Carta aberta de uma executiva negra em dias de pandemia

No próximo dia 13, completaremos 132 anos de abolição da escravatura. Pode parecer muito tempo, mas é pouco se considerarmos o período de escravidão que tivemos no Brasil. Foram 388 anos de escravatura, quase quatro séculos em que uma parte expressiva da população brasileira era considerada um objeto pertencente a outra pessoa – um ser sem alma.

Nós brasileiros não gostamos muito de falar sobre isso, como diria Ester Freitas, minha professora do MBA de Gestão da Sustentabilidade na FGV: “O brasileiro é um povo do contorno e não do confronto”. E o que isso quer dizer? Em geral, não gostamos de olhar para nossas mazelas, de debater nossas fraquezas, de voltar os olhos para os nossos defeitos enquanto nação.

Talvez por isso, segundo o estudo da Ipsos, sejamos o segundo maior desconhecedor da nossa realidade. Geralmente, quando perguntamos para um brasileiro sobre nosso país, questões como saneamento básico, diversidade e inclusão, ou qualquer outro tema, é comum não obtermos respostas. A conclusão é de que desconhecemos a realidade do nosso país e quando tentamos adivinhar, erramos miseravelmente.

A Lei Áurea, por exemplo, é um marco na nossa história. Mas se eu perguntar para as pessoas quantos artigos havia na Lei, poucos saberão. Saibam que aquela legislação que era de grande importância e que marcaria a nossa trajetória como país em desenvolvimento, e preocupado com os direitos humanos, tinha apenas dois artigos:

“Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.
Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.”

Acreditem: não estavam contempladas políticas públicas de saúde, educação, acesso ao trabalho e nem habitação. Foi assim que o processo de favelização no Brasil foi iniciado. Em um dia centenas de pessoas eram escravizadas e no dia seguinte, 14 de maio, simplesmente lançadas à própria sorte.

O Brasil foi o último país independente das Américas a abolir a escravidão. As sequelas são visíveis na sociedade atual, apesar de negros (pretos mais pardos) serem maioria entre a população brasileira (55,8%). Negros representam apenas 24,4% dos deputados federais eleitos em 2018 (IBGE). Ainda mais atuais são os dados do Ministério da Saúde, mostrando que uma em cada três pessoas mortas pela covid-19 no país é negra.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (Pnad – IBGE 2016), a taxa de analfabetismo da população branca era de 4,2%, já a de pretos e pardos era de 9,9%. Quando analisados os índices de desocupação daquele ano, os brancos ficam com 9,5%, e pretos e pardos juntos somavam 28,1%.

E ao falarmos de empregabilidade da população negra, a falta de oportunidade e a desigualdade são ainda maiores. Um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que, em 2017, a maior parte de trabalhadores domésticos no Brasil era formada por negros, sendo que desse total 68% são mulheres. Segundo o estudo Perfil Social Racial e de Gênero do Instituto Ethos, nas 500 maiores empresas, somente 4,7% do quadro funcional é de executivos negros. E a desigualdade é ainda mais reforçada quando acrescentamos a interseccionalidade gênero, com apenas 0,4% de mulheres negras na alta liderança.

Bem, e o que eu como uma dessas poucas executivas negras tenho a dizer? Por favor, neste contexto de crise de saúde ocasionada pela pandemia da covid-19, não abandonemos novamente a população negra do país à própria sorte. O erro histórico que cometemos não pode ser repetido em 2020. Não haveria perdão.

As desigualdades sociais do Brasil são notórias. E a vulnerabilidade da população negra, fruto desse processo histórico e político, é inegável. Vamos fazer hoje o que não fizemos no passado. Vamos assegurar políticas públicas que preservem a população em extrema pobreza, homens e mulheres negros, grandes impactados pelo desemprego, pelo trabalho informal e pela sobrecarga do sistema público de saúde. Vamos assegurar investimentos do setor privado em suas iniciativas de sustentabilidade e diversidade.

Hoje, invoco aqui os nomes de grandes abolicionistas negros que praticamente foram apagados da nossa história, Luísa Mahin, Luís Gama, André Rebouças, José do Nascimento, Dandara dos Palmares, para que possamos neste momento ajudar líderes de comunidades, que estão se superando ao realizar um novo processo de emancipação nas comunidades do Morro do Alemão, Paraisópolis, Grajaú, Heliópolis, Brasilândia, Rocinha, Coroadinho, Pirambu e tantas outras.

Vamos saudar os heróis e heroínas do mundo corporativo, aplaudir CEOs que têm feito a diferença, mas também lembrar de tantos outros que estão nas ONGs, combatendo diariamente e de frente a guerra contra essa doença que tem sido até agora implacável. A todos que arriscam suas vidas para proteger quem mais precisa de apoio, todo o meu respeito, gratidão e amor!

E se você de alguma forma tem o poder de decidir dentro de sua organização, lembre-se de que não se cria um país economicamente próspero e sustentável deixando mais da metade da população brasileira para trás. Para ser um país competitivo, com empresas de sucesso, capaz inclusive de enfrentar uma pandemia, é essencial dar oportunidades iguais de trabalho a todos. Enquanto a população negra estiver sendo excluída ou tendo suas chances reduzidas, o Brasil não alcançará o desenvolvimento, mesmo porque o trabalho é o que possibilita que a roda da economia continue girando.

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