Aos / às profissionais da Rede Municipal de Educação de Ribeirão Preto,
À Sociedade Ribeirãopretana,
Enquanto os leões não tiverem os seus contadores de história, as histórias das caçadas glorificarão os feitos dos caçadores .
(Provérbio iorubano)
Muitas pessoas vêm acompanhando atentamente o “Projeto Baobá – Ribeirão Preto Educando para a Igualdade Étnico-Racial”, concebido em conjunto com o Centro Cultural Orunmilá, coordenado e executado por nós junto à rede municipal de educação de Ribeirão Preto.
Pois bem, nesse momento em que solicitamos a nossa exoneração do cargo que vínhamos ocupando na administração municipal de Ribeirão Preto, desde dezembro de 2005, gostaríamos de compartilhar ou talvez rememorar, com todos/as um pouco da história desse projeto e explicitar as motivações que nos conduziram a essa decisão.
Para aqueles e aquelas que questionam nosso pedido de exoneração, chamando a nossa responsabilidade para a grandeza do Projeto Baobá, saibam que não estamos saindo da luta, mas apenas mudando de trincheira.
A nossa permanência na atual administração tornou-se inviável, pela recusa inexplicável de atual prefeita, Sra. Darcy Vera (DEM), em estabelecer o diálogo com o Movimento Social Negro de Ribeirão Preto; em dar continuidade às políticas públicas de promoção da igualdade racial conquistadas com muitas lutas em governos anteriores; e até em conversar sobre o acordo assinado publicamente com o Centro Cultural Orunmilá, durante a campanha, prometendo a criação de uma Secretaria de Promoção da Igualdade Racial.
Há os que pensam que estamos sendo apressados, pois não é viável a criação de uma Secretaria no primeiro ano de governo. Sabemos disso e respeitamos, mas não nos parece um bom sinal a suspensão das políticas que já estavam em vigor, sem qualquer tipo de diálogo.
Coerência e compromisso histórico com as lutas do povo negro no Brasil nos levaram a esta decisão, após várias cobranças de um posicionamento explícito da atual administração (DEM/PMDB), sem resposta.
A luta por políticas públicas de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial na educação, na saúde, na cultura, entre outras, perpassa toda a história do Movimento Negro Brasileiro pós-abolição. Sendo partícipe e fruto dessa história, seria uma indignidade da nossa parte continuar compondo um governo (DEM/PMDB) que insiste em ignorar nossa história e nossas demandas.
Quando a profa. Elisa Larkin Nascimento nos convidou para publicar um texto sobre o Projeto Baobá no livro Cultura em Movimento, da Coleção “Sankofa 2” (2007), ela pediu que enviasse também uma pequena biografia. E assim, nós nos definimos àquela época e o fazemos ainda hoje “Sou uma mulher negra, nascida no interior de Goiás, filha da baiana Alterides Silva de Jesus e do mineiro José Euclênio da Silva. Peregrinei pelos ambientes escolares, hostis a qualquer criança negra, sabendo desde cedo que aquela escola e aquele conteúdo não eram sobre mim, nem para mim, e sim, contra mim. Cursei Licenciatura em História pela Universidade Federal de Goiás, consciente de estar pisando em solo hostil à história e à realidade do Brasil e, portanto à minha própria. Sequiosa de libertação e dignidade, aproximei-me de outras pessoas que também buscavam conhecer a própria história, reconstituir a própria identidade e lutar contra o racismo e pela igualdade. O caminho natural foi participar do Movimento Social Negro. Já são mais de 20 anos de ativismo voluntário e de estudos para compreender as dimensões que o racismo assume em nosso país, especialmente no sistema educacional formal”.
Foi na condição acima descrita que aceitamos o convite do Centro Cultural Orunmilá para assumir o cargo negociado com a administração municipal de Ribeirão Preto, como parte de um conjunto de políticas de promoção da igualdade racial a serem implementadas na cidade, para trabalhar especificamente com a educação das relações raciais e coordenar a implementação da Lei 10.639/03 na rede municipal.
Formalmente, o convite oficial nos foi feito através de um telefonema originário da Casa Civil numa data emblemática das lutas do povo negro no país, dia 16 de novembro de 2005, durante a Marcha Zumbi + 10, ocorrida em Brasília, quando milhares de pessoas negras de todo o país ocuparam a Capital Federal, denunciando o racismo e exigindo do Estado Brasileiro ações concretas para a sua superação.
Embora contratada por determinação do próprio prefeito como assessora técnica da Secretaria da Educação, fomos impedidas de trabalhar no prédio onde está localizado o órgão, pelo então Secretário da Educação, Sr. Abib Salim Cury, e por sua Diretora de Educação, Sra. Maria Nair Marques Rebelo.
Para nós, somente o racismo explica a necessidade de uma Lei para obrigar a inclusão a história e cultura da metade da população de um país em seu sistema educacional, ou seja, para que os brasileirinhos e brasileirinhas que freqüentam a escola formal possam conhecer a verdadeira e história e cultura do seu país; somente o racismo explica que profissionais da educação, gestores ou docentes, se recusem terminantemente a cumprir a lei, sendo necessário recorrer ao Ministério Público para que tal ocorra; e somente o racismo explica que autoridades públicas obriguem uma pessoa a trabalhar em desvio de função, impedindo que a mesma desenvolva o trabalho de contribuir para o avanço da educação num determinado município, promovendo a diversidade étnico-racial brasileira e desenvolvendo estratégias para a prática do pluralismo.
“Exilada” numa das unidades escolares municipais e impedida de compor a equipe técnica e pedagógica responsável pela gestão educacional do município, contribuímos como pudemos para o bom funcionamento da escola em questão, ao mesmo tempo em que elaborávamos um projeto de formação dos profissionais da educação no município, o qual foi aprovado pelo FNDE, possibilitando 120 horas de formação a 200 pessoas em relações raciais, história e cultura africana e afro-brasileira.
CONSTRUINDO O PROJETO BAOBÁ
No início de 2007, quando o prof. José Norberto Callegari assumiu a Secretaria da Educação, pudemos, finalmente, compor sua equipe técnica, pedagógica e gestora da educação municipal. Em março do mesmo ano, lançamos o Projeto Baobá, uma política pública de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial na rede, envolvendo todos os níveis educacionais e todas as unidades curriculares.
E com certeza avançamos muito. É provável que tenhamos estruturado a proposta mais concreta de educação das relações étnico-raciais em andamento atualmente no país, tendo sido reconhecida, citada e pesquisada, nacional e internacionalmente, em diversos TCC’s, dissertações de mestrado e até numa tese de doutorado.
1. Quebramos barreiras, resistências e conquistamos aliados/as dentro e fora rede municipal da educação;
2. Contribuímos para a ampliação e sistematização das propostas pontuais já em andamento no interior da rede;
3. Iniciamos o processo de combate ao racismo institucional que permeia as relações na sociedade e se reflete no sistema educacional, nas relações entre profissionais e entre profissionais – alunado e familiares;
4. Propiciamos diversas atividades de formação presencial (cursos, oficinas, palestras e seminários), envolvendo cerca de 1000 profissionais que trabalham na rede (gestores, docentes e outros servidores), variando entre 8 e 120 horas;
5. Viabilizamos e / ou adquirimos materiais bibliográficos e audiovisuais para diversificar o acervo disponível em nossas escolas, tanto para subsidiar histórica e conceitualmente o trabalho docente, bem como para disponibilizar títulos literários de autores africanos e afro-brasileiros; mais de 5 mil exemplares foram distribuídos entre as unidades escolares;
6. Envolvemos a comunidade em variadas atividades de discussão e promoção da igualdade étnico-racial;
7. Iniciamos o processo de inclusão da educação das relações étnico-raciais e da história e cultura africana e afro-brasileira nos documentos que regem a educação no município (Plano Municipal de Educação, Projetos Pedagógicos das escolas e Referenciais teóricos e curriculares tanto da Educação Infantil quanto do Ensino Fundamental);
8. Muitas das nossas unidades escolares, sua equipe gestora e docente, desenvolveram propostas inovadoras para a prática da educação das relações étnico-raciais e para a garantia do pluralismo no ambiente escolar;
9. E o mais importante, nós ampliamos a rede de pessoas comprometidas com o combate ao racismo, com a promoção da igualdade étnico-racial e com a concretização da democracia nacional.
Para aqueles e aquelas que ainda resistem e insistem em manter as mesmas práticas discriminatórias e eivadas dos estereótipos do senso comum, tanto no trabalho como em suas vidas, e nós sabemos que ainda são muitos/as, só podemos afirmar que, pela legislação brasileira, racismo é crime inafiançável e imprescritível. Mas, mais do que isso, é sinal de ignorância e desumanidade.
Para aqueles e aquelas que tiveram a grandeza de abrir-se corajosamente para as idéias e propostas trazidas pelo Projeto Baobá, revendo suas práticas, posturas, conceitos e até vocabulários, e esses/as são em maior número, tenham certeza de que estão participando de uma tarefa hercúlea e que sua contribuição para a superação do racismo e suas mazelas no país, não é pequena. Sabemos que vão continuar, porque o que nós chamamos de “consciência negra”, essa compreensão profunda da identidade e do lugar de todos, de cada um e de si próprio, a partir do desvelar das sutilezas e mecanismos históricos e contemporâneos do racismo brasileiro, que constroem privilégios de alguns e destroem a vida de outros, é algo sem retorno.
Vamos concluir mais esse texto louvando em yorubá o ancestral orixá mais estigmatizado e injustiçado pelo racismo brasileiro:
BABA MI TA MI L’ORE OLA
MO SIRE AGBE RODE O{/xtypo_quote}
Tradução:
” Esú o bondoso, que se preocupa em melhorar a qualidade de vida de todos os seres.
Oh! Meu pai, me presenteie com a prosperidade, fui propagar a sua sabedoria a todas as pessoas”.
Ribeirão Preto, 10 de Junho de 2009.
Profa. Silvany Euclênio