Caso Kathlen: o silêncio das autoridades alimenta o racismo que mata

É por volta das 14 semanas de gestação que a mãe geralmente consegue sentir os primeiros movimentos da pequena vida que cresce em seu ventre. Nessa fase, o feto tem cerca de 9 centímetros (um pouco maior que um pêssego), seu corpo é quase que só coração.

Na entrada do segundo trimestre de gravidez, a gestação se torna mais concreta, mais aparente. O corpo muda, as curvas de cintura se alargam e brota — de repente — uma barriguinha. Com isso, se misturam sentimentos, o amor se expande e até angústias habitam os pensamentos da mãe. Nessa montanha-russa de emoções, a mulher se torna a maior protetora daquela pequena vida.

Nessa altura, os riscos da gravidez são menores. Talvez por isso, a designer de interiores Kathelen Romeu, 24 anos, tenha escolhido a semana passada para anunciar a alegria da gestação, ao lado do companheiro. Mas a vida da Kath e de seu bebê foi interrompida por um tiro. Duas vidas negras ceifadas de uma só vez, em consequência da atuação do Estado movida por uma política de segurança pública reconhecidamente fracassada.

A cor da pele não é um acaso. O complexo de favelas do Lins onde ocorreu o homicídio de Kath e de seu bebê, assim como o Jacarezinho, onde aconteceu a chacina policial há um mês, são territórios majoritariamente negros. Por sermos um país racista, estruturado na lógica da escravidão, o Estado atua como se essas vidas não tivessem importância.

Esse quadro ocorre de maneira mais aguda no Rio de Janeiro mas é realidade no Brasil todo: 74% das vítimas de violência policial são negras, aponta o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Também são as vidas negras as mais vulneráveis em outras dimensões, como trabalho e emprego, saúde, educação e acesso à cultura.

Na pandemia, essa intersecção entre desigualdade racial e território se mostra de maneira contundente: é a população negra que tem a saúde mais fragilizada por doenças crônicas como diabetes e tuberculose, por exemplo; são os negros que mais dependem do SUS; que vivem em locais que têm menos acesso a serviços públicos (água e saneamento básico); e que mais dependem do transporte público, espaço de alta transmissão de coronavírus, além da violência policial constante.

O projeto “Desigualdades Raciais e Covid-19″, desenvolvido pelo Afro-Cebrap (Núcleo de Pesquisa sobre Raça, Gênero e Justiça Racial, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), mostrou que no Brasil houve um excesso de mortalidade de 27,8% (153 mil óbitos) para os pretos e pardos em 2020, e para os brancos foi de 17,6% (117 mil óbitos). ”Apesar de todas as regiões terem apresentado excesso de mortalidade, é no Sul e no Sudeste do país que se localizaram as maiores desigualdades raciais. Nessas regiões, o excesso de mortalidade entre pessoas pretas e pardas foi quase duas vezes maior do que entre pessoas de cor branca, em especial em São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná.”

Racismo brasileiro

A morte de Kath, uma mulher negra grávida, é simbólica do racismo brasileiro, aquele que acaba com a vida antes mesmo que ela possa existir fora do ventre. Mostra que ser negro neste país é um ato diário de resistência e de sobrevivência.

A criança negra — quando lhe é permitido nascer — nasce e já tem que aprender a ser negra. É a pedagogia do racismo que Miguel, filho da Mirtes, abandonado à morte por Sari Cortes Real no Recife, não teve tempo de aprender. Ele não sabia que não podia brincar.

O racismo opera na lógica da crueldade. E sobrevive na certeza de que é tolerado. Uma sociedade que não se indigna profundamente quando as forças de segurança do Estado atuam de maneira a alvejar pessoas negras impune e sistematicamente, em nome de uma política de segurança pública que nunca deu resultado no combate ao tráfico de drogas, é cúmplice dessa matança.

Desde 2017, quinze grávidas e 715 mulheres foram baleadas em operações policiais no Rio de Janeiro. Oito grávidas morreram e apenas um bebê sobreviveu, como revela um levantamento feito pela plataforma Fogo Cruzado. Kath não foi um caso isolado. Não foi acaso o que aconteceu com ela e com seu filho ou sua filha.

Descumpriu-se uma determinação do Supremo Tribunal Federal, uma mulher negra grávida foi morta e nada acontece?

A desigualdade racial no Brasil é tão brutal que permite o assassinato de uma mulher negra com bebê no ventre (é importante repetir). É por consentir com essa prática que somos o país da morte, um lugar onde se valoriza a mentira e se celebra o ódio. Um local onde não é permitido um futuro para determinadas pessoas. Onde se naturaliza o racismo.

Até agora, não houve compaixão, lamento ou condolências por parte de autoridades como a ministra Damares Alves, que comanda a pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos. Muito menos do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), ou do ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres. A família que Kath simboliza não conta para o governo Bolsonaro? Não adianta rebater esta pergunta com as notícias sobre os policiais mortos porque também são os policiais negros que mais morrem nessas operações violentas.

O governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL), demorou mais de um dia para se manifestar sobre o caso. Avisou que as investigações sobre o assassinato de Kathlen estão a cargo da Polícia Civil, a mesma que promoveu a chacina policial no Jacarezinho. Talvez, se Castro tivesse se posicionado de maneira a impedir essas operações quando houve a intervenção no Jacarezinho, a jovem negra grávida estivesse viva. Mas o governador se mostrou favorável à ação. Há indícios de que as pessoas que foram mortas na chacina foram também torturadas.

Racismo mata. Quem se cala, quem se omite, quem não se abala, quem não atua contra, é cúmplice.

É muito cruel ter medo constante de gerar uma vida negra por receio de que ela seja brutalmente assassinada ou de que ela sofra muito por conviver com o racismo.

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