me dar a presidência local e eu não vou fazer isso com Fominha (Antônio Fominha era o presidente em Iaçu e um dos fundadores, inclusive foi eleito vereador). Não se preocupem que nesse arco progressista eu vou encontrar um novo partido”. Foi para o PSB, onde ficou até morrer em junho de 2004. Um dia antes estava me apresentando seus planos para a retomada das forças progressistas em Iaçu e em cidades vizinhas.

Meu pai era uma figura cordata, extremamente habilidoso em sua liderança. Não batia em mesa ou recorria ao autoritarismo, mas era muito firme em suas convicções. Certa vez me explicando porque não fez um acordo local em direção ao qual foi pressionado inclusive por amigos em quem depositava confiança pra depois ser traído disse: “Não faço aliança com canalhas”. Pagou seus preços, inclusive muito duros, como várias vezes acompanhei pela tristeza em seus olhos.

Foto: flordedende.com.br

Chico em cena do documentário Paraguaçu, exibido pela TVE.

Mas acho que Chico Preto venceu todos os seus embates. Fez administrações corretas, com investimentos que melhoraram, especialmente, as redes de educação e saúde em Iaçu. Construiu diversas escolas, inclusive uma nova estrutura para o Centro Educacional de Iaçu, onde gerações de iaçuenses, como a minha,  fizeram um qualificado ensino médio. Meu pai foi o primeiro prefeito de Iaçu a instalar as chamadas “casas populares”. Tinha um carinho enorme pelo povo da zona rural do município e conhecia cada pedacinho dela. Me disse um dia com tristeza que estava desanimado porque em uma dessas localidades alguém lhe disse que só votaria nele se recebesse dinheiro em troca. E aí ele disse: “Se o povo daquele lugarejo pequeno, tão longe aqui da sede (fica na divisa de Iaçu com o município de Paraguaçu já às margens da BR-116), está pensando assim, a gente perdeu muito”.

Lições

Por que eu transformei totalmente um texto que, inicialmente, iria tentar analisar este fenômeno de várias pré-candidaturas negras à Prefeitura de Salvador, inclusive a sua, Vilma, , em referências sobre o meu pai? Não sei. Há alguns anos já perdi a crença que guiamos os textos conforme a nossa vontade. Pelo menos no meu caso, eles é que seguem o caminho que querem. Arriscando-me a entender um pouco,talvez, eu veja, especialmente na sua trajetória de agora, semelhanças com a de Chico Preto, com ênfase no aspecto da leveza e da coragem de tomar o protagonismo. Não dá para esperar pelos partidos entenderem a nossa urgência de enfrentar o racismo sob novas perspectivas.

Para transformar em regra e não mais exceção a visibilidade de famílias negras como a sua, Chico foi para o enfrentamento. Achavam que era uma brincadeira, mas ele se viu prefeito em 1971. Ali sentiu que seu gesto tinha algum tipo de ressonância entre tantos como ele. Não saiu mais da arena de disputa pelo poder maior do seu local de origem. Enfrentou uma ditadura como pôde. E, em 1982, voltou para desafiar “o sistema”, inclusive aquele que não tinha pudor em ensinar às crianças que um preto que se metia a ser candidato a prefeito tinha que ser desumanizado via a figura do porco.

Eu imagino o quanto foi dolorido para os meus pais estes processos. Porque o foi pra mim. Tanto que nunca esqueci disso. Sem falsa modéstia tenho boa memória, mas sei que as experiências tanto as felizes quanto as tristes marcam a fogo as lembranças infantis. Chico Preto venceu a batalha. Deu uma sova no racismo iaçuense não apenas ao se tornar prefeito, mas foi além: constituiu-se em uma das mais fortes e respeitadas lideranças da Chapada Diamantina e até hoje é lembrado com saudade.

Chico manteve amizades influentes. Na nossa casa estão os registros da sua importância para o MDB/PMDB nas fotografias com Tancredo Neves, Pedro Simon ou os documentos do seu trânsito fácil pelos governos de José Sarney, Waldir Pires e Nilo Coelho, administrações do seu campo partidário. Foi assim que conseguiu administrar Iaçu de 1982 até 1986 em completa oposição ao carlismo.

Olhando para a trajetória do meu pai, imagino que não vai ser fácil, especialmente para você, Vilma Reis. As máquinas partidárias, mesmo as das agremiações que chegam perto do projeto civilizatório de Brasil que sonhamos, “moem gente” no pragmatismo. E não adianta militantes se engalfiarem como andam fazendo para defender que no partido X ou Y é diferente. Partidos são feitos de gente com todas as vaidades, aspirações e fraquezas. Nem sempre as lideranças fazem o que a militância deseja. Vão dar as mais variadas explicações para assegurar os nichos de controle de tal tendência, conglomerado ou nome que decidirem adotar.

Mas o que eu gostaria de dizer é que, mesmo diante do meu ceticismo e desencanto pela experiência no meu locus primevo, Iaçu, ao ver seguidas vezes projetos desconfigurados ou abortados por este trator formado pelas vaidades e  burocracia partidária eu sei que é possível vencer ocupando determinadas brechas. Quando estes movimentos vêm com  força como está acontecendo especialmente nesta sua candidatura, Vilma Reis, a mágica pode acontecer.

Foto: flordedende.com.br

Vilma Reis tem acendido a esperança de muitos na política

Afinal, como afirmava o saudoso professor Ubiratan Castro, esta é a terra em que até o materialismo foi encantado. Discípulos de Marx, no que o professor Bira chamava de “materialismo mágico”, se renderam ao oxê da Justiça de Xangô; à lição de sagacidade política de Oxum; à guerra impetuosa de Oyá-Iansã; à conquista do conhecimento tecnológico (estamos nas redes, irmã) de Ogum; atentos ao cuidado com a saúde sob a proteção de Omolu e Nanã; estatégicos para lançar uma só e poderosa flecha no momento certo como Oxóssi;  e equilibrados como ensina Iemanjá sem esquecer da reverência aos mais velhos, inspirada por Oxalá. Quando dizemos que nossos passos vêm de longe não é uma frase jogada ao vento; pelo contrário, a gente sabe o quanto nossas palavras tem força e poder. Avante.

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